Peter Atkins: “Ciência e religião são totalmente incompatíveis”

É um professor de Química da Universidade de Oxford cujos livros didácticos têm fama mundial. Peter Atkins, de 78 anos, é também há muitos anos um autor de livros de divulgação científica.

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O químico britânico Peter Atkins Francisco Gomes/FFMS

O último livro de divulgação científica de Peter Atkins, Como Surgiu o Universo, acaba de sair em português na colecção Ciência Aberta da Gradiva. Nele aborda a questão de saber porque existe alguma coisa em vez do nada. Não a respondendo inteiramente, afirma que a criação ou Big Bang não foi afinal nada de muito extraordinário, que foi até uma coisa muito natural. Recusa categoricamente a ideia de Deus: “O funcionamento do mundo foi por alguns atribuído a um Criador espantosamente metediço, mas incorpóreo, a guiar activamente cada electrão, quark e fotão até aos respectivos destinos. As minhas entranhas revolvem-se perante esta visão extravagante do funcionamento do mundo e a minha cabeça segue o mesmo caminho das entranhas.”

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O último livro de divulgação científica de Peter Atkins, Como Surgiu o Universo, acaba de sair em português na colecção Ciência Aberta da Gradiva. Nele aborda a questão de saber porque existe alguma coisa em vez do nada. Não a respondendo inteiramente, afirma que a criação ou Big Bang não foi afinal nada de muito extraordinário, que foi até uma coisa muito natural. Recusa categoricamente a ideia de Deus: “O funcionamento do mundo foi por alguns atribuído a um Criador espantosamente metediço, mas incorpóreo, a guiar activamente cada electrão, quark e fotão até aos respectivos destinos. As minhas entranhas revolvem-se perante esta visão extravagante do funcionamento do mundo e a minha cabeça segue o mesmo caminho das entranhas.”

Deu esta entrevista antes de uma conferência-debate no Oceanário de Lisboa sobre “Ver o Universo com os olhos da química”, com os químicos portugueses Carlos Romão e Zita Martins, moderada por Joana Lobo Antunes. A iniciativa integrou-se no Mês da Educação e Ciência da Fundação Francisco Manuel dos Santos, que está a decorrer. Falámos da origem do mundo, do ateísmo que ele professa, da má fama da química nos dias de hoje e da famosa Segunda Lei da Termodinâmica.

Acaba de sair em português do seu livro mais recente, julgo que é a primeira língua em que é traduzido. O título é Como Surgiu o Universo e o subtítulo As Origens das Leis Naturais. Sabemos o suficiente sobre as origens do Universo para sintetizar a informação neste pequeno livro? Que ideia pretende transmitir?
Creio que existem várias questões sobre a origem do Universo. Uma delas é: como começou? O que iniciou o Universo?

Não foi Deus?
Gostaria de pensar que não foi. Gostaria de pensar que a ciência, um dia, chegará ao ponto de poder dizer “sabemos como tudo começou”, e será muito empolgante. Mas creio que há certos aspectos sobre o início do Universo que a ciência já está em posição de perceber e explicar. Acho que as leis naturais são um desses aspectos. O meu objectivo era ver se, ao focar-me num dos aspectos da origem do Universo, se podia atingir um ponto de entendimento que mostrasse que o início foi, na verdade, muito simples. Acho que a ciência simplifica as questões – não simplifica demasiado, apenas simplifica, mas não de uma forma perigosa.

Foi Einstein que disse que tudo deve ser apresentado da forma mais simples possível, mas não mais simples do que isso…
Exactamente. Assim, ao focar-me nas leis naturais, achei que conseguia simplificar um dos aspectos da criação.

Como é possível começar com nada e chegar ao ser?
Essa é uma outra questão, uma questão muito mais profunda. O que a ciência tem feito é recuar de forma experimental e teórica até às primeiras fracções de segundo após o nascimento do Universo. Mas continuamos sem poder esclarecer nada sobre o que se passou imediatamente antes do início.

