“Amigo, encontra a tua família e os teus amigos e fica perto deles”

A tarde foi passada a transferir a maioria dos 629 resgatados para navios italianos, antes de começar a viagem para Valência. Paris acusa Roma de “irresponsabilidade”, Madrid de “violação da lei”, Budapeste celebra a “vitória” italiana.

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Enquanto nas capitais da UE se trocavam acusações de “cinismo” ou “hipocrisia”, a bordo do MS Aquarius não houve descanso. A noite, a terceira para a maioria dos 629 resgatados no Mediterrâneo, foi mais agitada do que as anteriores. Com o amanhecer surgiram perguntas, repetidas (“Já sabemos quando saímos daqui?”) e novas: “Há duches?”. Não há. Divididos agora em três navios, um da Guarda Costeira e outro da Marinha italianas, mais o Aquarius, onde permanecem 106 – 51 mulheres 45 homens e dez crianças –, vão todos a caminho de Valência, uma viagem de três a quatro dias.

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Enquanto nas capitais da UE se trocavam acusações de “cinismo” ou “hipocrisia”, a bordo do MS Aquarius não houve descanso. A noite, a terceira para a maioria dos 629 resgatados no Mediterrâneo, foi mais agitada do que as anteriores. Com o amanhecer surgiram perguntas, repetidas (“Já sabemos quando saímos daqui?”) e novas: “Há duches?”. Não há. Divididos agora em três navios, um da Guarda Costeira e outro da Marinha italianas, mais o Aquarius, onde permanecem 106 – 51 mulheres 45 homens e dez crianças –, vão todos a caminho de Valência, uma viagem de três a quatro dias.

Resgatadas durante o fim-de-semana, a maioria (400) pela Guarda Costeira italiana que as entregou à ONG franco-alemã SOS Méditerranée, que gere o navio humanitário, para agora receber de volta muitas das mesmas pessoas, ninguém sabia ao certo o que se ia passar desde domingo à tarde. Foi nessa altura que o ministro do Interior, Matteo Salvini, deu ordens para encerrar todos os portos de Itália à embarcação. Ficaram onde estavam, entre Malta e Sicília.

Na segunda-feira, o novo primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, ofereceu-se para receber os 629 requerentes de asilo em Valência, mas os responsáveis recusaram a viagem de quase 1500 km com condições meteorológicas adversas e tanta gente a bordo, incluindo doentes, a esmagadora maioria a dormir ao relento no navio sobrelotado.

Continua a não ser desejável, mas pelo menos é possível. A maioria das pessoas segue a bordo de outros navios, onde a UNICEF e Ordem de Malta tratarão dos refugiados e imigrantes, um grupo de muitas nacionalidades onde se incluem 123 menores não acompanhados, onze bebés e sete grávidas, e há 21 pessoas com queimaduras graves de combustível, gente a precisar de cirurgias ortopédicas ou ainda a recuperar de quase se terem afogado. Como sempre no Aquarius há uma equipa dos Médicos Sem Fronteiras (MSF): um médico, três enfermeiros e uma parteira.

Durante as primeiras horas da manhã, a página de Twitter dos MSF esteve bastante activa. “Estamos à espera de um plano seguro para os 629 resgatados no Mediterrâneo. A melhor opção é desembarcá-los no porto mais próximo”, escrevia o médico a bordo. Chegada a confirmação de que teriam mesmo de seguir para Espanha, divididos entre navios e com o apoio da Marinha italiana: “Motivos políticos forçam estas pessoas, exaustas, a suportar uma viagem ainda mais longa”.

Tantas horas no mar

Durante nove horas, na noite de sábado para domingo, o navio salvou 229 pessoas que viajavam em duas embarcações vindas da Líbia, uma delas já a afundar-se. Kevin fala de “um filme”: “Não pensava que iria sobreviver”, conta a Naiara Gortázar, uma das jornalistas a bordo. “Senhor, fique sentado, fique calmo. Vamos salvar todos, um a um. Ajude-nos a ajudar”, ouviu Kevin de Max Avis, vice-coordenador dos socorros a bordo.

O estabilizador tinha-se partido e o barco podia afundar-se. “As pessoas começaram a mexer-se, todos queriam um colete salva-vidas e assim aconteceu o acidente”, conta Kevin. A embarcação cedeu e 40 pessoas tiveram de ser retiradas das águas escuras, entre gritos de terror, alguns já inanimados. Isto enquanto o Aquarius tentava responder a um segundo pedido de auxílio (era o único navio de ONG na zona).

“Passámos 12 horas no mar, pensávamos que não seríamos resgatados. Deus salvou-nos. Não tinha salva-vidas. Então tiraste-me da água. Por isso estou aqui”, diz outros dos resgatados, citado por um dos membros da equipa dos MSF.

