A última carta de Saramago

Vinte anos de Nobel e um inédito para celebrar. Último Caderno, a publicar esta segunda-feira, é a derradeira obra de José Saramago. “É uma carta que nos deixou”, diz Pilar del Río. Com ela vamos lendo esse diário de 1998, tentando entender ideias, preencher faltas, contradições e um legado que ela assumiu, como missão, preservar como muito mais do que memória histórica.

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Luis Davilla/Cover/Getty Images

Se os dias do Nobel tivessem uma imagem íntima seria a de um homem adormecido numa poltrona, os pés cruzados em cima da mesa, e de uma mulher deitada no sofá ao lado, tapada por jornais. Ela dorme e apoia o rosto na mão esquerda que tem junto ao queixo. Ele, sentado, como se estivesse a pensar, mão direita semiaberta, o indicador na testa e o polegar junto à orelha. Parece numa pausa de conversa. E é, mas inusitada. A fotografia a preto e branco, está pendurada numa das paredes da casa de Lisboa de José Saramago e Pilar del Río. Tem a data de 14 de Novembro de 1998 e foi tirada noutra sala, de outra casa de José e Pilar, em Lanzarote por um jornalista que os entrevistava. “Tínhamos chegado do primeiro compromisso público entre o anúncio do Nobel e a cerimónia em Estocolmo. Tínhamos regressado de Paris. Ele tinha ido à Sorbonne e à Fundação Gulbenkian [delegação em França]. Estava connosco um jornalista a fazer uma reportagem para um suplemento cultural de um jornal de Espanha. Estávamos a falar com ele e, primeiro, foi o José. Pôs os pés na mesa e adormeceu. Eu, que estava a ler um jornal, adormeci a seguir. A fotografia somos os dois a dormir, cada um no seu sítio; eu toda tapada com jornais, com uma cadela aos pés. Sim, essa é uma imagem desses dias”, afirma Pilar del Río enquanto olha a fotografia com um sorriso.

Não se falou disso, mas há uma breve nota sobre esse dia no diário recém-descoberto de José Saramago. Assim: “Lanzarote. Entrevista Anders Lange, Morgenavien.”

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"Sinto-me muito cómoda porque não vou falar jamais, jamais, como viúva! Quem não me vir como parte desse projecto [Saramago] que não se relacione comigo, porque como família não falo. Essa é a minha vida íntima e privada e dela não digo nada.” Rui Gaudêncio

Passaram 20 anos. Está uma manhã de sol num bairro tranquilo do centro de Lisboa. O mesmo sol que ilumina, luz filtrada pela janela, a fotografia e o rosto de Pilar quando a aponta. É sábado e quase não há ruídos junto à casa azul baptizada com o nome de uma das personagens mais emblemáticas da obra de Saramago. A casa chama-se Blimunda, a protagonista visionária de Memorial do Convento. Nela vive agora Pilar del Río, a ex-jornalista, mulher do escritor durante 22 anos, tradutora de parte da sua obra para castelhano, presidente da Fundação José Saramago. Perto do dedo de Pilar há uma folha emoldurada. Chama a atenção para ela. É branca e nela destaca-se uma impressa expressão Uff; terminara o Ensaio sobre a Cegueira. A luz ainda não comeu a tinta. Há mais fotografias. Muitas. Em quase nenhuma o escritor aparece a rir. “Ele não gostava das fotografias em que aparecia a sorrir”, conta Pilar que confirma, no entanto, um grande sentido de humor. “Ele tinha muita ironia e dizia muitas vezes ‘tenho de evitar cair no sarcasmo’. Ele exilava-se para não cair no sarcasmo. A ironia e a auto-ironia, tudo bem. O humor, sim. O sarcasmo, não. Considerava-o desrespeitoso, diminui o outro. Mas tinha de se vigiar. Era muito autovigilante nisso, sobretudo quando escrevia.”

Há ainda a imagem da caligrafia, sublinhados, rasuras. Ocorre uma frase da escritora brasileira Lygia Fagundes Telles de que Saramago gostava: “A nossa memória (...) manipula as recordações, organiza-as, compõe-as, recompõe-as, e é, dessa maneira, em dois instantes seguidos, a mesma memória e a memória que passou a ser.” 

