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Será esta a última sociedade matriarcal da Europa?

Como seria a vida sem a presença de homens? As mulheres que habitam as pequenas ilhas de Kihnu e Manija, na Estónia, conhecem a resposta há mais de um século.

Lohu Ella, 2008. As mulheres de Kihnu fazem tudo. "Educar e criar as crianças, coser vestuário, cozinhar, reparar e conduzir tractores, cuidar dos animais da quinta", explica Anne Helene Gjelstad. Os homens da ilha "nunca estavam presentes quando eram precisos". ©Anne Helene Gjelstad
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Lohu Ella, 2008. As mulheres de Kihnu fazem tudo. "Educar e criar as crianças, coser vestuário, cozinhar, reparar e conduzir tractores, cuidar dos animais da quinta", explica Anne Helene Gjelstad. Os homens da ilha "nunca estavam presentes quando eram precisos". ©Anne Helene Gjelstad

Ao largo do golfo de Riga existem dois pedaços de terra habitados e governados quase exclusivamente por mulheres. Chamam-se Kihnu e Manija e foram, durante 11 anos, alvo de estudo e documentação fotográfica por parte da norueguesa Anne Helene Gjelstad. O fotolivro que resulta desse trabalho, Big Heart, Strong Hands, editado este mês pela Dewi Lewis, retrata o quotidiano de 35 mulheres que povoam estas ilhas isoladas da Estónia, desvendando o motivo por que se diz que nelas vive a última sociedade matriarcal da Europa.

As coloridas e pitorescas casas de madeira que se destacam entre a floresta intocada de Kihnu são como as mulheres que as habitam: elas são frágeis, sensíveis, mas aguentam-se firmes, ano após ano, através dos longos invernos glaciares da ilha. As mulheres de Kihnu realizam qualquer tarefa, assumem qualquer cargo. São mães, são agricultoras, são líderes. Só não enterram quem morre. Esse é, talvez, o único trabalho reservado aos homens, que são poucos. Muito poucos. Eles começaram a desaparecer do dia-a-dia há dois séculos, quando adoptaram a pesca e a caça às focas como actividades principais. Para trás, meses a fio por cada ano, deixaram as suas terras, os seus cultivos e animais. Deixaram, também, mulher e filhos.

"Elas passaram a ter de tomar conta de tudo", explicou Anne Helene Gjelstad ao P3, em entrevista por e-mail. "Educar e criar as crianças, coser vestuário, cozinhar, reparar e conduzir tractores, cuidar dos animais da quinta." Os homens da ilha "nunca estavam presentes quando eram precisos" e a terra não descansa. Muito menos os filhos. Com ou sem os homens presentes, Kihnu nunca parou. "A vida é muitas vezes difícil. E isso é normal aqui. Ninguém faz perguntas e todos fazem o que devem. É assim que se forma um coração grande e mãos fortes. Quando entendi isso, o meu projecto ganhou um título." Graças a todas essas mudanças e a toda essa força, formou-se uma sociedade de características únicas baseadas na independência e poder femininos. "Uma sociedade em que mulheres, sobretudo mães, assumem os cargos políticos, exercem autoridade moral e controlam a propriedade."

Hoje, nas quatro aldeias de Kihnu, vivem permanentemente 350 pessoas — apesar de estarem registadas cerca de 700. Há 39 crianças matriculadas na escola básica da ilha. Em Manija, há apenas 25 habitantes. "Muitos vivem nas ilhas em tempo parcial", explica Anne Helene. "Aos 16 anos", conta, "é comum que as crianças saiam da ilha para frequentar a escola secundária, na Estónia continental". Geralmente não regressam. Deixam-se ficar por Talin ou Pärnu. Ou então emigram. "A educação é necessária, mas empregos que servem para pagar contas também." Esses escasseiam.

Mas existe, desde 2003, um motivo para ter esperança. Declarada pela UNESCO como Património Cultural Imaterial da Humanidade, Kihnu viu consagradas e reconhecidas as suas tradições, rituais, música, artesanato e dialecto local. Hoje, o turismo já garante o sustento a muitas famílias. "É um motivo para que as pessoas se fixem na ilha. Participam em performances de dança e música tradicionais, vendem artesanato, comida, exploram alojamentos e serviços como o aluguer de bicicletas. Tudo isto é, agora, parte do dia-a-dia." Mas não há bela sem senão. Até há poucos anos, as casas de Kihnu não tinham fechaduras. Uma vassoura encostada à porta de entrada sinalizava ausência do morador — e essa era respeitada por todos. "Hoje, os cadeados são usados para proteger as propriedades de turistas que não respeitam ou compreendem a vassoura."

