Em que mundo vais tu nascer, minha Estrelinha?

Hoje é o Dia do Pai. Não vou ver nem abraçar o meu pai, nem o meu filho. E isso dói. Mas já senti na minha mão os pontapés da Estrelinha. Pontapés de esperança.

Foto
John Looy/Unsplash

Tenho 45 anos. Nos últimos 12, mais coisa menos coisa, tive cancro por três vezes, fui submetido a dois autotransplantes de medula óssea, fiz hemodiálise durante um ano e meio e, desde há cerca de dois anos, sou também transplantado renal.

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Tenho 45 anos. Nos últimos 12, mais coisa menos coisa, tive cancro por três vezes, fui submetido a dois autotransplantes de medula óssea, fiz hemodiálise durante um ano e meio e, desde há cerca de dois anos, sou também transplantado renal.

Sei que a minha história clínica é impressionante, mas não vou alongar-me mais sobre isso, pois é assunto sobre o qual já escrevi dezenas de vezes. Serve, contudo, o intróito para justificar o facto de actualmente tomar imunossupressores, condição que torna, como o nome indica, o meu sistema imunológico mais vulnerável a doenças oportunistas como a covid-19.

Na última terça-feira, ausentei-me de casa para ir a uma consulta de rotina ao Centro Hospitalar e Universitário da Universidade de Coimbra (CHUC), consulta essa que, por razões clínicas, era indispensável.

Enquanto aguardava a chamada no corredor (sala de espera repleta, impedindo o cumprimento da recomendável distância de segurança), observando a movimentação de médicos, enfermeiros, auxiliares e outros utentes do serviço, o ritmo de tudo o que via foi progressivamente abrandando até congelar numa fotografia de pessoas envergando máscaras que evidenciavam os olhos assustados. Os Olhos Falam, poema de João de Deus, conclui-se num eloquente “Debalde os lábios se calam, falam ainda os olhos melhor”.

Mantenho os olhos na fotografia e sinto o medo florescer em mim, um género de medo que só me lembro de sentir quando o meu filho, com três ou quatro anos, teve uma convulsão febril que o deixou prostrado. À recordação do meu filho João, hoje com 14 anos e forte como um touro, junta-se a da minha filha, a Estrelinha, frágil ainda no ventre da minha namorada, a Teresa, cuja normalíssima ansiedade pela condição pré-natal naturalmente se agrava com estes dias tenebrosos. A fotografia dos três sobrepõe-se à do cenário hospitalar.

Sinto uma lágrima correr-me cara abaixo ao ver o sorriso do João e a barriga proeminente de cinco meses e meio da Teresa e pergunto-me em que mundo vai nascer a nossa Estrelinha. Essa ideia assusta-me até à náusea e eis que um filme de terror acelera em frente aos meus olhos, mostrando destruição, sofrimento, caos. O meu coração dispara, sinto-me suado e a cabeça leve, à beira do desmaio. Fecho os olhos para fugir ao cenário assustador, respirando fundo algumas vezes por trás da máscara. O coração abranda.

Abro os olhos e recordo a frase que um senhor japonês, de seu nome Hiroshi, me disse um dia a bordo de um avião: “Quando fechamos os olhos e os abrimos de repente, há um brevíssimo momento durante o qual o nosso cérebro ainda não analisou o que está a ver, pelo que não distingue cores ou formas e nem sequer descodificou o que se está a passar à nossa volta. Procuro viver sempre o mais perto possível desse estado de indefinição, pois trata-se de uma recusa a análise, sempre imperfeita, da realidade.”

Nada será como dantes depois disto, isso é certo, cogito. Uma evidência à qual se junta outra tantas vezes esquecida: o futuro é imprevisível.

Na vida só temos duas coisas, o presente e as memórias. No futuro não há nada, pelo que ninguém sabe se uma mudança será para melhor ou para pior. Sabemos que o momento actual é mau, nenhuma dúvida sobre isso. Mas, neste momento, a verdade é que a Estrelinha está protegida no casulo da mãe e o João está resguardado em casa. E é essa nova fotografia que dissipa a náusea da dúvida e me tranquiliza no corredor do CHUC.

A nossa mente teima em fugir do momento actual, vagabundeando incorrigivelmente pelo futuro, assustando-nos com a imprevisibilidade, nutrindo um medo que nos leva a distorcer a realidade. De forma inata, sentimos um medo positivo que nos permite mantermo-nos vivos, foi esse o medo que nos permitiu chegar até aqui, atravessando milénios de catástrofes, e é esse o medo que devemos alimentar agora, mantendo-nos em casa, resguardados, respeitando-nos e aos outros, tentando controlar o outro medo, o medo perigoso, o medo capaz de libertar o pior de nós mesmos da forma mais destrutiva e autodestrutiva possível.

Há que controlar a mente e canalizar a nossa atenção para o momento presente, procurando gestos de amor no meio de toda esta desgraça, de todo este sofrimento e tristeza. Hoje é o Dia do Pai. Não vou ver nem abraçar o meu pai, nem o meu filho. E isso dói. Mas já senti na minha mão os pontapés da Estrelinha. Pontapés de esperança.


Jornalista, palestrante e autor dos livros O Sofrimento Pode Esperar (2016, Ed. Albatroz) e Quantas vidas temos? (2019, Coolbooks)