Aquele é um lugar de justaposição de memórias. Estamos no presente de uma conversa iluminada por memórias do escritor e também pelas memórias de quem tem a função de manter vivo o seu legado. Essa é a condição para se estar ali, naquela casa, vinte anos depois do Nobel da Literatura, curiosamente num ano em que não é atribuído o Nobel da Literatura. “Saramago e eu tínhamos um projecto e esse projecto implicava-o a ele e implicava-me, com as diferenças óbvias. Dentro do projecto Saramago está o pensar, o reflectir, a literatura, e estão os direitos e os deveres humanos. Eu estou aqui [em Portugal] como integrante do projecto Saramago. Não sou a única. A Fundação é uma parte do projecto. E o projecto Saramago — chamamo-lo assim depois da morte de Saramago, porque ele não o teria permitido — é um projecto de intervenção cultural, social e política de reflexão. Sinto-me muito cómoda porque não vou falar jamais, jamais, como viúva! Quem não me vir como parte desse projecto que não se relacione comigo, porque como família não falo. Essa é a minha vida íntima e privada e dela não digo nada.”

Saramago morreu em 2010, doze anos após o Nobel, 87 depois de nascer na aldeia de Azinhaga, concelho da Golegã, junto ao rio Tejo. “Foi este o mundo em que, criança, e depois adolescente, me iniciei na mais humana e formativa de todas as artes: a da contemplação”, escreve em 28 de Abril. No célebre discurso em Estocolmo, quando recebeu o Nobel, lembraria os avós, Jerónimo e Eulália, em como os ajudou a pastar porcos, como então a vida parecia muito longe de o levar um dia a escritor. Menos ainda a um escritor com o mais cobiçado dos prémios. Os sonhos não chegavam aí. Antes, foi torneiro mecânico, jornalista, e aos 53 anos decidiu apostar tudo na escrita. Traduzia e escreviaO primeiro romance, Terra de Pecado, foi publicado em 1947. Só trinta anos depois, em 1977, surge o segundo, Manual de Pintura e Caligrafia; em 1980, Levantado do Chão e, em 1982, Memorial do Convento. Tinha 60 anosEra o princípio.

As marcas de muita dessa escrita, desse percursoestão pela casaNa secretária de Pilar, há um exemplar de Anna Karenina numa tradução de Saramago a partir do francês, uma edição de 1959 dos Estúdios Cor. As memórias intrometem-se.

“Vinte anos depois é o momento adequado para certas reflexões e confidências”, escreveu no prefácio a Último Caderno de Lanzarote, o diário relativo ao ano de 1998, encontrado por acaso quando ela procurava um texto no computador que José Saramago usou nos últimos anos da sua escrita. O livro chegou a ser anunciado pelo escritor em 2001, na edição espanhola do 2.º volume de Cadernos de Lanzarote. Assim: “E, se o Sexto Caderno não chegou a ver a luz do dia e ficou preso no disco rígido do computador, foi apenas porque, enredado de súbito em mil obrigações e compromissos, todos urgentes, todos imperativos, todos inadiáveis, perdi o ânimo e também a paciência para rever e corrigir as duzentas páginas que tinham acolhido as ideias, os factos e também as emoções com que o ano de 1998 me beneficiou e, uma ou outra vez, me agrediu...” Nos planos dele, haveria uma edição em Portugal. Em Espanha, se veria. Mas o tal VI Caderno nunca apareceu e deu-se como perdido. Até Fevereiro deste ano. 

“Devemos esta descoberta a Fernando Gómez Aguilera”, conta Pilar del Río numa conversa interrompida por muitas memórias, espécie de boas intrusas que tanto a levam a gargalhadas como lhe provocam comoção. Aguilera é poeta e ensaísta, director da Fundação César Manrique, em Lanzarote, e curador da Fundação Saramago. Convidado pela Editorial Alfaguara para organizar um volume com as conferências e discursos de Saramago, pediu textos específicos a Pilar. Por exemplo: “Havia várias versões de uma conferência de José e gerou-se uma discussão porque há o mesmo texto pronunciado em diferentes sítios com certas alterações, e então, era preciso ver qual era a última — a última versão de um discurso é sempre considerada a ‘ortodoxa’ por Carlos Reis [professor da Universidade de Coimbra e um dos especialistas da obra de Saramago]. Entrei no computador, havia uma pasta com o título Cadernos e dou com o VI Caderno. Foi assim. Tão banal quanto isto”, diz, tentando reconstituir o que sentiu naquele momento. “Fiquei sem reacção. Não é que não se possa contar o que senti, pode-se contar tudo, mas é preciso encontrar muitos qualificativos para dizer que fiquei perplexa, sem ar, emocionada. Vi as notas, e ali estava o dia 1, depois o dia 2, o dia 3... Ali estava ele, no seu lugar de trabalho, no seu computador. Eram tantas horas da madrugada e eu ali estou, num outro dia a entrar naquele dia de há vinte anos, a encontrar tudo aquilo...”

Dia 1 Janeiro de 1998

“Durante a noite, o vento andou de cabeça perdida, dando voltas contínuas à casa, servindo-se de quantas saliências e interstícios encontrava para fazer soar a gama completa dos instrumentos da sua orquestra particular, sobretudo os gemidos, os silvos e os roncos das cordas, pontuados de vez em quando pelo golpe do timbale de uma persiana mal fechada. Nervosos, os cães lançavam-se de rompante pela gateira da cozinha (o ruído é inconfundível) para irem ladrar lá fora ao inimigo invisível que não os deixava dormir.”

