Erdogan relata “assassínio político” e exige respostas a Riad

O discurso do Presidente turco é relevante: foi a autoridade máxima do país a falar sobre a morte do jornalista. Vale pelo que disse e pelo que não disse.

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TUMAY BERKIN/Reuters

O facto de ser o próprio Presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, a dar informações sobre as investigações à morte do jornalista Jamal Khashoggi, terá sido o facto mais relevante do que disse. Não pela falta de conteúdo, mas sim por assinalar o que parece ser uma mudança de estratégia da Turquia, com uma interpelação directa e já não através de informações que fontes turcas iam dando a jornais pró-Governo.

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O facto de ser o próprio Presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, a dar informações sobre as investigações à morte do jornalista Jamal Khashoggi, terá sido o facto mais relevante do que disse. Não pela falta de conteúdo, mas sim por assinalar o que parece ser uma mudança de estratégia da Turquia, com uma interpelação directa e já não através de informações que fontes turcas iam dando a jornais pró-Governo.

Erdogan classificou a morte do jornalista e colunista do Washington Post Jamal Khashoggi como “um assassínio político”, disse que este foi “selvagem”, e referiu uma série de elementos que apontam para premeditação: uma equipa de 15 sauditas que chegou ao país pouco antes do assassínio e que saiu pouco depois, alguém ter retirado partes do sistema de gravação de imagem das câmaras de segurança antes de Khashoggi ter a sua audiência no consulado e a presença de um "duplo" do jornalista em Istambul.

No seu discurso, Erdogan deixou de fora a existência de gravações áudio do momento da morte, que tinham sido referidas pelos media turcos, e embora tenha relatado conversas com o rei Salman sobre o sucedido, nunca se referiu ao príncipe herdeiro, Mohammed bin Salman (ou MBS, como é mais conhecido), que detém o poder de facto.

Erdogan foi claro e assertivo no seu discurso: “esperamos descobrir todos os responsáveis, de cima para baixo”, disse. “Porque é que estas 15 pessoas envolvidas no incidente se encontraram em Istambul no dia do assassínio?”, perguntou. “De quem receberam ordens? Porque é que o consulado foi aberto à investigação dias depois do assassínio e não logo depois? Porque é que foram feitas tantas declarações inconsistentes quando era tão claro que havia um assassínio? Porque é que o corpo de alguém que se sabe que foi morto não foi ainda encontrado?”

A maior parte das perguntas são dirigidas ao regime saudita, que tem dado informações contraditórias, começando por dizer que Khashoggi saíra do consulado vivo, depois que tinha morrido na sequência de uma luta, ou ainda como resultado de uma operação falhada para o levar de novo para a Arábia Saudita.

A culpa foi da equipa de uma operação que correu mal, e MBS não sabia de nada, garantem os sauditas. Mas poucos acreditam.

A agência Reuters diz que havia registo de uma chamada por Skype do consulado até a um conselheiro muito próximo de MBS, Saud al-Othani, que estivera já envolvido num outro grande golpe saudita que fracassou – o rapto e pressão para demissão pelos sauditas de Saad Hariri, o primeiro-ministro libanês, que acabou por regressar a Beirute e desistir da demissão anunciada em Riad. Será difícil apresentá-lo como o responsável pelo assassínio sem se suspeitar de uma ligação a MBS.

“Deitar as culpas para alguns elementos dos serviços de segurança e espionagem não nos vai convencer a nós ou à comunidade internacional”, continuou Erdogan no seu discurso. E como “o acontecimento ocorreu em Istambul”, é na Turquia que Erdogan acha que os 18 detidos pela Arábia Saudita devem ser julgados. “Esta é a minha proposta – claro que a decisão é deles [da Arábia Saudita]”, declarou.

Os efeitos deste caso serão sempre limitados pelo poder que MBS já conseguiu reunir e pela importância da Arábia Saudita em negócios com os EUA, por exemplo – sempre que fala do caso, o Presidente Donald Trump diz que quer ir até ao fundo do que se passou mas refere sempre que não quer prejudicar os acordos económicos.

Há quem veja nesta acção de Erdogan uma tentativa de limitar o poder de MBS, de quem o líder turco desconfia. Após as chamadas primaveras árabes, a Turquia viu-se no lado errado de uma disputa de poder regional, tendo apostado na chegada ao poder de partidos de raiz islâmica, como a Irmandade Muçulmana no Egipto, que durou pouco e foi derrubada por um golpe militar do actual presidente Sissi, apoiado pela Arábia Saudita.

Soner Çagaptay, director do programa de investigação da Turquia no centro de estudos Washington Institute, diz que a morte de Khashoggi poderá ser vista como uma hipótese de Erdogan reverter a dinâmica perdedora.

“As raízes vêm de 2013 [data do golpe contra Morsi]”, notou Çagaptay em declarações ao diário britânico The Guardian. “Sissi é o general secular que pôs os islamistas políticos na prisão. E Erdogan é o islamista político que pôs os generais seculares na prisão”, sublinha.

Erdogan descobriu “uma oportunidade” neste caso: “vê que MBS se tornou o elo mais fraco naquele canto da região anti-Erdogan, anti-Irmandade Muçulmana”: “MBS está a andar em gelo fino e Erdogan está a torná-lo mais fino ainda”.

Claro que o que é “mais fino” neste caso é relativo: ainda que haja danos claros à imagem de MBS como líder, estes têm algumas consequências, mas limitadas. Uma conferência internacional que decorre em Riad, para investimento, registou várias ausências de peso, mas ainda assim permitiu à Arábia Saudita angariar milhões em contratos no seu primeiro dia (MBS passou por lá para comentar um satisfeito “óptima conferência, muita gente, muito dinheiro”, cita a Reuters).

Analistas dizem que, no máximo, MBS poderia ver retiradas algumas funções ligadas por exemplo às questões externas. Na sequência deste caso, há relatos de desagrado do rei Salman com o seu filho preferido. Mas se está zangado, ainda não o mostrou: quando ordenou uma restruturação dos serviços secretos, nomeou, para os supervisionar, precisamente MBS.