Populismo à portuguesa

Os folclóricos imitadores dos “coletes amarelos” gauleses não podem beneficiar de qualquer espécie de condescendência política.

1. Os jornais e as redes sociais têm vindo a anunciar a eclosão de uma movimentação popular inspirada no exemplo dos “gilets jaunes” franceses. Ontem foi mesmo publicado um manifesto supostamente elaborado por um grupo de promotores de tal iniciativa. Uma rápida leitura desse documento permite-nos sem dificuldade concluir que a tentativa de mimetização dos acontecimentos franceses se coloca no domínio da paródia. O texto em causa constitui uma exemplar demonstração de como uma mistura de populismo, ressentimento e demagogia pode ocasionar o surgimento de um discurso público abaixo das mais simples exigências de ordem ética e intelectual. Está ali quase tudo o que historicamente favoreceu a afirmação de posições antiliberais, antidemocráticas e propensas ao irracionalismo. A ignorância atrevida, a ofensa à inteligência e o elogio das pulsões primárias constituem o caldo de cultura onde germinam os extremismos políticos inimigos dos fundamentos dos regimes democrático-liberais.

Não chegámos até aqui por acaso. Estas delirantes tomadas de posição foram precedidas de um progressivo avanço de uma retórica política maniqueísta e sectária formulada através de uma linguagem empobrecida até aos limites da caricatura. Infelizmente essa retórica foi invadindo quase todos os planos da discussão pública ousando penetrar até em redutos institucionais onde nunca deveria ter irrompido. Acedeu-se a conviver com excessiva facilidade com formas degradadas da palavra e do gesto políticos. Mais tarde ou mais cedo pagar-se-ia um preço elevado por tais dislates.

Arguir-se-á que ainda não decaímos até aos níveis de baixeza e de miséria políticas que são já observáveis noutros países. É verdade. Contudo, damos sinais de para lá caminhar rapidamente se não reagirmos com a devida contundência aos ataques que procuram pôr em causa a solidez das nossas instituições democráticas. Os folclóricos imitadores dos “coletes amarelos” gauleses não podem, por isso, beneficiar de qualquer espécie de condescendência política. O que gritam, o que propõem, o que reclamam assenta numa representação demasiado simplificada da realidade económica, social e política e tem como horizonte uma visão unitária da comunidade incompatível com uma perspectiva livre e pluralista própria das democracias modernas. Haverá, contudo, que não confundir intransigência no plano político com menosprezo cívico para com quem quer que seja que se pronuncie de forma pacífica.

2. Bem pior e mais criticável do que o posicionamento assumido pelos promotores das atrás aludidas iniciativas populares foi a reacção exibida pelo presidente do sindicato dos magistrados do Ministério Público face a declarações proferidas por importantes figuras da nossa vida política nacional, incluindo-se entre elas o líder do maior partido da oposição. Este sindicato tem já um respeitável historial de maus serviços prestados ao edifício institucional democrático. O que apesar de tudo se não esperava era que o seu presidente actual se esmerasse em tratar o Parlamento com o mesmo nível de elaboração mental e moral com que os amotinados das rotundas francesas se têm vindo a referir às principais instituições do seu país. A um Presidente de um sindicato desta natureza exige-se muito mais do que um discurso populista pronunciado numa linguagem de taberna. Os insultos dirigidos ao Parlamento, sob a forma de insinuações de baixo nível, mereciam resposta dura e contundente. Verifiquei com agrado que Carlos César, o líder parlamentar do PS, não se atemorizou e reagiu com a veemência que as circunstâncias exigiam.

Há já bastante tempo que se tem vindo a instalar no nosso país, com o prestimoso contributo de uma parte da comunicação social e perante o silêncio da esmagadora maioria da comunidade política, um populismo judicial e justicialista deveras perigoso. Quando alguém ousa denunciá-lo é imediatamente submetido à suspeita de estar conivente com qualquer comportamento ilegal. Não faltam neo-inquisidores empenhados em tão vil serviço. Ora, o que daí resulta, para usar uma expressão cara a um colega de várias lides e que, aliás, muito prezo, é uma verdadeira “asfixia” cívica e democrática. Numa democracia liberal não pode haver poderes que se pretendam acima da esfera da discussão pública.

3. Na semana passada teci considerações sobre a forma como se processou a recepção nacional ao Presidente chinês. A dado passo reprovei aquilo que me pareceu ser um comportamento excessivamente reverente perante o chefe de um regime autocrático e critiquei explicitamente o nosso Presidente da República. O professor Marcelo Rebelo de Sousa, perante tal crítica, teve a gentileza de me informar que em várias ocasiões no decorrer dessa visita fizera alusão à questão fundamental do respeito pelos Direitos Humanos. Prestado o esclarecimento, resta-me transformar a crítica num elogio.

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