Veio a manhã, o olhar sobre os estragos e depois o pequeno-almoço habitual, sumo de laranja, iogurte, chá verde e torradas com azeite e açúcar. Eram mais ou menos assim os dias antes dos “dias do caos”, depois de 8 de Outubro desse ano, de 1998, quando a Academia Sueca anunciou que José Saramago era o vencedor desse ano do Prémio Nobel da Literatura. O escritor tinha 75 anos, dez romances publicados, quatro peças de teatro, um livro de viagens, três volumes de poesia, dois livros para crianças, dois volumes de contos, um de memórias e cinco diários, os Cadernos de Lanzarote. Vivia na ilha de Lanzarote com a sua terceira mulher, Pilar del Río, e estava no Terminal 2 do aeroporto de Frankfurt prestes a entrar num avião para Madrid. Soube da notícia por uma hospedeira.

José Saramago estava sozinho e a imagem que correu mundo, aquela que todos guardam por ter sido tantas vezes contada, mesmo que nunca tenha sido vista, é a de um homem a caminhar com uma gabardina dobrada no braço e uma pasta na mão. O homem que nesse preciso momento pensaria qualquer coisa como “Deram-me o Nobel, e o quê?”

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Peter Mueller/REUTERS

“Este livro é uma carta que recebemos”, afirma Pilar del Río sobre o VI Caderno de Lanzarote que tem como título Último Caderno, e chega às livrarias esta segunda-feira, dia 8, quando passam vinte anos da atribuição do Nobel a Saramago. “Antes estávamos tão habituados a ouvir as considerações de José Saramago, elas eram quase como o quotidiano. Ele aparecia muito, e de repente, passado tanto tempo, voltamos a ouvimo-lo reflectir sobre a importância de manter posições ideológicas, por exemplo, sobre a importância da leitura e a importância do outro e da poesia. Ouvir isso de repente outra vez, na primeira pessoa é como se fosse uma carta”, continua a presidente da Fundação José Saramago, remetendo para outro livro, Um País Levantado em Alegria, do jornalista Ricardo Viel, relato dos dias do Nobel, com uma compilação de cartas e de testemunhos sobre o modo como a notícia foi recebida depois de Saramago a ter ouvido, desta forma, pela voz da hospedeira: “Há uma pessoa que quer falar consigo por telefone, é que o senhor ganhou o Prémio Nobel.”

A frase vem replicada no livro de Viel, tentando reproduzir o que, dito assim, terá ecoado junto do seu ouvinte solitário e antecedeu as horas de euforia que se viveram logo depois na Feira de Frankfurt, de onde Saramago saíra e para onde voltou de imediato, não sem uma série de peripécias e desencontros. Antecede ainda — e sobretudo — a euforia vivida, em Portugal. “A alegria aqui foi tão forte que eu diria que é como se, da noite para o dia, todo o mundo, de uma hora para a outra, tivesse crescido três centímetros”, escreveu então o ensaísta Eduardo Prado Coelho num texto que o livro de Ricardo Viel também recupera. Em contrapartida, no Último Caderno, sobre esse dia, Saramago escreveu só isto: “Aeroporto de Frankfurt. Prémio Nobel. A hospedeira. Teresa Cruz. Entrevistas.”

Depois de 8 de Outubro de 1998 faltou tempo a Saramago para completar o seu diário. Surgem apenas, com algumas excepções, notas dispersas, uma frase, uma palavra talvez a desenvolver, um registo a retomar. Como este, a 26 de Outubro: “Morte de José Cardoso Pires.” Antes, estendera-se mais para dizer que morrera Maria Judite de Carvalho. A 19 de Janeiro. “Chega-me aqui a notícia da morte de Maria Judite de Carvalho. Nunca li uma página sua em que não pensasse na pessoa que a tinha escrito. E creio que ela o queria assim. Que o leitor compreendesse que do outro lado não havia estado apenas uma escritora, mas sim alguém que, conhecendo como raras a arte do conto e as íntimas ressonâncias de cada palavra, usava essa arte e esse sentido musical para dizer quem era. Com obstinação, mas também com simplicidade e discreta reserva.”

