De Portugal a África para estudar carnívoros, búzios gigantes e cigarras

A National Geographic Society distinguiu três estudantes da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa com bolsas de início de carreira. África é a próxima paragem dos investigadores dedicados à biodiversidade e conservação.

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Gonçalo Curveira Santos, Gonçalo Costa e Martina Panisi DR

Com 16 anos, Martina Panisi fazia criação de búzios gigantes num terrário que tinha em casa. Agora, com 24, está prestes a partir para São Tomé e Príncipe, pela segunda vez, para estudar uma espécie nativa de caracol gigante naquelas ilhas — o búzio-d'obô. A Martina Panisi juntar-se-ão Gonçalo Curveira Santos e Gonçalo Costa, formando assim o trio de jovens recentemente destacados pela National Geographic Society. Os estudantes no Centro de Ecologia, Evolução e Alterações Ambientais (cE3c) da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL) receberam bolsas Início de Carreira, criadas para dar a oportunidade de liderar um projecto a estudantes que estão a começar uma carreira científica. Até à data, apesar de a National Geographic Society atribuir anualmente mais de 450 bolsas de vários tipos, apenas 20 foram entregues a projectos portugueses.

É a primeira vez que os três universitários recebem uma bolsa que lhes financia um projecto próprio – até porque não é nada fácil conseguir uma, explica Gonçalo Curveira Santos: “É um mundo muito competitivo e, para pessoas em início de carreira, é muito difícil competir com pessoas mais experientes para conseguir bolsas individuais. O que fazíamos era tentar juntar os nossos projectos a outros que já tinham financiamento — o que é complicado, porque há sempre incompatibilidades.”

Todos os projectos, que vão ser financiados com apoios entre os cinco e os 10 mil dólares, direccionam-se para um só continente — África —, seja para estudar moluscos, insectos ou, no caso de Gonçalo Curveira Santos, carnívoros terrestres.

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Gonçalo Curveira-Santos

“A África do Sul é uma região do mundo particularmente biodiversa em termos dos carnívoros terrestres que encontramos. Engloba cerca de 35 espécies, o que é um valor muito considerável comparando com outros países, como Portugal, que tem pouco mais de dez espécies. Lá [na África do Sul] encontramos desde o leão, que pode chegar aos 200 quilos, a pequenos carnívoros que nem sequer um quilograma pesam”, destaca Curveira Santos. “E estas espécies habitam numa paisagem muito fragmentada por causa da intervenção humana. Numa pequena escala podemos encontrar áreas protegidas, reservas privadas dedicadas ao turismo e, mesmo ao lado, áreas profundamente humanizadas, sejam elas fazendas de caça ou gado ou até comunidades tribais.”

São estes os vários motivos que o vão levar novamente a África do Sul, para entender “como é que os factores de influência humana presentes ao longo do gradiente de paisagem influenciam a estrutura da comunidade de carnívoros”. O biólogo de 27 anos, especializado em ecologia e conservação, já havia feito um mestrado sobre a forma como carnívoros de médio porte (como raposas e texugos) se adaptavam a paisagens humanizadas. No doutoramento, que está a concluir no cE3c em parceria com a Universidade de Venda, na África do Sul, decidiu alargar o campo de estudo a todos os carnívoros terrestres, animais que o fascinam desde muito novo e que, como predadores, têm uma grande importância na estruturação e no funcionamento dos ecossistemas.

Foi em 2017 que fez a primeira campanha de campo, financiada pela Universidade de Venda: esteve em reservas privadas, fazendas de gado e caça e comunidades tribais, na região de KwaZulu-Natal. Lá montou 200 “armadilhas fotográficas”, câmaras automáticas com sensor de movimento e calor que tiram fotografias aos animais quando eles passam. É a partir dessas imagens que identifica as espécies e, com base na hora e no local de registo, avalia a composição da comunidade de carnívoros e como a mesma varia entre diferentes paisagens “em função do nível de perturbação humana e da presença ou ausência de grandes predadores”, explica.

Agora, com a bolsa da National Geographic Society, o estudante vai poder repor algum material danificado e expandir as paisagens exploradas, incluindo no seu estudo uma área protegida gerida pelo Estado. O objectivo final é tentar contribuir para o “desenho de planos de conservação mais eficazes para estes predadores”, de forma a melhor fazer coexistir os valores naturais com a influência humana.

