Mapplethorpe só para maiores de 18: "Censura” e “puritanismo” têm invadido as instituições culturais

João Fernandes, director do Museu de Serralves entre 2003 e 2012, hoje subdirector do Museu Rainha Sofia, em Madrid, Emília Tavares, curadora de fotografia e multimédia do Museu do Chiado, e Delfim Sardo, programador de artes plásticas da Culturgest, reagem à sala reservada, onde não é permitida a entrada a menores de 18 anos, na exposição de Robert Mapplethorpe no Porto.

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João Fernandes, director do Museu de Serralves entre 2003 e 2012, considera “inaceitável” que haja na exposição de Mapplethorpe uma sala reservada onde não é permitida a entrada a menores de 18 anos, como avançou o PÚBLICO. “No contexto adequado, como o de um museu, a nudez ou os conteúdos explícitos não serão nunca um problema. A história da arte está cheia deles. Custa-me a acreditar que isto esteja a acontecer em Serralves.”

E com “isto” o curador português que é desde 2012 subdirector do Museu Rainha Sofia, em Madrid, um dos mais importantes museus de arte contemporânea da Europa, refere-se à “censura” e “puritanismo galopante” que têm invadido as instituições culturais. Um puritanismo que, defende, se deve aos “totalitarismos que grassam por toda a parte” e que preferem proibir do que enfrentar o debate de ideias e o pluralismo de opiniões.

João Fernandes, que está neste momento no Brasil, diz que o país é cada vez mais um exemplo de como museus e galerias estão a ser afectados por este “retrocesso preocupante”, evocando o que sucedeu em exposições como Histórias da Sexualidade, no Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP), e Queermuseum, em Porto Alegre. “É uma realidade que me entristece, no Brasil, em Portugal, em qualquer lado”, reitera.

Criar numa exposição de Serralves uma sala reservada resulta, na opinião de Fernandes, de uma “decisão censória” que, em última análise, se traduz num uso indevido do museu. “Trata-se, simplesmente, de uma questão de cidadania, de direitos cívicos. O pai ou a mãe de um menor devem ter o direito de levar os filhos a qualquer exposição, de decidir com eles a que imagens vão expô-los, que imagens querem discutir. Não deve ser o museu – não pode ser o museu – a decidir por eles. O que um adolescente pode ver nesta exposição é mais explícito do que viu já, sem filtro, na Internet ou na televisão?”

O subdirector do Rainha Sofia defende, no entanto, que o museu deve advertir para a existência de conteúdos explícitos para que as pessoas possam decidir o que querem ver e dar a ver. “Não acho que um museu deva alertar para a nudez, não faz sentido, mas se com ela vierem conteúdos sexualmente explícitos acho que as pessoas não devem ser surpreendidas.”

Nos anos em que ocupou o cargo de director artístico em Serralves, João Fernandes nunca criou qualquer área interdita no museu, embora tivesse programado performances e exposições com conteúdos sexualmente explícitos, como no caso da fotógrafa norte-americana Nan Goldin.  “Fizemos os avisos que achámos que tínhamos de fazer, mas nunca sofri qualquer pressão da administração para não mostrar algo por causa do seu conteúdo. As pessoas têm de poder escolher.”

Ainda que a obra de Robert Mapplethorpe continue a alimentar o debate sobre o que é ou não pornografia, não tem qualquer dúvida quanto à sua posição: “É bom que as pessoas discutam, mas não há qualquer conteúdo pornográfico na obra de Mapplethorpe. Na pornografia há uma exploração do corpo que lhe retira dignidade, em Mapplethorpe há um enobrecimento do corpo. O que é verdadeiramente pornográfico é o falso puritanismo.”

Emília Tavares, curadora de fotografia e multimédia do Museu Nacional de Arte Contemporânea - Museu do Chiado, em Lisboa, concorda com o antigo director de Serralves – condicionar o acesso ao criar uma “sala reservada” é um desrespeito pelas liberdades individuais e ajuda a “agudizar um clima de moralismo falso e démodé”.

No Museu do Chiado, a prática resume-se a avisar o visitante. “Isto não aconteceria aqui. Nós não barramos a entrada, não definimos limites etários. O que fazemos é dizer às pessoas que, devido a conteúdos de natureza sexual ou de grande violência, o que se preparam para ver é susceptível de chocar. A partir daí a pessoa decide por si – ver ou não ver é uma questão do foro particular. Não cabe aos museus fazer qualquer tipo de proibição.”

Este tipo de censura não é, no entanto, inédito nos últimos anos em Portugal. Lembra Tavares que a exposição P-Town, com trabalhos do artista João Pedro Vale e prevista em 2011 para o Espaço Arte Tranquilidade, acabou por ser cancelada pela seguradora devido aos seus conteúdos. “Apesar de tudo, a galeria da Tranquilidade é um espaço privado que não tem as responsabilidades de Serralves”. E, para esta investigadora de História da Fotografia, as “responsabilidades” de Serralves estão ligadas ao seu passado e às expectativas que a sua programação criou e alimentou, justificadamente, junto dos seus públicos: “Serralves habituou-nos a uma grande abertura, mostrando artistas de ruptura, capazes de enunciar novas linguagens… E agora parece que estamos a voltar aos Estados Unidos no final dos anos 80 [quando a obra do artista foi pela primeira vez censurada].”

E este retrocesso é ainda mais questionável quando, sublinha, estes conteúdos estão disponíveis noutras plataformas. Para que fique claro, diz, a associação entre algumas das fotografias de Mapplethorpe e a pornografia só não é um “debate estafado” nos meios mais conservadores. “A capacidade que certos objectos artísticos têm de chocar até é um debate interessante, mas no que diz respeito ao Mapplethorpe está, para a maioria das pessoas, fechado. Agora, com esta sala [reservada], ficámos a saber que a administração de Serralves é muito conservadora.”

A autodeterminação do espectador

Delfim Sardo, programador de artes plásticas da Culturgest, não viu ainda a exposição inaugurada esta quinta-feira à noite, mas conhece bem a obra do norte-americano, um artista que, defende, “continua a ter uma energia e uma potência de desassossego” que se tornam evidentes na atitude das instituições em relação ao seu trabalho.

Numa época de “moralismo perigosíssimo” na sociedade em geral e no sector cultural em particular é fundamental que as instituições compreendam que têm um papel a desempenhar, acrescenta o curador, um papel que não passa por criar “salas reservadas”. “O espectador é autodeterminado – decide por si. O que está a acontecer em Serralves é uma instituição a substituir-se à autodeterminação do espectador.”

Se a obra de Mapplethorpe é ou não pornografia é o que menos interessa neste debate – “a arte sempre namorou com a pornografia. O que interessa é discutir a questão do espectador, a quem já foi outorgada a maioridade”. Uma maioridade que não tem a ver com idade, mas com maturidade intelectual. “Precisamos de estar atentos se queremos continuar a ter museus e outras instituições culturais que sejam espaços de liberdade, de verdade, complexos e não consensuais.”

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