Faz-se a pergunta a Pilar del Río, se é possível saber quem foi Saramago lendo os seus livros, se a voz do autor era muito diferente da voz do homem com quem vivia. “Uma das características mais importantes de José Saramago é que carecia de fingimento. Não era um homem fingido. Era um homem livre.” Faz uma pausa. Sentada no sofá, aponta um quadro em frente. Um retrato de Blimunda pintado por Rogério Ribeiro. Não diz nada e aponta. “Sabe quem era Saramago? Blimunda.” Também poderia ser o Jesus Cristo do Evangelho, como ele mesmo chegou a ironizar. “Sim, evidentemente que era Jesus Cristo do Evangelho, mas vejo-o mais como Blimunda, a mulher livre que vê dentro. Ou como a mulher do médico que não cega [protagonista de Ensaio sobre a Cegueira, 1995]. É incrível como estas duas personagens são femininas e têm o dom da visão! O escritor é uma pessoa que trata de ver o que há por detrás das coisas, de construir num mundo de trevas. Para mim, José Saramago é Blimunda. Mas Saramago não é só o escritor, é um homem do seu tempo, o pensador, o humanista, não gostaria de o ver colado a cânones pequeno-burgueses, de um país ou de uma cultura. Porque não é só um país e uma cultura. São muitas culturas e são muitos países.”

A 18 de Março de 1999, numa conferência no México intitulada O Autor como Narrador Omnisciente, diz, aludindo a Gustave Flaubert e à famosa afirmação “Madame Bovary sou eu”, que o francês se esquecera de dizer que também fora o amante dela e a rua e os outros, para concluir: “Também, ainda que sendo tão pouca coisa em comparação, eu sou a Blimunda e o Baltazar do Memorial do Convento, e em O Evangelho segundo Jesus Cristo não sou apenas Jesus e Maria Madalena, ou José e Maria, porque sou também o Deus e o Diabo que lá estão...”

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Frederic REGLAIN/Gamma-Rapho via Getty Images

10 de Outubro de 1998

“Lanzarote.” Só isto.

O livro de Ricardo Viel ajuda a entender os silêncios do diário. No prefácio, o jornalista recorre às palavras do próprio Saramago para definir o que foram esses tempos: “Em Dezembro de 1999, já prestes a passar a coroa ao alemão Günter Grass, concedeu uma entrevista ao Jornal de Letras onde falou sobre os cerca de 400 dias em que viveu uma vida de estrela de rock. ‘Quando disse que o Nobel não ia mudar a minha vida, provavelmente o que queria dizer é que não ia mudar a pessoa. Mudar a vida, calculava; não podia imaginar era até que ponto’.”

Nesse dia 8 de Outubro, Pilar del Río não estava com ele. Ficara em Lanzarote e nos últimos dias geria alegria e angústia. Fora avisada de que o Nobel era de Saramago, mas apenas para o impedir de apanhar aquele avião. Não podia dizer a ninguém o que sabia, sob pena de o prémio lhe ser retirado. Apesar dos seus esforços para o deter em Frankfurt a tempo de ser contactado pela Academia Sueca, Saramago estava no aeroporto. Viel conta os detalhes dessas horas cuja descrição falta no tal caderno; o caderno que quando Pilar o encontrou não teve dúvidas de que teria de ser publicado. “Os escritores escrevem para publicar. Ele não queria publicar aquilo? Não queria ou não pôde?”

E assim, simbolicamente, no ano em que se celebram os 20 anos do prémio Nobel, surge o último inédito de Saramago. “Ele ia escrevendo aqueles diários ao longo do ano”, explica Zeferino Coelho, o editor da Caminho que publicou toda a obra de Saramago em vida. “Ele escrevia, e em Janeiro de cada ano via se estava tudo bem, fazia as correcções e enviava a tempo de ser publicado na Feira do Livro [de Lisboa]. Naquele ano, quando chegou Janeiro perguntei pelo Caderno e ele respondeu que nunca mais escrevera nada por não ter tido tempo e que não lhe fazia sentido pegar naquilo. ‘Vou escrever o quê agora sobre esses dias?’, disse, e acrescentou qualquer coisa como ‘Não faço mais Cadernos’. E como todos os anos ele tinha mais um livro novo para publicar, não lhe voltei a falar do Caderno”, refere o editor. Pilar del Río escreve no prefácio: “Este é o renascimento do Caderno VI, o diário que ficou para trás porque a capacidade de atenção é limitada — a do autor, que lidava em diversas frentes, também a daqueles que com ele estavam, que não reclamaram o livro que já era uma tradição anual e, além disso, já fora anunciado. Em defesa de uns e de outros, convém insistir no caos que se instalou em casa de José Saramago, a partir do momento em que foi anunciado o Prémio Nobel da Literatura. (...) O processo de escrita foi radicalmente alterado.”