É isso que as pessoas nos perguntam a nós cientistas: o que aconteceu antes do Big Bang?
No meu livro A Criação [Presença, 1985] faço uma tentativa de abordagem dessa questão. Algumas pessoas fazem batota, ao dizer que houve uma flutuação quântica e que o Universo explodiu espontaneamente. Mas isso já pressupõe a existência de algo, para poder haver uma flutuação quântica. Para mim, é batota.

Então, não concorda com a ideia da flutuação inicial.
Acho que um Universo existente pode ter filhos, e que os filhos podem surgir de flutuações quânticas, mas, aí, já existem as leis naturais, já existe espaço-tempo. Creio que a verdadeira questão que a ciência deve abordar é se, de absolutamente nada – sem espaço, sem tempo – de absolutamente nada…

Então não existia absolutamente nada antes do início do Universo?
Sim. Para os filósofos, é um problema muito difícil, mas a ciência tem feito grandes progressos no seu entendimento do nada. Há muito tempo, pensava-se que os gases eram nada, mas hoje em dia compreendemos tudo sobre gases. Depois, identificou-se o vácuo, e pensou-se que o vácuo significava nada, mas hoje sabemos que o vácuo é um sítio muito rico, onde acontecem muitas coisas, é um objecto muito complexo. E quando temos vácuo, temos espaço e tempo, e temos também flutuações. É, como disse, fazer batota. O que temos realmente de dizer é: a partir de absolutamente nada, existe alguma forma de algo poder emergir?

Parece que a ciência tomou agora o lugar que pertencia à filosofia, ou mesmo à teologia. Isso não é perigoso?
Não. A filosofia e a teologia são ambas formas corruptas de entender o mundo.

Então não existe um lugar para a filosofia?
Deixe-me considerar teologia e filosofia separadamente. Acho que a teologia se limita a fingir uma explicação ao decretar que existe um deus que criou tudo, e algumas pessoas ficam satisfeitas com essa explicação. Mas é totalmente vazia porque, em primeiro lugar, não existe qualquer prova da existência de um deus; e, em segundo lugar, como pode um deus criar coisas, como pode um deus criar o Universo. Essa perspectiva é demasiado fácil. Os teólogos apresentam respostas fáceis, enquanto os cientistas precisam de muito trabalho para compreender e explicar. Nós, cientistas, estamos a chegar gradualmente a um ponto em que poderemos dar uma resposta verdadeira àquilo que os teólogos fingem compreender.

Mas a filosofia é outra coisa… Está algures entre a teologia e a ciência. A diferença entre filósofos e cientistas é que os filósofos são pessimistas, ao passo que os cientistas são optimistas. Os filósofos dizem: “Nunca compreenderás, está para lá da compreensão humana.” Enquanto os cientistas dizem: “Espera só um pouco, havemos de lá chegar.”

Coloco então a questão de uma forma mais clara: para si a ciência e a religião são incompatíveis?
A ciência e a religião são totalmente incompatíveis. Basicamente, a religião diz: “O teu cérebro é demasiado insignificante para compreender, nunca compreenderás. Há apenas a possibilidade de poderes perceber depois de morreres.” Eu prefiro o conhecimento deste lado do túmulo.

Mas há exemplos em contrário. Por exemplo, no século passado, o padre católico George Lemaître investigou cosmologia, tendo sido ele a propor a ideia de Big Bang. Acreditava em Deus ao mesmo tempo que produzia trabalho científico de qualidade.
Sem dúvida. Isso significa que estava a produzir trabalho científico de qualidade, mas não significa que a teologia dele estivesse correcta. Acho que nós, os cientistas, escolhemos a abordagem de que o cérebro humano – trabalhando de uma forma colectiva e colaborativa, de várias formas – irá, a seu tempo, compreender, e que o faremos deste lado do túmulo, e que todos compreenderão, não apenas as pessoas com conhecimentos secretos.

