“É preciso olhar para os mais felizes, observá-los e aprender com eles”

As aulas de Tal Ben-Shahar na Universidade de Harvard ficavam lotadas para o ouvir falar sobre felicidade. Foi um dos precursores da psicologia positiva, e continua a fazer estudos e a investigar. Em simultâneo, anda pelo mundo em conferências.

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O investigador esteve em Portugal há dez anos e regressou para falar na Happy Conference Miguel Manso

O Teatro Tivoli, em Lisboa, está cheio de homens e mulheres que são quadros médios e superiores de diversas empresas, mas também há aspirantes a sê-lo. É a Happy Conference que celebra a sua décima edição com o regresso do seu primeiro orador, Tal Ben-Shahar.

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O Teatro Tivoli, em Lisboa, está cheio de homens e mulheres que são quadros médios e superiores de diversas empresas, mas também há aspirantes a sê-lo. É a Happy Conference que celebra a sua décima edição com o regresso do seu primeiro orador, Tal Ben-Shahar.

No palco, o professor agarra a atenção de todos durante um dia que começou às 9h30 da manhã e terminou depois das 17h30. Fala sobre felicidade e lideranças que fazem a diferença no mundo, precisamente na data em que se celebra o Dia Mundial da Felicidade, 20 de Março. Tal Ben-Shahar criou um dos cursos mais populares da Universidade de Harvard sobre Psicologia Positiva. Escreveu vários livros, entre eles Aprenda a Ser Feliz, editado em Portugal em 2009, e The Joy of Leadership, escrito em co-autoria com Angus Ridgway.

Depois de um dia em pé, em palco, é tempo de um cocktail com os patrocinadores da conferência e, por fim, de dar uma entrevista ao PÚBLICO. Sem revelar cansaço, Tal Ben-Shahar responde com precisão e vai citando vários investigadores e filósofos, revelando como, apesar de andar em digressão pelo mundo, se mantém a par do que se faz na sua área científica, a da felicidade e do bem-estar. De uma coisa tem a certeza: é tempo de mudança, é preciso introduzir a felicidade nos currículos, nas empresas, na economia, na política.

Diz que 40% da nossa felicidade se prende com escolhas que fazemos para sermos felizes. Por que temos tanta dificuldade em fazer essas escolhas?
O que a pesquisa mostra é que 50% da nossa felicidade é genética, 10% tem que ver com o contexto em que vivemos e 40% com opções pessoais. Isto são médias. Se falarmos de um sírio, numa zona de guerra, as circunstâncias externas pesam mais do que 10%; se falarmos de alguém que seja muito pobre e passe fome ou de uma mulher que viva num país onde não tem direitos, também. O mesmo podemos dizer para as questões genéticas, há pessoas que são mais susceptíveis à depressão ou à ansiedade, portanto o peso será superior a 50%. E acontece o mesmo com as nossas escolhas. A média diz que é 40%, mas para uma pessoa pode ser 70% e para outra 10%.

O que faz a diferença?
O quão despertos e conscientes estamos para sermos felizes. A maior parte das escolhas que fazemos na vida é fácil. No entanto, esquecemo-nos com frequência de que temos essa escolha e de que precisamos de lembretes. 

Então, por que fazemos más escolhas?
Porque quando estamos ocupados e com pressa — como estão tantas pessoas no mundo em que vivemos —, o que acontece é que não temos tempo para escolher e reagimos ao que o mundo exterior nos impõe, não fazendo escolhas conscientes. Temos de dar um passo atrás e reflectir, ter lembretes na nossa vida para que possamos fazer melhores escolhas. É preciso tempo e espaço.

Mas como é que arranjamos tempo e espaço nesse mundo de pressa em que vivemos?
A maneira mais simples é ir a workshops, seminários, ler livros sobre estas questões. Isso permite-nos estar mais conscientes. Por outro lado, ter lembretes, por exemplo ter uma pulseira que nos lembre as coisas que temos para fazer, ou ter algo escrito no smartphone. O objectivo é introduzir rituais na nossa vida.