Manuel Alberto Valente, da Porto Editora — que desde 2013 detém os direitos da obra de Saramago — escusa-se a fazer avaliações ou comparações sobre a qualidade literária face aos cadernos anteriores, publicados anualmente desde 1994. Como Pilar, como Zeferino, também considera que a obra de um autor é para publicar e refere: “Os diários são sempre um instrumento importante para se perceber a obra e a personalidade de um autor. O aparecimento de um diário que não se sabia que estava escrito é um acontecimento literário importante. Faria todo o sentido apresentá-lo nesta altura.”

Saramago era reticente em relação a publicar alguns trabalhos antigos. Refere isso numa entrevista ao jornalista brasileiro Humberto Werneck, para a revista Playboy. O jornalista pergunta-lhe por trabalhos antigos, vai à génese, e o diálogo que se estabelece (transcrito na entrada de 28 de Junho de 1998) é este:

A sua estréia foi lá atrás, aos 25 anos.
Tenho um livro que foi reeditado agora — o meu editor teimou e a minha mulher ajudou nisso —, um romance que publiquei em 1947. Chama-se’Terra do Pecado’. Não está mal escrito, mas tem pouco a ver comigo hoje. Ainda escrevi um outro livrinho [o romance Claraboia], que está por aí, mas, enfim...

Não será publicado?
Em vida minha, não. Depois, se quiserem...

Do que se trata?
É a história de um prédio onde há seis inquilinos, e é como se por cima da escada houvesse uma claraboia por onde o narrador vê o que se passa embaixo. Não está mal, mas não quero que publiquem.”

Escrito no início da década de cinquenta, o livro seria publicado em 2011, já após a sua morte, mas com o seu consentimento. “Ele acabou por ceder, conta Zeferino Coelho. Li o livro e não achei nada comprometedor. Estava escrito e sou muito defensor que se publique tudo. É um livro construído de maneira clássica. A história passa-se num prédio. Há o sapateiro, um velho anarquista e a outra personagem que de vez em quando se senta a conversar já é uma espécie de Ricardo Reis. Alguém que cultivava uma certa ataraxia. Não se compromete com ninguém. Não quer ficar preso a coisa nenhuma. Quer viver afastado do mundo a contemplar o mundo. Ou seja, já estava lá a ideia que ele vai cultivar com outra amplitude em O Ano da Morte de Ricardo Reis. É uma coisa curiosa e interessante. Já nesta altura, quando diz que lera Fernando Pessoa e a poesia do Ricardo Reis que ele até julgava que era real, não só leu como absorveu aquele heterónimo.” Pilar del Río acrescenta que o romance podia introduzir alguma confusão. “Saramago tinha um estilo e não queria aparecer com um livro noutro estilo.”

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Pilar del Río: "Dentro do projecto Saramago está o pensar, o reflectir, a literatura, e estão os direitos e os deveres humanos" Rui Gaudêncio

Claraboia acabaria ainda por ser adaptado ao teatro em 2015, numa encenação de Maria do Céu Guerra para celebrar os 40 anos do teatro A Barraca. A RTP2 exibiu-a este sábado para assinalar os 20 anos do Nobel.

Como se conquistam novos leitores, quando o autor de que se fala já não escreve, já morreu, ainda que seja um Nobel? Como é que se mantém viva a obra? “Não é fácil. É preciso tomar medidas. O mundo académico é muito importante, o estudo universitário, as conferências, este congresso”, responde Pilar del Río acerca do Congresso Internacional que irá decorrer em Coimbra, de 8 a 10 deste mês de Outubro, no Convento de São Francisco, uma organização do Centro de Literatura Portuguesa da Universidade de Coimbra, coordenado por Carlos Reis. “É muito importante ir continuamente por universidades de diversos países a falar. Mas isso é para ficar no âmbito académico? Não. Mas isso projecta, mantém e suporta. Temos boas editoras em diversos países e algumas são militantes de Saramago. Em França vai ser feita uma recompilação e republicação da obra completa. É preciso discutir e perfilar muitas coisas, mas vamos conseguindo. E é muito importante para tudo isso que uma pessoa de top represente José Saramago no mundo”, acrescenta, sublinhando ainda outro dos projectos: a adaptação da obra de Saramago a séries de televisão e ao cinema. “Um dos momentos que mais ajudou a criar leitores em todo o mundo foi o filme José e Pilar. Foi primeira página em jornais num país como o Irão! O como aconteceu com Ensaio sobre a Cegueira.” Mais uma vez com a relutância inicial de José Saramago.

2 de Março de 1998

Diz Ray-Güde Mertin que lhe chovem de Los Angeles perguntas de produtores de cinema (são já oito ou nove, informa ela) a querer saber se os direitos do Ensaio sobre a Cegueira estão livres. Como o livro ainda não apareceu à luz nos Estados Unidos, o motivo do súbito e arrebatado interesse (não creio que naquelas californianas paragens se leiam jornais ingleses) deve ter sido o catálogo da Harcourt Brace, que, mais do que provavelmente, se excedeu na eloquência publicitária... Enfim, o cinema ataca outra vez. Terei eu forças para resistir-lhe? Por meras razões de simpatia (não fui capaz de dizer não a Yvette Biro), já se me escapou das mãos A Jangada de Pedra, mas juro pelos deuses de todos os céus e olimpos que no Ensaio sobre a Cegueira ninguém toca.”