O que acha da posição do seu colega de Oxford Richard Dawkins, que pretende lutar contra a religião em nome da ciência? Mesmo aceitando a sua ideia de incompatibilidade, acha que deve haver uma guerra, que deve haver uma espécie de cruzada?
Deixe-me responder cuidadosamente. Consigo perceber que, no final da vida, alguém com pouca educação e que tenha tido uma vida dura reconheça o conforto que a religião oferece, a ideia de que teremos uma vida feliz para além da morte pode ser reconfortante e útil. Mas não gosto que a religião penetre no ambiente das pessoas quando elas são novas, porque destrói o seu… “Destrói” é um termo um pouco exagerado, diminui o prazer da vida com a ideia de que, se se portarem bem nesta vida, vão encontrar uma vida feliz depois.

É então, para si, uma questão de evitar o medo.
Sim, é uma questão de evitar o medo. Devemos aproveitar a vida… Os antigos diziam carpe diem, isto é, “aproveita o dia”.

Falemos de química, o ramo em que é perito, onde é um excelente pedagogo, toda a gente conhece os seus livros. Parece que hoje em dia se interessa mais por astrofísica do que por química. A química é uma ciência de complexidade, e agora fala no último livro da origem das leis naturais das simetrias fundamentais e outros aspectos que os físicos adoram. Como passou da química para a física?
Envelhecendo, julgo eu.

Sim, mas de outros livros seus percebe-se que a química é um assunto fascinante assim como é decerto a cosmologia. Será preciso um entendimento de química para estudar a origem do mundo?
Quando percebemos que a química é uma ciência central – no sentido em que, para o seu entendimento, precisamos de apoio na física; para a sua formulação e desenvolvimento de teorias, de apoio na matemática; para as suas aplicações, cada vez mais na biologia –, o estudo da química coloca-nos no centro das ciências. E estou grato por ter estudado química, porque me colocou nesse centro. Uma vez no centro das ciências, não queremos uma fronteira a circunscrever todas as ciências, queremos poder fazer comentários sobre tudo, queremos compreender tudo. E acho que, ao entrarmos nestas grandes questões, como as que coloco neste e noutros livros, estamos a cumprir a nossa obrigação de explicar a forma como a ciência pode iluminar o mundo.

Contudo, a principal tendência na física é ser reducionista, tentar explicar tudo olhando para o mais simples, para as partículas elementares e para as forças fundamentais. A química, por seu lado, desiste desse olhar, porque o mundo é tão complexo que precisamos de alguma fenomenologia… É a questão do dilema entre reducionismo e complexidade.
Como sugere, acho que a ciência pode seguir em duas direcções. Numa delas, entra em pormenor para encontrar explicações simples para tudo. Depois, tendo descoberto, por via do reducionismo, as fundações do tecido da realidade, começa a juntar tudo e a tentar prever os resultados complexos que daí podem surgir. Acho que entrar no pormenor é muito mais simples do que olhar para o conjunto, mas isso não significa que a ciência não possa ser global. Acho que a ciência está a amadurecer tanto, utilizando computadores, que pode seguir em ambas as direcções.

A química não tem nos dias de hoje boa fama, é vista como algo sujo e a evitar. Traduzindo mal do inglês, as pessoas falam de químicos para designar substâncias químicas, que consideram substâncias tóxicas, não compreendendo que a química está em todo o lado, no nosso corpo, na natureza… Como podemos contrariar esta perspectiva?
As pessoas têm motivos para se preocuparem. Mas também devem perceber que têm muito a agradecer à química. Se retirássemos os produtos da química, voltaríamos à Idade da Pedra, literalmente. A medicina, por exemplo, precisa da química… Considero que o contributo mais importante da química para o bem-estar humano é a anestesia.

Que só foi descoberta em meados do século XIX.
Exactamente. Quando não sentimos dor, conseguimos tolerar quase tudo. Olhemos à nossa volta. Tudo aquilo em que tocamos hoje em dia é sintético… Bem, quase tudo aquilo em que tocamos é sintético: tecidos sintéticos, materiais de construção sintéticos e, provavelmente o mais importante de todos, os medicamentos que as pessoas tomam…

Sim, mas os cidadãos estão muito preocupados com a destruição do ambiente.
E têm bons motivos para se preocuparem. Mas as pessoas que resolverão os problemas da contaminação do ambiente são os químicos. É aos químicos que devemos recorrer para remover a poluição.

