Medidas para o Interior e coragem política: uma opinião sobre bolos, farinha e fermento

Sem persistência nem coragem, não há política a sério, apenas desperdício de recursos.

Tem-se falado de medidas de política a favor do desenvolvimento dos territórios do Interior e algumas começam a ver a luz do dia. Dois exemplos. Está já em execução a transferência de quotas de alunos do Ensino Superior (numerus clausus para o primeiro ciclo) dos estabelecimentos públicos de Lisboa e Porto para os de outras cidades. O Movimento pelo Interior propôs a aplicação em exclusivo nos territórios do Interior do regime contratual de investimento, medida que não está em vigor. Note-se que este regime já existe, é aplicável em todo o país e permite ao Estado oferecer contrapartidas significativas (subsídios, reduções fiscais e até investimentos públicos) em troca de investimentos privados superiores a 25 milhões de euros (M€) ou, se inferiores, desenvolvidos por empresas com facturação consolidada superior a 75 M€.

Alguns economistas prestigiados têm criticado o lançamento de medidas de politica de desenvolvimento económico exclusivas para os territórios menos urbanizados com vários argumentos que se podem sintetizar na seguinte ideia: medidas desgarradas são ineficazes e medidas territorialmente discriminatórias redundam em empobrecimento nacional e, por isso, não devem existir. Paulo Trigo Pereira (PTP) pronunciou-se neste sentido em artigo publicado no “Observador” em 5 do corrente acerca da transferência de numeri clausi e Luís Cabral (LC) fê-lo a propósito da generalidade das medidas preconizadas por aquele movimento no caderno de Economia do “Expresso” em 21 de Julho último. Concordo com a primeira crítica, discordo da segunda.

A justificação para a concordância é fácil. Uma política digna desse nome pressupõe diagnóstico, visão de futuro, estratégia construída e executada com as partes interessadas, liderança, governança apropriada, avaliação permanente e persistência. As medidas ou instrumentos de política devem brotar com naturalidade de todo este quadro institucional. Estes nós e a articulação entre eles são tanto mais importantes e desafiantes quanto mais interdisciplinar for o problema a que a política se dirige e mais intersectorial a solução dever ser. É precisamente este o caso do problema do desenvolvimento económico e dos instrumentos de política para o promover.

A segunda crítica advém de um quadro mental segundo o qual as assimetrias territoriais de desenvolvimento são um problema de redistribuição e não de eficiência. O que o Estado deve fazer é incentivar reafectações de recursos que maximizem o tamanho do bolo (leia-se PIB ou crescimento potencial nacional) para que haja fatias mais largas para cada um (entenda-se, residentes em cada território) e, se politicamente desejado, redistribuir fatias. Existem ainda muitas pessoas que acham que a indução de crescimento nos pólos à partida mais dinâmicos (leia-se, áreas metropolitanas de Lisboa e Porto) se revelará melhor para o PIB nacional e que os benefícios nos pólos alastrarão naturalmente, qual mancha de óleo, às periferias. Não é o caso dos colegas acima referidos. LC entende que o esvaziamento do interior é inevitável dada a atracção económica exercida pelos pólos e que não há razões de eficiência para intervir nesse espaço porque não detecta falhas de mercado na situação presente. PTP, mais político, entende justificarem-se medidas redistributivas, mas que não prejudiquem o crescimento das áreas metropolitanas, por reconhecer que a persistência de oportunidades desiguais se torna num problema para o poder a partir de determinado nível.

A minha discordância com esta posição resulta da constatação de que a realidade de muitos países, e seguramente a portuguesa, não confirma a tese da mancha de óleo. Num mundo de concorrência perfeita nem sequer seriam necessárias políticas públicas pois as regiões convergem no longo prazo para o mesmo nível de produtividade per capita e, se quisermos, de desenvolvimento. A mobilidade irrestrita de bens e factores de produção, que decorre de diferenças interregionais nos preços relativos, corrigiria no longo prazo eventuais diferenças interregionais iniciais no nível de desenvolvimento. Porém, não é isso que a ciência regional tem encontrado; bem pelo contrário, as diferenças iniciais tendem naturalmente a agravar-se porque, em paralelo àqueles factores de convergência, a economia tem mecanismos próprios que acentuam o crescimento dos pólos em detrimento do das periferias (factores de divergência). São as chamadas economias de aglomeração e outros factores explicados nas teorias do desenvolvimento endógeno. O que nos ensinam é que o espaço económico não é plano, antes tem picos de desenvolvimento e borrachas de sucção dos recursos mais produtivos de territórios menos povoados para áreas densamente urbanizadas; em muitos contextos reais, e os territórios de baixa densidade portugueses ilustram esta experiência há décadas, as forças divergentes suplantam as convergentes durante gerações.