Pilar lembra. “Ele dizia sempre: ‘Não quero ver a cara das minhas personagens’. Também nunca tinha tido uma oferta concreta maravilhosa.”

Aceitou a adaptação de Fernando Meirelles, em 2005. E acabou por escrever no catálogo do filme. “Houve um tempo em que eu não queria ver a cara das minhas personagens quando me chegavam pedidos de adaptação de romances meus ao cinema. Digamos que eu era então uma espécie de radical da escrita: o que não passava pela palavra posta num papel simplesmente não existia.” Pilar refere que a experiência com A Jangada de Pedra, filme estreado em 2002, realizado pelo holandês George Sluizer, o deixou receoso. Passou. “Ele poderia ter dito que não milhões de vezes, mas agora que depende de mim eu vou dizer que sim. O meu trabalho é continuá-lo e eu vejo que o mundo mudou nos últimos anos de uma maneira tal que... Já não lemos livros, lemos os jornais em digital. Quero ver As Intermitências da Morte em série.”

É um dos próximos projectos, ou vontades. Para já há música, a encomenda da peça sinfónica Memorial a António Pinho Vargas passa por essa divulgação, de manter vivo o nome e homenagear. A estreia está agendada para Dezembro, numa interpretação da Orquestra Sinfónica Portuguesa dirigida por Cristóbal Soler.

7 de Dezembro de 1998

O discurso em Estocolmo. “Compreendemos que um livro é como uma partitura, que a fala é como uma melodia ansiosa e inesgotável.” Saramago chegou a estudar na Academia de Amadores de Música de Lisboa, queria aprender violoncelo, achava-o o instrumento mais aproximado da voz humana. Nunca aconteceu. Ia escrevendo sempre, treinado a voz do escritor.

Dia 10 de Julho de 1998

“Assombro. O ayuntamiento de Madrid propõe-me para o Nobel. Em Lanzarote, o taxista que me trouxe do aeroporto conta-me que o terreno onde agora se levanta a minha casa pertencera à sua família e recordou que quando tinha dez anos lavrou esta terra pobre com um camelo...” José Saramago vai acrescentando entradas ao diário enquanto promove o seu mais recente romance, Todos os Nomes, lançado em Portugal no fim de 1997. Dia 18 de Agosto. “Finalmente, respondi à carta de Miguel Real. Assim: ‘A sua carta de 26 de maio (...) apanharam-me numa curva do caminho e, portanto, em risco de derrapagem. Por motivos de trabalho, nada mais. Ou nada menos. As mil andanças que me comeram o tempo no ano passado, sem esquecer o labirinto de Todos os Nomes em que quase me perdi, tiveram como efeito atrasar-me o diário a um ponto tal que até este Julho não fiz outra coisa que empurrá-lo...” 

Todos os Nomes era o décimo romance de José Saramago e o primeiro que Pilar del Río traduzia para castelhano. “Foi o mais difícil”, confessa. “Perdi o meu arquivo quando já estava traduzido e caí numa depressão tremenda, nenhum técnico conseguiu recuperar. Fiquei tão mal que saí de Lanzarote e fui para Granada, a aldeia da minha mãe, e fiquei uns dias com ela. Estava desolada. Era também o primeiro livro que traduzia. Teve um lado bom, porque foram as últimas férias que passei com a minha mãe. O pior é que voltei ao livro e voltaram todas as dúvidas. Não tinha aprendido nada [ri]. Ou seja, tê-lo já traduzido não significou que tivesse o caminho resolvido.” Chamaram a Todos os Nomes o mais kafkiano dos livros de Saramago. Pilar concorda. A obra é kafkiana. Como dizia Francisco Umbral, “Saramago escreveu um não-romance, com uma não-história, com uns não-personagens de um não-encontro e um não-amor. Saramago escreveu um livro magnífico e a única coisa que tem de fazer a partir de agora é sentar-se à porta de casa e esperar que lhe dêem o Nobel.” Mas a dificuldade de traduzir Saramago não era tanto a complexidade dos seus livros, mas a proximidade dos dois idiomas e sobretudo o facto de o autor espreitar por cima do ombro da tradutora. “Ter o autor a espreitar quando estava a trabalhar era odioso. Eu a escrever e ele a espreitar. Sempre que ele vinha eu tinha a tentação de mudar de página, como se estivesse a fazer qualquer coisa clandestina”, continua, revelando ainda que muitas vezes ele lia, que a princípio até discutiam a tradução, mas... “depois deixei de fazer isso porque deixei de lhe perguntar. Ele não tinha a mesma relação com as minhas perguntas que tinha com as dos outros tradutores. Por isso quando eu tinha dúvidas falava com outras pessoas.”