Uma das razões por que não conseguimos arranjar esse tempo é porque nos dedicamos demasiado à vida profissional?
Passamos muito tempo no trabalho, e o problema não é o stress que vivemos nas horas de trabalho, esse faz parte; o problema é que não temos tempo para recuperar desse stress. Mesmo quando estamos supostamente recompostos e vamos sair com amigos, seja num restaurante lisboeta, nova-iorquino ou em Bombaim, encontramos sempre o mesmo: as pessoas estão juntas, mas não estão realmente juntas. Falam ao telefone, enviam SMS, fazem coisas que as distraem. Portanto, não recuperaram realmente do stress. No passado não era assim. As pessoas trabalhavam muito, sentiam stress, mas quando saíam do trabalho, saíam realmente. Hoje estamos ligados à tecnologia quase sete dias por semana, 24 horas por dia. 

Ou seja, saímos do trabalho mas levamo-lo connosco, no telefone.
Nas conferências, costumo perguntar: “Quando acorda de manhã, qual é a primeira coisa que vê? É a sua querida mulher, ou o seu querido marido, ou outra coisa qualquer?”

É o telemóvel.
Eu não digo o que é [nas conferências], mas todos se riem porque sabem que é a primeira coisa que vêem de manhã. Precisamos de nos desligar, pelo menos durante algumas horas diárias.

Como podemos fazê-lo?
Uma das maneiras de nos desligarmos é fazendo outras coisas: meditação, ioga, ir ao ginásio sem o telefone. O objectivo é desligarmo-nos da tecnologia algumas horas por dia. A tecnologia é a dependência número um nos nossos dias. Não são as drogas, o álcool, o jogo, mas o ecrã e três coisas com ele relacionadas: as redes sociais, a pornografia e os jogos. Imagine que é alcoólica, adormeceria com uma garrafa de whisky na mesa de cabeceira? E a primeira coisa que veria, mal acordasse, seria aquela garrafa? Claro que não! Então, porque dormimos com o telefone, a fonte da nossa dependência, à beira da cama? Assim não conseguimos vencer essa dependência. Precisamos de espaços físicos, assim como de tempo para nos desligarmos da tecnologia.

Regressando ao tempo de trabalho, o que podemos alterar para nos sentirmos mais felizes?
A primeira coisa é permitirmo-nos recuperar, não só por palavras mas por acções. Há muitos líderes que dizem que é importante parar, mas depois estão até à meia-noite no local de trabalho, e estão sempre a responder aos emails mal os recebem. Quando um empregado vê isso, sente-se na obrigação de fazer o mesmo. Os chefes têm de dar o exemplo.
A segunda coisa, numa organização, é ter segurança psicológica, ou seja, ter espaços em que o risco é encorajado e o erro não é penalizado. Mais uma vez, o exemplo vem de cima. A terceira coisa é a importância das relações no local de trabalho. As organizações devem encorajar a que as pessoas tenham relações de proximidade. Outra coisa importante é o exercício físico. Os médicos já dizem que estar sentado é o novo fumar, porque estar tantas horas sentado já está associado a doenças crónicas, infelicidade, depressão. 

E as lideranças das empresas estão cientes disso?
Não o suficiente, além da consciencialização, falta a execução. Fazer.  

Uma das razões para mudar prende-se com o aumento dos problemas de saúde mental?
A saúde mental é um enorme problema. Por exemplo, a cada cinco anos, nos EUA, é feita uma avaliação à saúde mental dos adolescentes. Este ano, a psicóloga Jean Twenge, da Universidade Estadual de San Diego, olhou para os dados e concluiu que os níveis de depressão aumentaram em cerca de 20%, assim como a taxa de suicídio subiu mais de 30%. Nunca antes tivemos aumentos destes. Quando analisou os dados, relacionou este crescimento com o aparecimento dos smartphones

E o que se passa com os adultos?
Actualmente sou convidado por organizações empresariais por causa do aumento do burnout, que se manifesta nas pessoas que adoecem, metem baixa, abandonam os seus trabalhos porque não aguentam a pressão, os níveis de ansiedade. É preciso terem tempo para recuperar.

