Resistências aos antimicrobianos – a aprovação do acto médico-veterinário é urgente

Os agentes que adquirem resistências aos antimicrobianos após utilização na medicina veterinária são também uma ameaça à saúde humana. E vice-versa. É preciso que os deputados façam a sua parte.

Em Abril passado foi tornado público pelo Grupo Ad hoc de Coordenação Interagências (IACG) para a Resistência Antimicrobiana, um relatório dirigido ao secretário-geral das Nações Unidas, intitulado: Não há tempo a perder: acautelar o futuro contra infecções resistentes aos medicamentos.

Não é um tema novo. Antes pelo contrário. Mas números impressionantes e perspectivas alarmantes desencadearam mais esta exortação ao mundo, desta vez através da figura máxima da ONU. Por exemplo, calcula-se que as doenças infecciosas resistentes aos antimicrobianos (coloquialmente designados por antibióticos [1]) causam actualmente mais de 700.000 mortes anuais em todo o mundo, e prevê-se que esse número possa aumentar para 10 milhões de mortes por ano até 2050. O secretário da Saúde do Governo britânico chegou a referir no seu discurso na reunião de Davos deste ano, que os agentes infecciosos resistentes aos antimicrobianos são uma ameaça para a humanidade tão séria como o aquecimento global ou o terrorismo.

Para melhor compreensão devemos começar pelo básico. O que são e como surgem as resistências aos antimicrobianos? Desde meados do século passado que os humanos descobriram que há substâncias que matam ou danificam irreversivelmente certos microorganismos, principalmente bactérias. Com o advento destes antimicrobianos/antibióticos pensou-se que, finalmente, a Medicina iria superar ou mesmo extinguir certas doenças. Só que subestimámos o inimigo e abusámos ou demos mau uso às novas armas, abrindo caminho para o contra-ataque de que agora nos queixamos. O que aconteceu foi que a exposição frequente e repetida a níveis sub-letais de antimicrobianos tem vindo a seleccionar populações de microrganismo resistentes. São, portanto, os microorganismos sobreviventes que terão mais hipóteses de deixar descendência e de fazer proliferar essa resistência. Alguns desses agentes infecciosos são já denominados super-bactérias (super-bugs), pois adquiriram resistência a (quase) todos os antimicrobianos disponíveis. Para piorar, a investigação científica demonstrou que certas bactérias conseguem transmitir a outras populações a capacidade de resistir aos antimicrobianos. Ou seja, existe um risco acrescido de criação e propagação de populações multirresistentes no ambiente, nos animais, nos alimentos e nos hospitais.

O uso, mal-uso e abuso dos antimicrobianos acontece em muitas áreas da actividade humana, nomeadamente no tratamento e prevenção de doenças humanas, animais e vegetais e ainda como promotor de crescimento de algumas espécies de pecuária. Daí ser lógico apelar ao desenvolvimento de planos estratégicos de luta contra as resistências antimicrobianas através da abordagem de “Uma Só Saúde”.

No mundo actual as ameaças à Saúde não conhecem fronteiras. Não reconhecem fronteiras geográficas, mas também não reconhecem fronteiras inter-espécies. Os agentes que adquirem resistências aos antimicrobianos após utilização na medicina veterinária são também uma ameaça à saúde humana. E vice-versa. Esperar por uma Saúde humana sem simultaneamente lutar por uma Saúde animal, é perder tempo e recursos. A relação causa-efeito move-se nos dois sentidos e é, portanto, essencial que as resistências aos antimicrobianos sejam discutidas e salvaguardada por profissionais dos dois ramos. Continuar a fazê-lo isoladamente é tão estúpido como esperar que uma epidemia se detenha na fronteira de um país.

É esse exactamente um dos apelos feitos no relatório para a ONU. Consideram os seus autores que as resistências apenas poderão ser controladas e revertidas se houver um “uso responsável e prudente por profissionais competentes e autorizados na área da saúde humana, animal e vegetal”. Ou seja, não se pretende eliminar o uso de antimicrobianos na terapêutica, até porque o recrudescimento de muitas doenças seria bem mais devastador, mas sim racionalizar e controlar o seu uso. Por profissionais competentes.

Ora, se este uso judicioso e responsável nem em medicina humana é assegurado completamente, imagina-se o que acontece na área da medicina veterinária e na produção animal e vegetal. Apesar de se saber que a prescrição é uma exclusividade médica, sabemos bem que a fiscalização não é fácil e que as penalizações para os prevaricadores são raras. Os antimicrobianos continuam a ser administrados com pouco ou nenhum critério científico e médico, por pessoas com pouca ou nenhuma habilitação. Como se viu, é um assunto demasiado grave para continuar a ser ignorado, menosprezado ou adiado.

Vem estas reflexões a propósito de uma iniciativa legislativa que se iniciou há mais de um ano – a aprovação definitiva do Acto Médico Veterinário (Projecto de Lei n.º 525/XIII). A aprovação deste documento é tão lógica e sensata, que não se percebe porque continua encravado na burocracia e (má)vontade do nosso Parlamento. Não interessa ser aprovado? A quem?

Esta demora é tão mais estranha quanto se verifica que a lei já foi aprovada na generalidade e que agora, aparentemente, apenas encalhou em pequenos detalhes. No entanto, durante um ano inteiro não pareceu haver interesse em resolver as pequenas questões que incomodam alguns, optando antes por manter toda a legislação em banho-maria.

Termino explicando como estes dois temas se relacionam – enquanto o diagnóstico e decisão da terapêutica de animais doentes e enquanto o estabelecimento de planos de saúde e estabelecimento de acções profilácticas na produção animal, não ficarem sob a alçada exclusiva e bem definida de profissionais para isso competentes, o risco de estabelecimento de resistências aos antimicrobianos continuará a ser uma realidade. Deixar a responsabilidade da administração de antimicrobianos e outros medicamentos num limbo indefinido vai continuar a permitir os abusos que nos trouxeram a esta situação desesperada. 

O combate mundial às resistências aos antimicrobianos começa no tratamento do indivíduo doente, em cada exploração de pecuária e em cada país. Não pode depender só de legislação e regras internacionais. Aliás, o próprio relatório para a ONU recomenda que o “reforço da vigilância, dos quadros reguladores, formação profissional e supervisão do uso e prescrições de antimicrobianos, assim como uma maior sensibilização de todas as partes interessadas, são igualmente significativos desafios que terão de ser urgentemente superados para garantir o uso responsável de antimicrobianos e para minimizar as resistências no homem, animais, plantas, alimentos e ambiente”.

Para isso é preciso que os deputados façam a sua parte.

[1] A utilização da palavra “antimicrobiano” em vez do mais comum “antibióticos” é preferível já que alguns produtos usados no combate a bactérias não são verdadeiramente antibióticos.

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