Pessimismo antropológico moderado

O cérebro é mesmo o órgão mais tramado do corpo humano. E os Lobo Antunes sabiam e sabem disso.

António Lobo Antunes é – sempre foi – um homem desassombrado. E como nos fazem falta seres assim, que dizem o que pensam, mesmo para discordarmos, que não se enleiam no pensamento dominante, que dizem não se preocupar nada com o que deles pensem quando, humanamente, como todos, ardem no desejo secreto de serem amados. Não me interessa particularmente que ele deseje enviar o Nobel para aquela parte e muito menos uma certa auto-imolação – ao menos é o que parece – com figuras como José Saramago, de cuja escrita me considero um ávido leitor (o Último Caderno de Lanzarote está a ser uma delícia).

O que gosto particularmente nele é o seu pensamento em relação à vida e à morte. O modo como, sem pruridos, numa sociedade que convive mal com o desaparecimento físico – ou melhor, que tudo faz para o ignorar e esconder –, o assume em toda a sua plenitude. Talvez por isso surja como tão desapegado de valores materiais, não tendo telemóvel, computador ou carro. O escritor percebeu que o essencial é invisível ao dinheiro. Que a passagem momentânea dos átomos de que somos constituídos está ao serviço de algo mais, chamemos-lhe espiritualidade ou, apenas, humanidade. Cada vez mais prefiro este último epíteto, pois tudo o que é humano é divino, ainda que profundamente cruel, criminoso, violador dos mais basilares princípios civilizacionais.

Pessoas como António, desde cedo – a Guerra Colonial ajudou e muito –, compreendem a insignificância da errância terrena, a importância das lágrimas vertidas perante acontecimentos tantas vezes estúpidos e o relevo de um abraço na altura certa, como o foi o do seu irmão João que, quase em silêncio, foi morrer para o António antes de morrer para a vida. E que, ao sair, lhe ordenou “não contes a ninguém que eu chorei”. Certamente que não seria por vergonha: um neurocirurgião renomado, sabendo como ninguém o que se passava nas suas entranhas, convivendo diariamente com o jogo do estar aqui e do já não estar, não teria receio por si, mas talvez pelo efeito que saber-se que havia chorado teria nos outros. Os outros que se habituaram a vê-lo como rocha insubmissa, como porto de abrigo. Lobo Antunes, o escritor que ocasionalmente foi médico, conheceu paixões, algumas delas públicas e que também mais ou menos publicamente lhe provocaram mossa. Integrou-as, como todos fazemos ante uma rejeição – se é que o foi, pois aqui falo por mim e não por ele –, sabendo que são tantos os factores a combinar, tantas as predicações astralmente alinhadas que cada vez mais pasmo por ver gente apaixonada e que se ama durante décadas.

Pessimista antropológico moderado me confesso. Rousseau não tinha razão nenhuma, perdoem-me a imodéstia. De entre as correntes antagónicas pelas quais somos percorridos, prevalece, como regra, o mal, o desejo de amesquinhar, a inveja, a intriga, a pequenez. Somos, em geral, almas pequenas. Todavia, em certos momentos, somos capazes de gestos com um significado imenso, lambemos as nossas feridas e as dos outros, damos a vida, amamos no sentido mais puro da palavra, desligado de todo e qualquer egoísmo, ou melhor, pelo prazer egoísta de sermos amados e de nos sentirmos bem com o bem que vamos fazendo. Não é este o resultado de um quadro nefasto de vida, de sofrimentos atrozes diversos de qualquer comum mortal, mas uma atitude perante os dias que permite compreender melhor o outro, ainda que ele/ela nos esteja a prejudicar. E nós a darmos fé. A encaixarmos nas categoriais intelectuais e emocionais aquele comportamento. Uma espécie de psicanálise do outro que tão útil se torna quando, para além da compreensão, o/a temos de desarmar.

É por via desse pessimismo antropológico moderado que viver todos os dias vai sendo suportável, exacto como é – mesmo hoje um lugar-comum – que ninguém vive mesmo todos os dias. Por certo esta verificação entronca no que entendemos por “viver”. Será algo mais que respirar, dormir, comer, satisfazer outras necessidades básicas. Será actuar sobre o mundo, ainda que à escala do nosso quintal, para partirmos e voltarmos a dar, ainda que, no fim do dia, tudo fique na mesma. E esta habilidade, por limitação humana, é absolutamente impossível de ser exercitada sem excepção todos os dias. Dirão os optimistas que estes espaços são essenciais para retemperar forças para, depois, saltarmos mais longe, numa espécie de pausa antropológica. É o mal dos optimistas: vêem tudo a cores garridas e, por isso, arriscam-se a maiores dores. Sim, é verdade: são mais corajosos, por abrirem o peito às balas, sabendo que irão sobreviver. Os outros, enfim, menos bafejados por essa “coragem” ou antropologicamente mais realistas, esperam menos para a pancada ser menor.

Questão de perspectiva, dir-se-á. Por certo. Mas que o cérebro e a racionalização são os principais responsáveis pela maior parte dos pensamentos negros é um dado adquirido. Numa próxima alteração ao mapa judiciário lutarei pela criação de um tribunal em que esse órgão malvado seja julgado. E condenado à pena capital. O problema é que o condenado, ao ouvir o acórdão, talvez atirasse com o “capital” de Marx e o cortejo de acontecimentos supervenientes. Não vejo solução: o cérebro é mesmo o órgão mais tramado do corpo humano. E os Lobo Antunes sabiam e sabem disso.

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