Então eles têm a solução?
Sim, eles podem ser a causa, mas são também a solução.

Esperamos, portanto, que resolvam estes problemas. Falemos agora do “santo graal” da química, a tabela periódica dos elementos. Estamos prestes a festejar o 150.º aniversário dessa tabela, razão de ser de Ano Internacional da Tabela Periódica em 2019. As bases da química estão todas lá. Todos os átomos conhecidos lá estão e hão-de estar os desconhecidos, estamos a desbravar fronteiras… Qual é a relevância da tabela periódica?
A tabela periódica representa a capacidade de organização da ciência. Quando olhamos para o oxigénio… bem, não se vê grande coisa. Mas, se olharmos para o oxigénio gasoso e para o enxofre, nunca se pensaria, só ao olhar para eles, que são irmãos na tabela periódica. Mas são! E o mais incrível é que todos os elementos, os cerca de cem que se conhecem hoje, estão relacionados. Não são apenas uma colecção aleatória de indivíduos, existe uma ordem oculta. Por isso, a tabela não só nos ajuda a compreender as propriedades físicas e químicas dos elementos, como é um guia para o facto de, sob as relações expressas nela, existir uma fundação subjacente: basicamente, a estrutura atómica. Assim, não só nos ajuda a compreender, como nos encoraja a compreender.

Tenho uma última pergunta sobre termodinâmica. A Segunda Lei da Termodinâmica, que diz que a desordem ou entropia aumenta num sistema isolado, não é fácil de explicar. Ela foi um tópico da famosa polémica das “duas culturas”. O escritor C.P. Snow afirmou, em 1959, que desconhecer a Segunda Lei é equivalente a desconhecer Shakespeare. As pessoas que conhecem hoje Shakespeare também conhecem a Segunda Lei, ou continuamos como nos anos 50?
Tenho vários comentários sobre isso. Em primeiro lugar, acho que o C. P. Snow não compreendia a Segunda Lei da Termodinâmica.

Mas ele estudou química…
Sim, era químico. Era químico na Universidade de Leicester, que foi onde eu também estudei. Mas continuo a achar que ele não compreendia a Segunda Lei da Termodinâmica.

Onde falhou? Até para ele a lei era difícil de entender.
Discordo quando diz que a Segunda Lei é difícil de entender.

As pessoas acham-na difícil.
Pois acham, mas não é. Esta lei limita-se a dizer que as coisas pioram, e a maioria das pessoas consegue perceber que as coisas pioram. Mas pioram de uma forma interessante.

Ser melhor ou pior é uma questão de avaliação humana…
Não, não é. Claro que, quando o expressamos desta forma, temos de explicar o que entendemos por pior. O que quero dizer é que, supondo que a energia e a matéria se dispersam em desordem, então está a piorar. Mas o facto de se dispersarem em desordem pode agir como uma força motriz para o surgimento de uma estrutura ordenada. Assim, o facto de o mundo colapsar em direcção ao caos, para formas irregulares, permite, desde que tudo esteja interligado, que surjam estruturas como eu e você.

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Sim, mas nós dois somos estruturas vivas: existe ordem no nosso corpo porque somos sistemas abertos, não somos isolados. A Segunda Lei, segundo a qual a entropia aumenta num sistema isolado, não se aplica.
Somos isolados, sim, desde que pensemos em nós como estando dentro de um restaurante sentados a comer.

Sim, o restaurante connosco onde comemos é um sistema isolado e, nesse caso, a Segunda Lei já é aplicável. A ordem cria-se em nós a partir de desordem noutro lado. Podemos desfrutar da refeição e da Segunda Lei ao mesmo tempo.
Precisamente.

Professor de física da Universidade de Coimbra