Foi para a cadeia por não ter electricidade para pulseira

“Este caso confronta-nos com as obrigações do Estado de direito social”, observa jurista que esteve na génese do cumprimento domiciliário das penas curtas de cadeia. Saragoça da Matta fala em interpretação da lei contrária à Constituição.

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O vendedor ambulante mora na zona velha do Barreiro Rui Gaudêncio

O caso de um vendedor ambulante com 36 anos e pai de três filhos, remetido para a cadeia por insistir em conduzir sem carta, está a suscitar críticas: podia estar a cumprir a pena de curta duração a que foi condenado em prisão domiciliária, mas como não possui electricidade legalizada na habitação, requisito essencial para a aplicação da pulseira electrónica, é obrigado a passar os fins-de-semana no estabelecimento prisional do Montijo.

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O caso de um vendedor ambulante com 36 anos e pai de três filhos, remetido para a cadeia por insistir em conduzir sem carta, está a suscitar críticas: podia estar a cumprir a pena de curta duração a que foi condenado em prisão domiciliária, mas como não possui electricidade legalizada na habitação, requisito essencial para a aplicação da pulseira electrónica, é obrigado a passar os fins-de-semana no estabelecimento prisional do Montijo.

O caso chocou uma das juristas que esteve na génese da lei que permite que sejam cumpridas em casa as penas de prisão inferiores a dois anos, Maria João Antunes. “O desejável é que nessas situações sejam criadas condições pelos serviços que permitam a execução da pena de prisão na habitação, o que implica colocar electricidade na casa do senhor. Este caso confronta-nos com as obrigações do Estado de direito social. O sistema tem de evoluir”, defendeu na passada quarta-feira a professora da Faculdade de Direito de Coimbra, durante um encontro dedicado ao balanço de um ano de aplicação deste novo regime legal. Foi no Centro de Estudos Judiciários, em Lisboa, e o director desta escola de formação de magistrados secundou esta antiga juíza do Tribunal Constitucional, ao observar que o Estado tem obrigação de criar condições para que todos os condenados em penas curtas possam usufruir da prisão domiciliária

Sete meses de cadeia

A morar neste momento numa casa arrendada na zona velha do Barreiro, o vendedor ambulante foi apanhado pela GNR ao volante de uma carrinha Ford Transit em Março do ano passado. Transportava uma criança, e infelizmente para ele, era a quinta vez no espaço de década e meia que se via a braços com a justiça devido à falta da carta de condução. Viu-se sentenciado a sete meses de cadeia, que está a cumprir em regime de detenção não contínua, sempre ao fim-de-semana. Um regime que pretende evitar que os autores de delitos menores percam o emprego, mas que neste caso constitui uma penalização extra, por muitas das feiras que fazem os vendedores ambulantes se realizarem aos sábados e domingos.

O condutor sem carta nunca pediu para ficar preso em casa – regime que neste momento já permite aos condenados saírem para irem trabalhar. Mas quando recorreu da condenação, o Tribunal da Relação de Évora avaliou essa possibilidade. Para concluir, após ter pedido parecer à Direcção-Geral dos Serviços Prisionais, que, uma vez que o arguido não tinha a casa arrendada onde morava em seu nome, não conseguia arranjar um contrato de fornecimento de electricidade – razão pela qual a sua situação não se mostrava “compatível com as exigências técnicas da vigilância electrónica”. Restava-lhe a cadeia ao longo de 42 fins-de-semana – apesar de o próprio tribunal reconhecer a precariedade da situação económica deste agregado familiar, que recebe 450 euros mensais de rendimento social de inserção.

O penalista Paulo Saragoça da Matta não tem dúvidas: aplicar a lei desta forma fere a igualdade entre cidadãos prevista na Constituição, cabendo ao Estado criar condições estritamente necessárias para a aplicação da pulseira electrónica – nem que seja através da criação de um ponto de electricidade na habitação exclusivo para este equipamento. Caso contrário, “é como se se pedisse a um arguido condenado para construir a prisão em que vai ser encarcerado, por aquelas que já existem estarem sobrelotadas”.

“Casos como este são mais frequentes do que se pensa”, assinala o jurista. A Direcção-Geral dos Serviços Prisionais diz não ter estatísticas sobre estas situações, que considera serem residuais. Quando surgem obstáculos deste tipo os serviços procuram encontrar “um espaço habitacional alternativo, recorrendo à família” do condenado ou a uma instituição social que possa assegurar uma resposta. Caso isso falhe, “tal facto é reportado ao tribunal que, se o entender, pode solicitar a intervenção das entidades socialmente competentes”.

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"A lei é cega"

Porém, não é isso que diz o juiz do Tribunal da Relação de Évora que confirmou a pena de cadeia aos fins-de-semana, João Latas. O desembargador assegura estar fora dos poderes do tribunal resolver um problema desta natureza – a não ser que a lei o previsse expressamente, o que não é o caso –, razão pela qual não lhe restava senão decretar a ida para a cadeia. O magistrado não se lembra de alguma vez ter tido um caso assim. “Há coisas que se nos apresentam como inultrapassáveis”, conclui.

“A lei é cega, e não respeita a dignidade de cada um”, observa por seu turno o padre Jardim Moreira, da Rede Europeia Anti-Pobreza. “A pessoa não pode ser penalizada duas vezes por não ter acesso a um bem fundamental do qual não devia ter sido excluída, a electricidade”.

O vendedor ambulante sugeriu entretanto cumprir a prisão domiciliária na casa do sogro, mas o tribunal de primeira instância recusou-se a reapreciar o assunto. O seu advogado, Pedro Lameirinha, recorreu, estando à espera de uma decisão. Que pode nem vir a tempo, uma vez que o arguido já se encontra em reclusão todos os fins-de-semana há cerca de três meses.