O turismo é fonte de rendimento, mas também de preocupação. Se, por um lado, vender as tradições e transmitir conhecimento é uma forma de manter viva a cultura de Kihnu, por outro começa a mudar a face da ilha. "Hoje em dia, as quintas têm quase todas uma placa com um nome e há muitos locais para pernoitar. O museu local foi renovado e desenvolve actividades regularmente. Há visitas guiadas realizadas por mulheres com enfoque na cultura." Anne Helene considera o local "demasiado turístico" durante o Verão. "Para turistas tradicionais, isso não será um problema, mas para pessoas que, como eu, se interessam por história e cultura dos locais, será preferível ir noutras estações do ano." Foi por ter interesse na história do local que se debruçou sobre a vida de 35 mulheres idosas "e as tradições que, em breve, estarão extintas". Das 35 mulheres que retratou, apenas dez se mantêm vivas.

Sauendi Mann, fotografia de 2010. "Era uma mulher jovem quando foi, em tempos de ocupação soviética, trabalhar para a floresta. Teve de levar o seu filho pequeno com ela e uma árvore caíu-lhe em cima. Desde então, todos os dias desejou ter sido morta na sua vez."
Sauendi Mann, fotografia de 2010. "Era uma mulher jovem quando foi, em tempos de ocupação soviética, trabalhar para a floresta. Teve de levar o seu filho pequeno com ela e uma árvore caíu-lhe em cima. Desde então, todos os dias desejou ter sido morta na sua vez." ©Anne Helene Gjelstad
Järsumäe Virve, 2009. Järsumäe é compositora de música tradicional de Kihnu e "aparece regularmente na televisão e nos jornais". "Com 81 anos realizou o sonho de saltar em pára-quedas. É uma mulher doce e todos querem estar com ela."
Järsumäe Virve, 2009. Järsumäe é compositora de música tradicional de Kihnu e "aparece regularmente na televisão e nos jornais". "Com 81 anos realizou o sonho de saltar em pára-quedas. É uma mulher doce e todos querem estar com ela." ©Anne Helene Gjelstad
Kihnu, Estónia. Os invernos são muito frios, podendo atingir os 30 graus negativos.
Kihnu, Estónia. Os invernos são muito frios, podendo atingir os 30 graus negativos. ©Anne Helene Gjelstad
Rilka Ann, 2013. "A vida é muitas vezes difícil", diz a autora deste projecto fotográfico. "E isso é normal aqui. Ninguém faz perguntas e todos fazem o que devem. É assim que se forma um coração grande e mãos fortes."
Rilka Ann, 2013. "A vida é muitas vezes difícil", diz a autora deste projecto fotográfico. "E isso é normal aqui. Ninguém faz perguntas e todos fazem o que devem. É assim que se forma um coração grande e mãos fortes." ©Anne Helene Gjelstad
Kuraga Elvi, 2008. No final do século XIX, os homens de Kihnu passaram a dedicar-se à pesca e à caça à lontra. Desde então, as mulheres assumiram a responsabilidade de cuidar das quintas e dos animais.
Kuraga Elvi, 2008. No final do século XIX, os homens de Kihnu passaram a dedicar-se à pesca e à caça à lontra. Desde então, as mulheres assumiram a responsabilidade de cuidar das quintas e dos animais. ©Anne Helene Gjelstad
O galo de Kuraga Elvi, 2008.
O galo de Kuraga Elvi, 2008. ©Anne Helene Gjelstad
Lohu Ella, 2008. É a mais experiente artesã de Kihnu. Aprendeu a coser aos 4 anos. Conviveu com soldados alemães, durante a Segunda Guerra Mundial, na ilha, que vinham a Kihnu com o objectivo de recrutar homens para o serviço militar. "Ella ri ao lembrar alguns homens vestidos de mulher, tapando a cara com um lenço."
Lohu Ella, 2008. É a mais experiente artesã de Kihnu. Aprendeu a coser aos 4 anos. Conviveu com soldados alemães, durante a Segunda Guerra Mundial, na ilha, que vinham a Kihnu com o objectivo de recrutar homens para o serviço militar. "Ella ri ao lembrar alguns homens vestidos de mulher, tapando a cara com um lenço." ©Anne Helene Gjelstad
Lohu Ella, 2008. O seu pai morreu com 42 anos de idade, quando tinha apenas 15 anos. No mesmo ano, Ella terminou os estudos e trabalhou como servente de obra do centro cultural de Kihnu.
Lohu Ella, 2008. O seu pai morreu com 42 anos de idade, quando tinha apenas 15 anos. No mesmo ano, Ella terminou os estudos e trabalhou como servente de obra do centro cultural de Kihnu. ©Anne Helene Gjelstad