Depois, o tempo começou a passar. No domingo à noite, foram os resgatados a cantar. Na noite seguinte, já eram os membros das ONG que os tentavam animar com “música de marcha”, enquanto algumas mulheres rezavam. A comida que já acabara chegou de Malta e voltou a acabar. De manhã, vieram mantimentos de Itália, fruta, croissants e algum pão. E as perguntas, como a questão dos duches que não existem num navio preparado para acolher até 550 pessoas por pouco tempo.  

Pela hora de almoço, os membros da SOS Méditerranée pediram a todos que se juntassem no convés. Uns em cima dos outros, lá couberam e ficaram a saber que iriam ser recebidos em Espanha, para onde viajariam naquele e noutros barcos. “No princípio, olhavam uns para outros, tentando perceber se isso era bom ou não. Depois puderam perguntas tudo mas nem sempre havia respostas”, descreveu Naiara Gortázar, num texto publicado no jornal El País.

Futebol e deportações

“A inquietação foi desaparecendo e via-se como o destino era recebido de forma muito distinta em função das nacionalidades. Os subsarianos estão entusiasmados, muito contentes. Para lá do futebol não sabem muito sobre Espanha, mas acreditam que terão mais oportunidades para estudar do que nos seus países”, continuou a jornalista. Já os “marroquinos e os argelinos estão profundamente preocupados, temem que os deportem”, como sabem já ter acontecido com muitas pessoas dos seus países.

Finalmente, depois de almoço, começaram as operações de transferência para os outros navios. Aos maridos pedia-se para se reunirem com as mulheres – “só os casados com filhos”, repetiu-se muitas vezes para não arriscar separar famílias. “Amigo, encontra a tua família e os teus amigos e fica perto deles”, insistia Wademer Mischutin, membro da equipa de resgate da ONG franco-alemã, enquanto alguns procuravam canetas para apontar números de telefone e, quem sabe, reencontrar-se um dia em Espanha.

Em Valência começa a pôr-se em marcha a operação para os acolher. Mais de 200 cidades espanholas ofereceram-se para receber alguns destas pessoas e nem todas ficarão no local de chegada. A prioridade será dada aos menores desacompanhados e a quem precise de cuidados médicos e será a Cruz Vermelha a coordenar o acolhimento imediato.

Um dia depois de terem chovido agradecimentos a Sánchez por ter resolvido esta crise, enquanto Salvini, líder de um partido xenófobo e anti-imigração considerava a decisão espanhola “uma vitória” da sua política de “elevar a voz”, o verniz estalou finalmente.

Recusar lições

A nova ministra da Defesa espanhola, Margarita Robles, afirmou que Roma pode ter de enfrentar “responsabilidade penal” por ter violado a lei internacional ao recusar receber o navio. “Há um nível de cinismo e irresponsabilidade no comportamento do Governo italiano face a esta situação humanitária dramática”, afirmou aos jornalistas o porta-voz da presidência francesa, citando as palavras de Emmanuel Macron ao seu gabinete. Gabriel Attal, porta-voz do partido do Presidente francês, foi um pouco mais longe: “A posição italiana faz-me vomitar”.

“Tem piada, vindo deles”, reagiu o vice-presidente Luigi Di Maio, parceiro de coligação de Salvini e líder do Movimento 5 Estrelas. “As declarações sobre o Aquarius vindas de França são surpreendentes e denunciam uma grave falta de informação sobre o que realmente se está a passar. Itália não pode aceitar lições hipócritas de países que em termos de imigração sempre preferiram olhar para o outro lado”, respondeu, em comunicado, o primeiro-ministro italiano, Giuseppe Conte.

Já Salvini respondeu a todos de uma vez e numa só publicação no Twitter. “Espanha que quer denunciar, França diz que somos ‘repugnantes’. Quero trabalhar serenamente com todos, mas com um princípio: #ositalianosprimeiro”, escreveu, recuperando o slogan da campanha para as eleições legislativas de Março.

O apoio a Roma chegou de um país governado por um dos aliados da Liga, a Hungria. “Era tão deprimente ouvir durante anos que era impossível proteger as nossas fronteiras marítimas”, disse aos jornalistas o Presidente Viktor Órban. “A força de vontade regressou a Itália”. Posições aparentemente inconciliáveis a poucos dias da cimeira europeia de 28 e 29 de Junho, quando é esperado um acordo para uma política comum de imigração e refugiados.

Entretanto, com o Aquarius ocupado na viagem até Espanha nos próximos dias, permanece apenas um navio de resgate gerido por uma ONG, a Sea Watch, na zona onde as embarcações vindas da Líbia costumam naufragar. Esta terça-feira, um navio da Marinha dos Estados Unidos localizou 12 cadáveres e resgatou 41 pessoas que tentavam a chegar a Itália. A ONG lamentou: “É isto que acontece se não há pessoal de resgate suficiente e não existe uma passagem segura”.