Era uma vez uma “escola-modelo” que deixou de existir

A EB123/PE com creche do Curral das Freiras, situada no interior profundo da Madeira, tem figurado entre as melhores escolas do país nos rankings nacionais. Este ano lectivo, deixou de ter autonomia.

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No Curral das Freiras, na escola que em 2015 foi, entre as públicas, a melhor a Português ficando às portas do “top 10” a Matemática, a campainha continua a não tocar.

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No Curral das Freiras, na escola que em 2015 foi, entre as públicas, a melhor a Português ficando às portas do “top 10” a Matemática, a campainha continua a não tocar.

Mas agora, conta Adriana Sousa, apressada para mais uma aula de um dia que já vai longo, as aulas começam mesmo à hora certa. “Este ano, as coisas estão diferentes. É tudo mais rápido. Mais apressado. Mais cansativo.” Adriana vem a descer a rua inclinada. Na mão, um pacote de bolachas aberto. Saiu da escola para lanchar, porque, diz numa voz que é quase um lamento, mas que é sobretudo uma constatação, “até no bar” a escola é outra.

E é. Juridicamente falando, a EB123/PE c/Creche do Curral das Freiras, que serve as cerca de 1500 pessoas que chamam casa àquela pequena vila encrustada no maciço interior da Madeira, já não existe. No final de Junho, já o ano lectivo 2018/19 estava em preparação, a Secretaria Regional de Educação decidiu fundir aquele estabelecimento de ensino, situado no concelho de Câmara de Lobos, com a EB23 de Santo António, no Funchal.

O procedimento, burocrático, enquadrado na reorganização da rede escolar da região autónoma, esvaziou a autonomia de uma escola que, em cinco anos, saltou dos lugares mais baixos do ranking regional para as posições cimeiras do país. A decisão, formalizada um dia depois da direcção da escola encabeçada por Joaquim Sousa ter sido reeleita com 75% dos votos, apanhou todos de surpresa.

Professores, alunos, sindicato, pais e opinião pública não entendem a forma abrupta como o processo se desenrolou. Recolheram-se assinaturas para um abaixo-assinado. Escreveram-se cartas para o Presidente da República, para chefe do executivo madeirense, para os partidos no parlamento regional. O Sindicato dos Professores da Madeira (SPM) contestou a decisão junto do Tribunal Administrativo e Fiscal da região – além da do Curral das Freiras, também a Escola da Fajã da Ovelha foi extinta –, mas a tutela manteve-se intransigente. O secretário regional de Educação, Jorge Carvalho, assinalou mesmo o início do ano lectivo nestes dois estabelecimentos.

O antigo director da escola, Joaquim Sousa, que foi o rosto mais visível da transformação daquela comunidade educativa, também não compreende. Mesmo antes desta polémica, já estava envolvido noutra. Em Abril foi alvo de um processo disciplinar instaurado pela Inspecção Regional de Educação, motivado por questões administrativas relacionadas com a gestão da escola. “O processo é de vontades, não de factos”, responde ao PÚBLICO, dizendo que tudo o que é acusado é práxis na generalidade das escolas.

Para ele, o processo disciplinar e a extinção da escola estão relacionados. “Os órgãos da escola não foram auscultados, os representantes eleitos dos pais e dos alunos também não. Os dados enviados ao município estavam errados e, lá está, a decisão foi tomada 24 horas após a minha vitória eleitoral, através de uma adenda a um documento que estava fechado”, descreve, dizendo que embora não queria “acredita em motivações pessoas”, não esquece o ostracismo com que escola foi votada pela tutela regional, quando começou a ser premiada em termos nacionais.

Também o SPM estranha. “É difícil desassociar estes factos [processo disciplinar e extinção da escola], quando no primeiro documento que recebemos não existia referencia à escola do Curral das Freiras e, 24 horas depois, já constava como um estabelecimento a extinguir”, admite ao PÚBLICO o presidente do sindicato Francisco Oliveira, aguardando que o tribunal suspenda este e outros procedimentos, por, argumenta, não terem respeitado os preceitos legais.

Sobre o processo disciplinar, a secretaria regional “não faz qualquer comentário”, como não se pronuncia sobre a “criação da ideia, na praça pública, de que há perseguição e não matéria de facto a apurar”. Este, contabiliza ao PÚBLICO o gabinete de Jorge Carvalho, é um dos 25 processos instaurados a professores nos últimos quatro anos. “Nos casos anteriores não houve qualquer declaração dos visados relativamente à possibilidade desses processos configurarem qualquer tipo de perseguição pessoal.”

A decisão de fusão da EB123/PE c/Creche do Curral das Freiras “não teve qualquer relação” com o processo disciplinar, significando, nas contas da secretaria regional, uma redução comparativamente ao ano lectivo anterior de cerca de metade do número de professores. Um dos ‘reduzidos’, foi o próprio Joaquim Sousa. “Fui banido da escola do Curral. Não tive escolha. A direcção da escola decidiu que eu não poderia continuar a trabalhar no Curral”, afirma ao PÚBLICO.

Na escola, fala novamente Adriana Sousa, antes de desaparecer pelo portão, correndo para a aula do CEF de Informática, sente-se a falta do professor Joaquim. “Não tenho nada contra que está agora, mas o outro director estava sempre presente, sempre disposto a ajudar”, diz. A amiga, colega de turma, abana a cabeça que sim. Liliana Melim queixa-se das mudanças. Das aulas que começam mais cedo e acabam mais tarde, em linha com o horário da escola de Santo António. De ter menos tempo para almoçar. Do aumento dos preços no bar da escola.

Mesmo sem toques, a campainha já tinha sido abolida para responsabilizar os alunos, os horários mudaram. Antes, conta Liliana, as aulas acabavam no máximo às 17h45, e todas as horas estavam alinhadas com as carreiras de autocarros. Agora, o tempo lectivo vai até às 18h20. “Deixámos de ter tempo para as extracurriculares, porque acabam muito tarde”, lamenta, dizendo que muitos colegas têm desistido do futebol e de outras actividades. “Fica muito tarde para nós.”