Se a mão invisível dos mercados funciona assim, é natural que as sociedades se interroguem sobre a capacidade e o custo-benefício de a mão do Estado reequilibrar a balança no sentido de travar o empobrecimento relativo duradouro de cada vez mais extensas parcelas do território nacional. É aqui que muitas outras vozes entram na discussão para dizer que sim senhor, o Estado deve estimular as empresas a investir aonde o retorno privado for maior e compensar o défice de oportunidades com subsídios e infraestruturas, mormente de cariz social e rodoviário, no interior ou, mais seletivamente, em territórios de baixa densidade. Este tem sido o quadro mental dominante nas políticas públicas nacionais desde que os fundos estruturais chegaram nos anos 80 e os resultados devem-nos interpelar. Estatísticas do INE (Índice Sintético de Desenvolvimento Regional) e estudos da empresa Augusto Mateus e Associados vêm mostrando, há pelo menos, dez anos que o dito interior progrediu imenso no acesso a infraestruturas de interesse colectivo (saneamento básico, mobilidade, equipamentos escolares e de saúde, etc.), a chamada coesão territorial, mas infelizmente tem marcado passo, e atrasando-se sucessivamente, em relação às áreas mais urbanizadas no que respeita a indicadores de competitividade (emprego criado, qualificação da mão-de-obra, salários reais, produção com intensidade tecnológica média ou superior, etc.). A razão essencial para este aparente paradoxo é que a redistribuição (resultado essencial dos instrumentos indutores de coesão territorial) só por si não cria oportunidades competitivas. Por isso, apesar da melhoria nos indicadores de qualidade de vida, a verdade é que os territórios mais ruralizados e, assustadoramente, mesmo cidades de dimensão média, não cessam de perder habitantes e ver a população residente envelhecer. Uma realidade que ainda não é visível nas áreas metropolitanas. Infelizmente, se nada fizermos, será apenas uma questão de tempo.

Esta visão algo conformista, até hoje dominante nas políticas públicas, ignora mesmo razões de eficiência (ou seja, farinha e fermento para fazer crescer o bolo) para se intervir de outro modo no interior: a existência de falhas de mercado no desenvolvimento assimétrico do país. Com efeito, sem atacar os estrangulamentos competitivos do interior, este deixará de prover inúmeros bens e serviços que a população mais urbanizada aprecia e todos ficaremos mais pobres (externalidades positivas). Falo de terra arável, defesa da biodiversidade, prevenção de fogos florestais, matéria-prima de excelência para gastronomia, vitalidade cultural, património imaterial da Humanidade, e por que não, a manutenção de vilas e aldeias bonitas para fruição de paz de espírito por parte dos visitantes oriundos das cidades. Por isso, a mão do Estado pode ter um papel decisivo para que as empresas e os cidadãos internalizem nas suas escolhas os custos sociais do esvaziamento económico do interior. O “como fazer isso” é uma grande questão, já aflorada nas minhas primeiras crónicas e à qual poderei retornar no futuro.

É neste pano de fundo conceptual e realista mais vasto que o considerado pelos meus colegas citados no início do texto que quero discutir a bondade de medidas de política aplicáveis em exclusivo na parcela menos desenvolvida de Portugal. Tais medidas podem ser racionais dentro do quadro institucional que acima referi e fará então todo o sentido lutar por elas. Agora, os políticos têm de ter consciência que reduzir em 5% as vagas para estudar em Lisboa e Porto descontentará as famílias cujos alunos têm notas de candidatura próximas do limiar de entrada; têm de estar preparados para perder investimento directo para outro país se o regime contratual de investimento deixar de se aplicar nas áreas metropolitanas. Lembro-me de ter lido no documento de programação do 2.º Quadro Comunitário de Apoio (1993–99) que as autoridades queriam a convergência entre as regiões portuguesas; mas também lá estava escrito que este objectivo se deveria subordinar a outro mais importante, o crescimento do PIB nacional. O que eu quero dizer com isto, e afirmo-o com conhecimento de causa, é que um quadro institucional coerente para promover a competitividade no interior tem custos políticos e exige coragem para ser sustentado. Sem persistência nem coragem, não há política a sério, apenas desperdício de recursos.

Cidadania Social — Associação para a Intervenção e Reflexão de Políticas Sociais www.cidadaniasocial.pt 

Sugerir correcção
Ler 2 comentários