Desde aí traduziu toda a obra de Saramago, mas recusou traduzir este Último Caderno. “Se antes a dificuldade de traduzir era pela proximidade da língua e pela proximidade do autor — que tira liberdade, inclusive —, agora senti que não é só a presença física a tirar liberdade. Desta vez, não tenho liberdade porque oiço a música de Saramago, oiço a voz de Saramago e acho uma traição passá-la para outro lugar. Não tive serenidade espiritual para o traduzir. Não consegui e a partir do momento em que tomei a decisão de não o traduzir e comuniquei à editora nesse dia perdi estas rugas”, diz apontado para o rosto.

Dia 11 de Julho de 1998

Carta para Cleonice Berardinelli com desculpas e algo mais: “... Há alguns meses, o Manuel Alegre escreveu-me, a propósito de Todos os Nomes, certas palavras que me perturbaram e me têm perturbado até hoje. Disse ele: ‘Aonde irá você parar? Tenho medo por si...’ Realmente, a partir do Ensaio a minha relação com o acto de escrever mudou, o que só pode significar que algo terá mudado em mim. Tenho tentado explicar isto pela metáfora da estátua e da pedra, digo que até ao Evangelho andei a descrever uma estátua, a superfície da pedra (a estátua é apenas a superfície da pedra...) e que com o Ensaio passei para o lado de dentro, para a pedra só pedra e nada mais que pedra. Ficou mais claro assim? Provavelmente não, mas é o que ando a sentir. Se a tudo isto se junta que cada vez menos me interessa falar de literatura, que duvido até que se possa falar de literatura...”

Pilar del Río ouviu ler algumas frases do Caderno e sorri. Lembra que desde que soube do prémio e reflectiu sobre ele, Saramago o encarou como uma missão. Não apenas literária. “Ele assumiu-o como uma responsabilidade e isso está claríssimo no livro do Ricardo [Viel]. José, por pudor, não contaria. Tinha vergonha. Mas assume o prémio como uma responsabilidade. Em Portugal, a de compartilhar a alegria. E fora de Portugal quase como uma bandeira. É português, vá onde vá, fala português. Fazia questão de que fosse em português. E então a missão é mostrar uma cultura, uma língua e uma forma política de estar no mundo. A ética da responsabilidade. Não precisava de deixar de ser comunista, não iria deixar de o ser, e iria manifestar-se como um homem de esquerda, como um homem responsável, como um antidogmático. Assumiu o compromisso da responsabilidade de uma forma rotunda.”

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Como se conquistam novos leitores, quando o autor de que se fala já não escreve, já morreu, ainda que seja um Nobel? Como é que se mantém viva a obra? “Não é fácil. É preciso tomar medidas." Inácio Rosa/Lusa

Dia 5 de Outubro de 1998

“Para Alexandra Lucas Coelho, do Público: ‘Que significa hoje ser escritor comunista? (...) Tiremos o escritor e perguntemos simplesmente: Que significa hoje ser comunista? Desmoronou-se a União Soviética, foram arrastadas na queda as denominadas democracias populares, a China histórica mudou menos do que se julga, a Coreia do Norte é uma farsa trágica, as mãos dos Estados Unidos continuam a apertar o pescoço de Cuba... Ainda é possível, nesta situação, ser-se comunista? Penso que sim. Com a condição, reconheço que nada materialista, de que não se perca o estado de espírito. Ser-se comunista ou ser-se socialista é, além de tudo o mais, e tanto como ou ainda mais importante que o resto, um estado de espírito. Neste sentido, foi Ieltsin alguma vez comunista? Foi-o alguma vez Estaline? A epígrafe que pus em Objeto quase [livro de contos, 1978], tirada de A Sagrada Família, contém e explica de modo claro e definitivo o que estou a tentar exprimir. Dizem Marx e Engels: ‘Se o homem é formado pelas circunstâncias, é necessário formar as circunstâncias humanamente.’ Está aqui tudo. Só um ‘estado de espírito comunista’ pode ter sempre presentes, como regra de pensamento e de conduta, estas palavras. Em todas as circunstâncias’.”

Pilar del Río faz um sublinhado. “O facto de ser tudo isso e não só um escritor literário fez a diferença no modo como se projectou.” Com Saramago, o Nobel não foi uma distinção apenas literária. “No caso de José, independentemente de ser um autor literário, era também um pensador. Ele teve uma intervenção cívica, como outros intelectuais. Sartre teve o Nobel da Literatura, mas também foi pelo seu pensamento. São pessoas que transcendem a realização literária. Além de uma grande obra literária têm um pensamento próprio que continua a iluminar.”