Búzio-d'obô: uma vítima da monocultura e da caça

Quem conversa com Martina Panisi não adivinha que a jovem italiana está em Portugal há apenas três anos. Escolheu o país para fazer Erasmus e acabou por se apaixonar. Por isso, depois da licenciatura em biologia que fez em Itália, apostou no mestrado em biologia da conservação na FCUL. Foi aí que teve início a aventura em São Tomé e Príncipe, quando decidiu estudar o rápido declínio da distribuição do búzio-d'obô nos últimos anos, provocado pela destruição do habitat, recolha intensiva pela população e introdução de outra espécie de búzios (possivelmente invasora).

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Martina Panisi

Esteve lá durante dois meses — na floresta, para estudar os factores ambientais que ameaçam a espécie, e nas comunidades, para entrevistar os locais. Foi a partir dessas conversas que Martina Panisi se apercebeu que aquela espécie de búzio era muito valorizada pela população, por ser utilizada para fins alimentares e medicinais. Isto antes do seu declínio, explicou ao P3. “Antes, a distribuição [dos búzios] era mais ampla, mas a floresta também o era — parte da floresta foi destruída por causa da monocultura de palmeiras, para se obter óleo de palma. Depois, a recolha muito intensiva fez com que o número de búzios começasse a diminuir e outro búzio do continente, que foi introduzido, começou a avançar pela floresta nativa. Como há um mecanismo provável de competição entre os dois, o búzio nativo retraiu-se e agora só se encontra nas partes mais inacessíveis, como as montanhas da floresta nativa.”

Com o apoio financeiro da bolsa da National Geographic Society (o financiamento principal do projecto), Martina Panisi vai poder voltar às ilhas em Setembro e lá ficar três meses. Desta vez, com um novo objectivo: a sensibilização ambiental. Ela e a sua equipa vão passar por 15 diferentes comunidades e cinco escolas primárias para destacar a importância da conservação da biodiversidade através da história do búzio-d'obô. E os locais por onde vão passar não foram escolhidos à toa: “As comunidades que vamos visitar são aquelas que estão à volta do parque natural, a área protegida da ilha. São os que estão mais perto da floresta nativa e são os que têm mais impacto, porque vão lá caçar, recolher búzios, cortar árvores.”

Mas o trabalho de sensibilização e divulgação não se vai cingir a São Tomé e Príncipe. Ela e Vasco Pissarra, também estudante da FCUL, querem dar a oportunidade a todos de conhecer a história e a situação actual do búzio-d'obô. Por isso, em breve, o projecto vai poder ser acompanhado pelo Facebook e pelo Instagram.

O canto das cigarras isoladas, em Marrocos

Tal como Martina Panisi, foi em tenra idade que Gonçalo Costa se apaixonou pelo mundo dos insectos, uma paixão pouco habitual que o acompanhou na licenciatura em biologia e no mestrado em biologia evolutiva e do desenvolvimento na FCUL. Dedicou a tese de mestrado às cigarras marroquinas e lá descreveu duas novas espécies recentemente descobertas. A tese ficou feita, mas a curiosidade continuou. Por isso, na última semana, com o financiamento da National Geographic Society, Gonçalo Costa partiu para Marrocos para o seu primeiro trabalho de campo sobre o tema: mapear populações de cigarras que já existem em laboratório e novas populações e ver quais são as que estão ameaçadas.

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Gonçalo Costa

“Cada espécie de cigarra tem um canto específico e existe uma diversidade enorme. São os machos que cantam para atrair a atenção das fêmeas e assim que estas estão convencidas aproximam-se do macho para acasalar. Vivem, no máximo, duas semanas”, explicou ao P3 o biólogo de 24 anos. Em Marrocos, os tempos são especialmente difíceis para a espécie: “Uma das indicações que temos acerca destas cigarras é que elas não se mexem muito. A partir do momento em que emergem – porque passam três ou quatro anos debaixo de terra, ainda não sabemos ao certo – não se dispersam. Ou seja, acabam por formar populações muito localizadas.” E isso é um problema, refere, “tendo em conta ameaças como as alterações climáticas, a desertificação, os factores antropogénicos e o sobrepastoreio pelo gado caprino”.

O plano de Gonçalo Costa e restante equipa consiste em visitar três grandes regiões — o Alto Atlas, o Médio Atlas e o Anti-Atlas — para recolherem cantos de cigarras em habitats naturais e degradados, observarem a presença ou ausência de cigarras nesses locais e estudarem a diversidade. E estão à espera de encontrar espécies novas, revela. “Há indicação de que existe uma grande quantidade de cigarras que ainda não estão contempladas.” Mas o grande objectivo é dar a conhecer às pessoas as cigarras de Marrocos (possivelmente através de um documentário), mostrar que elas estão ameaçadas e levar a que se tomem as medidas necessárias para a sua protecção.

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