E quanto aos mais novos?
O stress é importante para fortalecer, não queremos superprotegê-los.

Porque queremos que aprendam a ser resilientes.
Exactamente! Queremos stress na escola, no ginásio, na vida, mas também tempo para recuperar. Essa é a primeira coisa. A segunda é ter relações de amizade, a qualidade de tempo que passam com outras pessoas. Fiz um relatório onde comparávamos a América Latina com a América do Norte e a Europa, em termo dos níveis de felicidade. Os níveis são mais altos na América Latina, sabemos que é a região mais feliz do mundo, e esses resultados não foram uma grande surpresa. Mas descobrimos outra coisa, quando dividimos os dados por faixas etárias — dos 18 aos 34; dos 35 aos 54; dos 55 para cima —, descobrimos que a razão para que esta seja a região mais feliz do mundo é por causa dos mais velhos.

Porque não têm smartphones?
Bem... É mesmo isso! A geração mais jovem da América Latina é tão feliz ou infeliz quanto é a da América do Norte ou da Europa. Há duas razões para a geração mais velha ser mais feliz: uma é a espiritualidade, mas a principal tem que ver com as relações entre as pessoas. Não é que a geração mais nova não valorize os relacionamentos, são importantes para ela, só que a maioria tem relações virtuais. Não me interprete mal, não sou contra a tecnologia, esta é extraordinária, permite-nos conhecer pessoas, recuperar velhas amizades, mas quando o tempo social dos mais novos passa exclusivamente pelas redes sociais, isso é pouco. Eles são mais infelizes porque não passam mais tempo em relações cara a cara.

Mencionou a importância da espiritualidade nos mais velhos. Para sermos felizes precisamos de Deus na nossa vida?
É óbvio que tenho a minha crença pessoal, mas como cientista a questão é saber que papel tem a religião na felicidade. Há uma resposta: a religião contribui para a felicidade. Em média, as pessoas que acreditam em Deus, que têm uma religião, são mais felizes. Claro que isto não significa que os ateus não possam ser felizes e que não haja religiosos deprimidos. 

Por que razão são mais felizes?
A primeira resposta é que são pessoas que têm um propósito na vida. A determinada altura, Albert Camus, o filósofo existencialista francês, disse que tinha de fazer uma escolha, se bebia café ou se se suicidava. Porque não tinha um sentido para a sua vida. Uma pessoa que é religiosa não se confronta com este tipo de escolhas, para ela há um propósito e um significado na vida: adorar a Deus, contribuir para o mundo criado por Deus. É muito mais fácil. A segunda resposta é que a religião cria comunidade, independentemente de se ir à igreja ao domingo, à sinagoga ao sábado, à mesquita à sexta-feira, ou a qualquer templo noutro dia da semana. Há comunidade. Também há feriados e dias festivos que se comemoram em conjunto. A religião permite-nos focarmo-nos na família e na comunidade. Terceira resposta: gratidão. Dizemos obrigado pelo pão de cada dia, por nos levantarmos de manhã, por este mundo miraculoso que não podemos tomar por garantido. Quarta: na religião há rituais que são lembretes, lembram-nos a pessoa boa e generosa que queremos ser. Em resumo, a religião tem muitos elementos que encontramos actualmente na ciência da felicidade. 

Então temos de ser religiosos para sermos felizes?
Não necessariamente. Podemos aprender com a religião. Alain de Botton, para mim, é o maior filósofo vivo, publicou Religião para Ateus, onde escreve que, mesmo que sejamos ateus, há muito que podemos e devemos aprender com as religiões. Essa é também a minha recomendação enquanto cientista.

