Dez brevíssimas notas sobre a manifestação contra o racismo em Lisboa

Entre o comodismo e o cinismo, a elite política vai-se fingindo preocupada com a questão racial.

1. Realizou-se na sexta-feira, ao fim do dia, no Largo São Domingos, em Lisboa, uma concentração contra o racismo convocada pelos movimentos Afrolis – Associação Cultural, Casa do Brasil, Consciência Negra, Djass – Associação de Afrodescendentes, Plataforma Gueto e SOS Racismo. A iniciativa teve como mote as agressões a Nicol Quinayas por um segurança da empresa 2045, a exercer funções de fiscalização para a STCP do Porto. O pano de fundo geral da mobilização foi denunciar a violência racial em geral, a impunidade a ela associada e romper com a invisibilidade do racismo, desafiando ainda a sociedade portuguesa a sair do estado de negação em que está instalada sobre este flagelo. A nota mais importante é que ficou claro que existe um potencial de mobilização real, porque mesmo tendo sido convocada num tão curto espaço de tempo e num horário laboral não tão favorável para as comunidades racializadas, a manifestação correu bem.

2. A comunicação social, como era expectável – excetuando o PÚBLICO, a Lusa, a Antena 1 e a RDP África –, não lhe deu grande cobertura, preferindo manter o registo de coberturas sensacionalistas e muito redutoras do debate sobre o racismo no país. O que mostra que parte da nossa comunicação social ainda constitui um obstáculo à qualificação do debate público sobre o racismo.

3. Oficialmente, nenhum partido político ou figura pública ligada aos partidos com assento parlamentar (exceto Rita Rato, do PCP, segundo me informaram), nenhuma figura com influência social ligada à cultura e às artes, nenhum dirigente do movimento social tradicional ou das grandes ONG, sempre ciosas dos direitos humanos pelo mundo fora – exceto algumas honrosas exceções de indefetíveis companheiros de luta –, nem os muitos académicos que teorizam sobre o racismo, nem tão pouco a elite da esquerda inorgânica que dita frequentemente sermões de militantismo, acharam pertinente marcar presença na manifestação.

4. O mais preocupantemente sintomático é que parece mais fácil mobilizar o país político e os ativismos sociais e académicos em torno das violações de direitos humanos que acontecem fora do país do que daquelas que acontecem dentro. Assim se viu e bem, por exemplo, com o caso de Marielle Franco e das crianças separadas dos pais nos Estados Unidos, onde as figuras gradas da nossa sociedade se atropelaram para o microfone para manifestar o seu repúdio. Apetece perguntar onde está o país real para lá da indignação circunstancial e do "clicativismo"? Porque não existe mobilização do país político em torno do racismo em Portugal, onde acontecem quotidianamente agressões racistas físicas e simbólicas no espaço público, como aconteceu recentemente, por exemplo, com Nicol Quinayas, no Porto?

5. Entre o comodismo e o cinismo, a elite política vai-se fingindo preocupada com a questão racial, mas como ela não granjeia grande proveito eleitoral, o investimento político nela oscila entre o nulo e o poucochinho.

6. O sectarismo e a vontade de manter a procuradoria política sobre as lutas sociais e políticas são mais visíveis na mobilização contra o racismo. E isto explica, em parte, a ausência da classe política na manifestação.

7. Os partidos, os movimentos sociais tradicionais, as elites políticas e académicas só se mobilizam em torno do racismo quando são os aparelhos partidários e burocráticos que convocam. Ou só quando têm ou podem ter potencialmente a possibilidade de controlo político sobre a iniciativa.

8. Há uma afasia social e política coletiva sobre o racismo no país. Os partidos políticos e a sociedade não querem olhar para o racismo como um problema principalmente da sociedade maioritária e continuam a encará-lo como sendo problema apenas dos sujeitos racializados.

9. E não deixa de ser curioso que mesmo a provocação da extrema-direita institucional, liderada pelo sinistro PNR que marcou uma contramanifestação para o mesmo local e à mesma hora, não tenha servido de motivo bastante para mobilizar o país político.

10. Por princípio ético e compromisso político, o empenho com que nos mobilizamos para defender os direitos humanos fora do país deve, no mínimo, ser o mesmo – ou maior ainda – para nos erguermos contra o racismo em Portugal, sob pena de isto tudo parecer mais uma encenação cínica e oportunista, sem correspondência com uma real preocupação com o racismo que existe no país.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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