Lohu Ella, 2008. Ella é muito activa e respeitada pela sociedade local por causa dos seus dotes artísticos e enquanto líder do coro da igreja de São Nicolau. Preocupa-se com o futuro da ilha. Vê parte dela abandonada, tomada pela natureza, e outra parte totalmente remodelada.
Lohu Ella, 2008. Ella é muito activa e respeitada pela sociedade local por causa dos seus dotes artísticos e enquanto líder do coro da igreja de São Nicolau. Preocupa-se com o futuro da ilha. Vê parte dela abandonada, tomada pela natureza, e outra parte totalmente remodelada. ©Anne Helene Gjelstad
Anne Helene conheceu Koksi Leida algumas horas após a sua morte. Quando uma mulher Kihnu chega aos 60 anos, começa a preparar o seu próprio funeral. Cose um vestido bonito e escolhe seis homens jovens para a enterrar. O funeral dura três dias.
Anne Helene conheceu Koksi Leida algumas horas após a sua morte. Quando uma mulher Kihnu chega aos 60 anos, começa a preparar o seu próprio funeral. Cose um vestido bonito e escolhe seis homens jovens para a enterrar. O funeral dura três dias. ©Anne Helene Gjelstad
Pulli Anni, 2009. "Eram sempre os dois, Anni e o seu cão Suli." Nenhum dos dois é vivo. O celeiro ardeu, a casa foi tomada por outros.
Pulli Anni, 2009. "Eram sempre os dois, Anni e o seu cão Suli." Nenhum dos dois é vivo. O celeiro ardeu, a casa foi tomada por outros. ©Anne Helene Gjelstad
Pulli Anni, 2009. "As imagens na parede da sala de estar contam a história de uma mulher forte e bonita. Contam uma história de família, de música, alegria e da vida em Kihnu em tempos passados."
Pulli Anni, 2009. "As imagens na parede da sala de estar contam a história de uma mulher forte e bonita. Contam uma história de família, de música, alegria e da vida em Kihnu em tempos passados." ©Anne Helene Gjelstad
Põllu Marta vive em Manija, é dependente da ajuda de terceiros. Em 2010, quando Anne Helene a visitou, vivia com o filho Evalt. Dois anos depois, passou a viver com outro filho Paul.
Põllu Marta vive em Manija, é dependente da ajuda de terceiros. Em 2010, quando Anne Helene a visitou, vivia com o filho Evalt. Dois anos depois, passou a viver com outro filho Paul. ©Anne Helene Gjelstad
Oia Anni, 2010. Das 35 mulheres que Anne Helene fotografou para o projecto "Big Heart, Strong Hands", apenas 10 permanecem vivas. A fotógrafa acredita que, com elas, se extinguirão alguns dos costumes da ilha.
Oia Anni, 2010. Das 35 mulheres que Anne Helene fotografou para o projecto "Big Heart, Strong Hands", apenas 10 permanecem vivas. A fotógrafa acredita que, com elas, se extinguirão alguns dos costumes da ilha. ©Anne Helene Gjelstad
A mesa está posta na casa de Põllu Marta. Sobre ela há doçaria tradicional de Kihnu. Também Põllu já faleceu. Fotografia de 2010
A mesa está posta na casa de Põllu Marta. Sobre ela há doçaria tradicional de Kihnu. Também Põllu já faleceu. Fotografia de 2010 ©Anne Helene Gjelstad
Vanajüri Anni, 2008. Nasceu em 1928 e é a mais velha de 22 irmãos. Passou quase toda a sua vida em Manija, cuidando da sua quinta. É mãe de seis. Um dos filhos morreu afogado. É uma dor que traz consigo até hoje.
Vanajüri Anni, 2008. Nasceu em 1928 e é a mais velha de 22 irmãos. Passou quase toda a sua vida em Manija, cuidando da sua quinta. É mãe de seis. Um dos filhos morreu afogado. É uma dor que traz consigo até hoje. ©Anne Helene Gjelstad
Vahtra Helju e a vaca Mari, 2008. Vahtra insistiu em ser fotografada com a sua querida vaca Mari.
Vahtra Helju e a vaca Mari, 2008. Vahtra insistiu em ser fotografada com a sua querida vaca Mari. ©Anne Helene Gjelstad
Tika Mann, 2013. "A última vez que visitei Tika Mann, ela estava no exterior da sua quinta a usar uma saia que pertenceu à sua mãe e que tinha mais de cem anos. Tive dificuldade em acreditar, mas outros confirmaram."
Tika Mann, 2013. "A última vez que visitei Tika Mann, ela estava no exterior da sua quinta a usar uma saia que pertenceu à sua mãe e que tinha mais de cem anos. Tive dificuldade em acreditar, mas outros confirmaram." ©Anne Helene Gjelstad
Sauendi Mann, 2009. Ao tirar este retrato, Sauendi disse a Anne Helene "Em breve, também eu estarei aqui."
Sauendi Mann, 2009. Ao tirar este retrato, Sauendi disse a Anne Helene "Em breve, também eu estarei aqui." ©Anne Helene Gjelstad
©Anne Helene Gjelstad