Mulheres e cidades, do medo e da tomada de posse

As mulheres, as raparigas e as meninas viverão os seus quotidianos nos espaços públicos de modos diferentes e muito mais restritivos pelo simples facto de não serem homens, rapazes ou meninos. Isto não é seguramente democracia.

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Há uns meses, a Adriana Souza, investigadora brasileira a estudar as cidades de Lisboa e Brasília e a mobilidade a pé na perspectiva da mulher, pediu-me que lhe respondesse a umas quantas questões. A conversa foi rica e deixou-me efervescente de inquietações, mas com duas certezas. Por um lado, que a relação difícil entre as cidades e as mulheres começa a cada dia que passa a ser mais falada, discutida e percebida dentro e fora da academia, mesmo em Portugal. Por outro lado, o quanto é fundamental a construção de redes, de estruturas formais e informais de reflexão, pressão e acção sobre estes temas; sem estes processos os/as decisores/as políticos/as dificilmente agirão no sentido da mudança.

O aspecto estrito da segurança não deve e não pode esgotar a discussão sobre as mulheres e as cidades. Às outras dimensões da liberdade de ser-se um ser urbano voltarei noutro momento. Ainda assim, a pergunta feita que me ficou a bailar na cabeça com mais intensidade tocava neste assunto. Perguntava-me a Adriana se a cidade de Lisboa me recebia bem, se me deixava sentir confortável. A minha resposta foi dada separando o ser bem acolhida e o deixar confortável. Respondi-lhe que não achava que fosse uma cidade uniformemente acolhedora, que efectivamente para mim muitos sítios eram sentidos como agressivos. Mas que, relativamente à falta de acolhimento, eu aprendera a conquistar o meu direito a viver a cidade e que, racionalizando de modo quase violento a minha relação com esta, eu me obrigara — me obrigo a cada dia! — a aprender, ao longo dos anos, o sentimento de estar em casa.

Tenho a memória perfeita do que imagino ter sido o primeiro assédio sexual em espaço público que sofri na vida. Tinha 11 anos e um velho disse-me coisas assustadoras, incompreensíveis e seguramente nojentas que queria, segundo o próprio, fazer comigo. Não percebi quase nada do que ouvi nem o que eu fizera para merecer ouvir aquilo. Sei que andei anos sem vestir saias e garantindo que as camisolas eram suficientemente largas para que as minhas mamas não se vissem. Fui o que se chama uma maria-rapaz por muito tempo. E esta versão de mim nasceu, nessa altura, alimentada pelo medo. Porque seguramente a culpa era desse corpo que me ia calhando, crescendo. O direito a mostrar-me ao mundo como me apeteça tem demorado anos a ser reconquistado. Como também foram muitos os anos que demorei a dizer-me sistematicamente que “eu tenho o direito a estar aqui, nesta rua”, “eu também pertenço aqui, a esta hora neste lugar” ou “esta também é a minha cidade”.

Quando conseguimos, tomamos individualmente posse da cidade. Eventualmente. Por teimosia, persistência e nem sempre medindo todos os riscos que corremos, ganhamos algo que não faz sentido que não seja nosso. Mas a gravidade do problema, em números, diz-nos que as mulheres, as raparigas e as meninas, 53% de pessoas que habitam Portugal, viverão os seus quotidianos nos espaços públicos de modos diferentes e muito mais restritivos pelo simples facto de não serem homens, rapazes ou meninos. E justifiquem-no ou desculpem-se como quiserem, mas isto não é seguramente democracia.

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