Os jovens estão mais infelizes, mas vimo-los recentemente a manifestarem-se contra as alterações climáticas. Isto revela que estão preocupados com a sua felicidade e o seu bem-estar?
Em todas as idades podemos comprometer-nos com uma causa. No entanto, há idades em que o nosso cérebro está mais desperto para valores e propósitos — a dos adolescentes e jovens. Isto não significa que alguém com 50 ou 70 anos não pense e não se comprometa. Embora os miúdos tenham essa predisposição, uma das coisas que mata esse propósito são os ecrãs. Porque se passam horas intermináveis a jogar Fortnite ou nas redes sociais, isso anestesia o seu desejo de mudança. 

A forma como os educamos não vai no sentido de evitarmos que tenham experiências negativas?
Sim, rejeitamos as emoções negativas. E, mais uma vez, quando vamos às redes sociais, o que vemos? Pessoas felizes, a toda a hora. As férias perfeitas, a relação perfeita. Não vemos os conflitos, as zangas, as lágrimas. Olhamos para a nossa vida e pensamos: “O que há de errado comigo?” Sentimo-nos ainda pior e rejeitamos as emoções dolorosas. Não só o que mostramos ao mundo, mas o que admitimos a nós próprios.

Depois de satisfeitas as nossas necessidades básicas, os nossos critérios de felicidade tornam-se cada vez mais exigentes?
As nossas expectativas são mais exigentes. A pesquisa de Iris Mauss mostra que as pessoas para quem a felicidade é muito importante tendem a ser menos felizes. Por um lado, é importante ir atrás da felicidade — torna-nos mais produtivos, temos melhores relações, vivemos mais tempo, é um bom investimento; por outro, como é muito importante, as nossas expectativas são muito altas e seremos menos felizes. Portanto, a solução é buscar a felicidade indirectamente. Não nos preocuparmos com a felicidade, mas procurarmos um sentido para aquilo que fazemos. Isso contribui para a nossa felicidade.

As Nações Unidas e a OCDE já fizeram relatórios sobre o bem-estar e a felicidade. Há algum critério de que estejam a esquecer-se na medição da felicidade?
É importante olhar para as componentes da felicidade, medir as relações, os períodos de recuperação, etc. A segunda coisa é não olhar apenas para a média. É preciso olhar para os mais felizes de cada país: porque são tão felizes naquele bairro? Estudar os melhores e aprender com eles. A média é importante, descreve, mas não prescreve. É preciso democratizar a excelência. Este é o tipo de investigação que gostava de ver ser feita por essas organizações.

Os governos estão atentos a estes relatórios e a introduzir políticas que visam a felicidade dos seus cidadãos?
Os governos têm de medir a felicidade e têm de a introduzir no sistema educativo. Martin Seligman, pai da psicologia positiva, sempre que fala para pais ou professores, começa com duas perguntas. A primeira é: “O que desejam para as vossas crianças?” Os adultos respondem que querem que elas sejam felizes, que tenham amigos, que sejam resilientes, saudáveis, etc. E ele faz uma lista no quadro com as respostas. Depois lança a segunda pergunta: “O que aprendem as vossas crianças na escola?” E faz nova lista com as disciplinas. Quase nunca há sobreposição entre as duas listas. Não é que a segunda não seja importante! É muito importante aprender a ler e a contar, aprender História e Geografia. Mas por que estão as escolas a ignorar a primeira lista, sobretudo quando já temos uma ciência da felicidade e do bem-estar, que não existia há 30 anos? Se ensinarmos ou cultivarmos a primeira lista na escola, também vamos ter um melhor desempenho na segunda lista, porque sabemos que se as crianças estiverem felizes, saudáveis, resilientes e tiverem boas relações também terão um melhor desempenho na escola. Por isso, os governos devem pôr a felicidade nos currículos, tal como a Matemática ou o Português, pois não é menos importante.

Desde que começou as suas aulas em Harvard até hoje, o que mudou?
Nos últimos 15 anos temos assistido a pequenas mudanças. Vou a escolas, universidades, empresas, organizações e assisto a pequenas mudanças. Quando os governos, os professores, os empresários perceberem o quão importante é a felicidade e o bem-estar e não apenas os bem materiais, então tudo mudará. A inflexão, a mudança, está a chegar e será para breve.