Porque é que o feminismo deve sair à noite?

O excesso e a perda de controlo são vistos como comportamentos aceitáveis entre homens. No entanto, é esperado que as mulheres se autocontrolem e moderem os seus comportamentos como forma de manter a respeitabilidade e feminilidade.

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George Gvasalia\Unsplash

O movimento #MeToo tem servido de gatilho para mediatizar as formas de violência sexual, de maior ou menor intensidade, que afectam, fundamentalmente, mulheres em países ocidentais. Acusado de puritanismo e de histeria pelos/as mais reaccionários/as, este movimento expandiu-se, ramificou-se e permitiu que muitas mulheres ganhassem consciência sobre a sua própria condição e sobre as normas sociais e dispositivos estruturais que legitimam e naturalizam as várias manifestações de violência sexual que vivenciam desde tenra idade.

Nesta conjuntura, os ambientes de lazer nocturno (bares, discotecas, festivais de verão, zonas de diversão nocturna, etc.) têm vindo também a ser discutidos e pensados a partir de uma perspectiva de género. Nos últimos 20 a 30 anos, estes ambientes afirmaram-se como espaços-tempo importantes e amplamente valorizados, principalmente entre os públicos mais jovens. O reconhecimento da noite enquanto mais uma área produtiva nas cidades pós-modernas e a afirmação da diversão nocturna enquanto uma componente normal da vida contemporânea foram amplamente acolhidos por um público sedento de oportunidades de diversão, socialização e quebra com as responsabilidades formais e rotineiras que caracterizam a semana.

Mas não só: a atractividade dos ambientes de lazer nocturno é intensificada pela sua permissividade para com comportamentos transgressivos, a vivência do risco e do excesso e o acesso a estados alterados de consciência. No entanto, este seu potencial hedonista e emancipatório não camufla as formas de exclusão social, baseadas em desigualdades de classe, étnicas e de género, que reproduzem. Ao nível das desigualdades de género, não é preciso olhar à lupa para trazer “à luz do dia” as retóricas e práticas sexistas embebidas em ambientes de lazer nocturno. A erotização do corpo da mulher para publicitar eventos e bebidas alcoólicas, a pressão para o uso de dress codes sexy, o uso de conteúdos musicais hipersexualizados, eventos como a "Noite da Mulher" criam uma atmosfera fortemente sexista onde a mulher surge como mais um “bem consumível”, um corpo público e acessível. Estes ambientes naturalizam também o assédio sexual, permitindo a presença de comentários sexuais incómodos e comportamentos como insistências e toques não consentidos enquanto dinâmicas de interacção social normais e aceitáveis. Por esse motivo, as mulheres têm de integrar a gestão de situações de assédio sexual como uma componente normal nas suas experiências de diversão nocturna.

Adicionalmente, o lazer nocturno promove uma cultura de excesso e de consumo que, por reproduzir normas hegemónicas, tem repercussões diferentes consoante o género. O excesso e a perda de controlo são vistos como comportamentos aceitáveis entre homens. No entanto, é esperado que as mulheres se autocontrolem e moderem os seus comportamentos como forma de manter a respeitabilidade e feminilidade. Estas assimetrias resultam em vivências de lazer nocturno desiguais, sendo que as mulheres vêem a sua liberdade de expressão e acção balizada pela responsabilidade extra e unilateral de se protegerem como se a sua segurança dependesse apenas delas próprias. Este facto é flagrante na forma como são percebidas as situações de abuso ou agressão sexual. A cultura da violação não perdoa e usa os mesmos comportamentos (sair à noite, consumir álcool ou outras substâncias) para culpabilizar a vítima, alegar que consentiu, não resistiu o suficiente ou de alguma forma provocou a situação, enquanto o agressor é desculpabilizado porque “não se conseguiu controlar”.

O feminismo também deve sair à noite porque existem desigualdades de género a nível laboral. Os cargos de liderança mantêm-se masculinizados, as barmaids têm de incorporar determinados dress codes (decotes, saltos altos, maquilhagem, por exemplo) e a gestão de situações de assédio sexual nas suas responsabilidades laborais e as produtoras culturais (como as DJ) continuam a ser paternalizadas e reconhecidas meramente pelo sua aparência, tendo de fazer um investimento maior para serem reconhecidas pela qualidade do seu trabalho.

É com base no reconhecimento de que os ambientes de lazer nocturno perpetuam normas de género hegemónicas que legitimam o sexismo, a desigualdade, a insegurança e a vitimação sexual que surge o projecto Sexism Free Night com o objectivo de trabalhar em proximidade com estabelecimentos e eventos para a criação de roteiros de diversão nocturna mais seguros e igualitários. Este projecto é também responsável por um estudo que pretende determinar a relação entre violência sexual, a frequência de ambientes de lazer nocturno e o consumo de substâncias psicoactivas (questionário disponível aqui).

Por fim sublinho que, enquanto persistirem práticas e imaginários sexistas que legitimam a (re)produção de violência contra as mulheres, o feminismo deve sair para todo o lado.

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