Esta exposição não foi feita para dar likes

No programa paralelo da ARCOmadrid, a exposição do curador português João Laia reflecte sobre a arte no mundo pós-Internet.

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“Todo o espectador é um cobarde ou um traidor”, ouvimos dizer uma voz manipulada digitalmente, saída do vídeo de Pedro Barateiro, The Opening Monologue, uma obra de 14 minutos que abre na Casa Encendida, em Madrid, a exposição Drowning in a Sea of Data, comissariada por João Laia, no programa paralelo da ARCOmadrid, a feira de arte contemporânea que abre nesta quarta-feira para profissionais na capital espanhola e que decorre até domingo. A frase de Frantz Fanon, um filósofo do pós-colonialismo, ecoa em várias outras que nos querem fazer reflectir sobre o poder colonizador da linguagem.

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“Todo o espectador é um cobarde ou um traidor”, ouvimos dizer uma voz manipulada digitalmente, saída do vídeo de Pedro Barateiro, The Opening Monologue, uma obra de 14 minutos que abre na Casa Encendida, em Madrid, a exposição Drowning in a Sea of Data, comissariada por João Laia, no programa paralelo da ARCOmadrid, a feira de arte contemporânea que abre nesta quarta-feira para profissionais na capital espanhola e que decorre até domingo. A frase de Frantz Fanon, um filósofo do pós-colonialismo, ecoa em várias outras que nos querem fazer reflectir sobre o poder colonizador da linguagem.

Mas há muitos mundos dentro desta obra de Barateiro de 2018 que nos propõe um universo entre o humano e o robô, e, por último, ouvimos a voz metalizada perguntar: “Quem escreveu este monólogo?” Nesta exposição, há vários monólogos, perguntas sem resposta, nota o curador português — que não esteve presente na exposição visitada na véspera pela imprensa internacional — numa conversa com o PÚBLICO​.

O discurso de Pedro Barateiro é seguido por uma obra do peruano Nicolás Lamas — o Peru é este ano o país convidado da feira —, que nos coloca perante uma arqueologia do futuro. Vários artefactos são colocados sobre dez painéis solares, entre os quais uma reprodução da Vénus de Willendorf, mas também um iPhone penetrado por um objecto desconhecido, ao lado de outras peças que parecem saídas do mundo natural, como vários búzios ou tipos de rochas.

 A obra de Nicolás Lamas cria um universo ambivalente e muito poético, em que os painéis solares também parecem formar as grelhas que normalmente mapeiam as escavações arqueológicas. Com a sua arqueologia invertida que antevê o futuro construído através de vários intercâmbios de informação e de energia, a instalação O Fluxo das Cinzas (2019) não deixa de questionar no presente o significado e a função dos objectos.

Os trabalhos destes dois jovens artistas são acompanhados na exposição da Casa Encendida por obras de Korakrit Arunanondchai, Emma Charles, June Crespo, Pakui Hardware, Evan Ifekova, Tomasz Kowalski, Joanna Piotrowska, M Reme Silvestre, Sofia Reyes, James Richards & Leslie Thornton e Clemens von Wedemeyer. Mas João Laia, que na ARCOlisboa tem sido responsável pelo programa Opening dedicado às novas galerias, diz que este é um projecto que se define por três gestos: uma exposição, um livro e um programa de performances. “Jogo com dois tempos diferentes e a exposição é só um deles. O livro é um tempo muito mais expansivo, de reflexão, que não analisa directamente nenhuma obra, mas quer mapear universos que a exposição aborda. As performances fazem exactamente o oposto, concentram e intensificam. Tentam jogar uma sobreposição temporal e espacial simultânea.”

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É já a segunda curadoria que João Laia faz neste ciclo expositivo da Casa Encendida sobre o progresso tecnológico e as novas formas de interacções sociais. “Afogar-se num Mar de Dados” (Drowning in a Sea of Data) analisa a hiperprodução de informação e a nossa impossibilidade humana de a consumir e processar, criando um sentimento de desorientação e ansiedade. “Não é uma exposição a olhar para tecnologia, mas como o social está a ser impactado pelos desenvolvimentos tecnológicos. Com todos os canais oficiais e oficiosos, não há a certeza de onde extrair a informação correcta. Não só se produz muito como essa informação nunca se fixa.”

Todas as nossas acções no universo da Internet, como o like numa publicação sobre esta exposição, estão a fornecer, individualmente, informação sobre nós e questionam as fronteiras entre trabalho e lazer. “Mas todo esse sistema de gestos é opaco. Eu não tenho um real entendimento dessa recolha de dados e como ela é transformada em lucro na nova economia do Big Data. Dar um like é fornecer dados para produzir esse universo líquido. Para nós, é um passatempo, mas para a infra-estrutura no contexto do Big Data transforma-se em lucro. Portanto, nós estamos a trabalhar porque estamos a produzir mais-valia.”  

Foi esta incerteza e instabilidade num universo poroso em constante reconfiguração que o curador quis explorar na cenografia da exposição, uma vez que no universo da Internet a coexistência temporal e espacial é quase uma excentricidade. “A exposição trabalha muito o espaço, a desmaterialização, mostrando como este é essencial para a construção da narrativa.” A caixa branca, o normal dispositivo de exposição na contemporaneidade, torna-se fluido. “Criámos superfícies ondulantes através de cortinas, onde não há uma imagem fixa, mas uma projecção contínua de luz, cheia de nuances. A exposição é hiperteatral, a cenografia é muito importante. Quisemos criar um espaço que não fosse fixo, sólido, mas antes líquido.”

Para perceber as nuances da exposição é preciso mesmo ir à Casa Encendida, em Madrid. Não é uma exposição que se possa apreender através de fotografias, sublinha João Laia. “Hoje, a forma como as exposições são representadas, como elas circulam, é quase tão importante quanto a forma como existem na realidade. Às vezes sinto que vi uma exposição em Tóquio sem ter ido ao Japão. Há uma hiperdocumentação na produção, na circulação e no consumo.”

Se há um sentimento de atomização e desconexão entre o indivíduo e o sistema, o curador explica que a exposição mostra que todos esses sentimentos são dinâmicas partilhadas e quase intrínsecas à mudança de paradigma resultado da revolução da Internet. Apesar do mundo paranóico representado nas pinturas do polaco Tomasz Kowalski, um herdeiro da tradição expressionista alemã, a metáfora da exposição, adianta João Laia, é a do peixe que nunca se afoga e de como o caos pode ser usado de uma forma produtiva.

O rato gigante do tailandês Korakrit Arunanondchai, representado numa escultura hiper-realista mas também no vídeo que compõe a instalação With History in a Room Filled with People with Funny Names, vem animado pelo budismo asiático: todos estes dados, que são também os nossos, hão-de reencarnar e viver novas vidas, mesmo que hoje pareçam andar sem destino, como a avó do artista que sofre de Alzheimer e manipula uma revista que traz Donald e Melania Trump na capa. 

O PÚBLICO viajou a convite do Turismo de Espanha