8 de Agosto, de 1998

“Um dia deixei consignada nestes cadernos a única ideia em tudo original que até aí tinha produzido (...), aquela luminosíssima ocorrência de que na publicação da obra completa de um escritor deveria haver um volume ou mais com as cartas de leitores...” E deixa a primeira dessas cartas, simbolicamente dirigida a Pilar. “Querida Pilar: escrevo-te a ti, pedindo que, após a tua leitura, faças chegar esta carta ao Senhor José, pois considero que não pode haver segredos entre um escritor e os seus leitores.”

Vem no Último Caderno esta espécie de testamento. “Temos de fazer esse trabalho na Fundação num futuro muito próximo. A verdadeira revisão crítica é dos leitores. Esse vai ser o contributo definitivo da obra de José Saramago à literatura. O posicionamento de José Saramago era o de, mantendo o respeito à tradição, de ruptura. O posicionamento político de José Saramago, o humanismo. José Saramago era militante do Partido Comunista, mas José Saramago era um humanista e provocou muito nos seus leitores esse posicionamento de ruptura, tanto literário como ideológico. Será muito interessante conhecer essa recepção nos leitores.”

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Giorgio Lotti/Archivio Giorgio Lotti/Mondadori Portfolio via Getty Images

Há milhares de cartas, adianta, onde “as pessoas sobretudo se contam”. Menos rica é a correspondência entre pares. “José Saramago é um autor muito tardio e tem correspondência com outros autores, mas lamentavelmente já existia o telefone, o fax, e as viagens. E aí perdeu-me muito do vínculo com os seus pares.” Conta conversas com Orhan Pamuk, Gabriel García Márquez, Carlos Fuentes, Nadine Gordimer, a escritora sul-africana, Nobel em 1991, que leu o conto O Centauro, de Saramago, para um podcast do jornal The Guardian. Não há registo de nenhuma dessas conversas a não ser na memória de Pilar del Río que participou de muitas. Pode-se esperar um livro com essas memórias? “Não vai haver!” Porquê? A resposta é um longo silêncio.

Mas os leitores de Saramago podem esperar algumas coisas mais do escritor além deste Último Caderno. “Há algumas coisas da juventude. Fernando Gómez Aguilera estudou isso e disse-me que tinham interesse. Não li. Talvez haja algumas coisas, algum conto, uma obra de teatro. E talvez isso venha a ser conhecido, mas sempre em edições para estudiosos. Um livro de grande alcance, para todos os leitores... já não há nada. Lamentavelmente. O que Saramago escrevia dois meses depois estava na rua. Não havia gavetas com coisas, em Saramago não existe baú.”

Fica a luz e a sombra que faz parte de uma obra pioneira. No fim, mais sombra. Os dias de 1998, até onde ele os desenvolveu já tinham notas desse lado. A 29 de Março respondia a uma pergunta de Eduardo Prado Coelho sobre como via a situação das culturas europeias. “Confusas, perturbadas, à espera não se sabe de quê, talvez de uma ideia, de uma convicção. Quis-se ‘inventar’, voluntaristamente [sic], uma ‘cultura europeia’, e agora nem temos a europeia, nem sabemos que fazer das nacionais. Vivemos já no tempo do ‘pensamento zero’, que é pior que o ‘pensamento correcto’. Que haja pessoas a pensar? Não duvido. Simplesmente, ninguém lhes dá atenção...” Antes, a 23 de Janeiro lamentava-se: “Desgraçadamente, a esquerda, além de ter deixado de pensar, perdeu o hábito da leitura.”

Pilar confirma o desânimo que viria maior, depois. “José dizia, na tristeza do final da sua vida, que os ovos da serpente estavam a ser incubados de uma maneira perigosa... Criticava a ideia de Deus como um absoluto que provoca que milhões de seres humanos se fanatizem ou fechem os olhos. E as armas. Não entendo como é que Alabardas, Alabardas [30 páginas de um romance iniciado por Saramago e que não chegou a concluir, publicado em 2014] não é de leitura obrigatória. Passou ao lado. É a ética da responsabilidade, o cidadão honesto que é tão honesto tão honesto, mas transige com o fabrico de armas com a pobreza absoluta ao lado, com a morte de outros semelhantes, que considera isso uma fatalidade histórica. É cúmplice, porque não tem a ética da responsabilidade. Saramago, sabendo que ia morrer, que lhe restavam meses de vida, põe-se a abordar num romance a ética da responsabilidade! E que sabia como ia terminar o romance. O romance terminava com um ‘vai à merda’. E merda seria a última palavra que José iria escrever.”