Há fado nas canções de Mariza

Na senda de uma Maria da Fé, Mariza consolida-se no seu novo disco homónimo como intérprete de um repertório de perfil ligeiro ou mesmo pop — nem sempre com fogo lá dentro.

Fotogaleria

Em 1965, numa altura em que cantava na Tipóia, Maria da Fé foi abordada pelo divulgador de jazz José Duarte para gravar um EP que havia de tornar-se um marco na música popular portuguesa. Com o próprio na bateria, José Fontes Rocha na guitarra portuguesa e Carlos Menezes na guitarra eléctrica, a fadista daria voz a três temas do reportório do fado tradicional nesse disco que, de forma bastante explícita quanto à sua intenção artística, seria baptizado Pop Fado.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Em 1965, numa altura em que cantava na Tipóia, Maria da Fé foi abordada pelo divulgador de jazz José Duarte para gravar um EP que havia de tornar-se um marco na música popular portuguesa. Com o próprio na bateria, José Fontes Rocha na guitarra portuguesa e Carlos Menezes na guitarra eléctrica, a fadista daria voz a três temas do reportório do fado tradicional nesse disco que, de forma bastante explícita quanto à sua intenção artística, seria baptizado Pop Fado.

Muitos anos antes de Ana Moura e Mariza arriscarem acrescentar bateria, percussões ou guitarra eléctrica aos seus discos já Maria da Fé se aventurava — debaixo de fogo dos sectores mais conservadores do meio fadista — por linguagens que dotavam o fado de um vocabulário mais universal. Claro que tudo aquilo que equivalia a heresia nessa altura em que Maria da Fé ou Amália estilhaçavam as regras mais apertadas do género não encontraria de todo a mesma resistência passadas quatro décadas — apesar de a matriz pop seguida por Ana Moura e Mariza ainda causar urticária a umas quantas almas que defendem o fado como música intocável e imutável.

Não escapa, por isso, o simbolismo evidente no dueto que Mariza escolhe para o seu álbum homónimo, partilhando Fado errado com Maria da Fé (sua madrinha profissional, ao oferecer-lhe o primeiro contrato na casa de fados Sr. Vinho). A grande diferença é que Maria da Fé não se deixou definir por esse atrevimento; enquanto nos casos das duas fadistas mais novas a sua aproximação a essa linguagem tornou-se uma forma de afirmar um estilo pessoal e de assumir que a sua música, com inegáveis fundações no fado, deixou de se submeter à tradição como forma de vida.

Mariza é o terceiro álbum que a cantora portuguesa grava com o produtor espanhol Javier Limón, relação com dez anos que teve um único momento de interrupção para o registo de Fado Tradicional (2010). Foi Limón que ajudou a desenvolver e estabelecer esta sua natureza de cantora supra-fado, desde que iniciaram a colaboração em Terra (2008). Mariza é uma continuação lógica de Mundo (2015), um disco irmão na consolidação do seu lugar de intérprete de canções de perfil ligeiro ou pop, em que o fado é frequentemente uma sombra ou pouco mais do que uma insinuação.

Nada de errado nisso. É uma opção como qualquer outra. Acontece que, nesse domínio mais ligeiro que Mariza assume sem hesitações, e que cumpre com reconhecido esmero, faltam temas memoráveis e que rompam com uma sensação de confortável normalidade. Basta atentar no arranque do álbum, com Quem me dera, Amor perfeito, Oração ou Sou (rochedo) para perceber que esta navegação entre pop, música brasileira e fado se cumpre sem acidentes mas também sem surpresas.

Algo que, felizmente, é contrariado pela sequência seguinte: É mentira, ironicamente, faz-lhe assomar muito mais verdade à voz, embalada por um mais criativo fundo de fragor tradicional; Semente viva, com violoncelo de Jacques Morelenbaum, ganha outra espessura; e Por tanto te amar, em tom de balada, permite encontrar Mariza num dos seus mais sóbrios registos de sempre, cantando num sopro de voz que procura uma real intimidade com o ouvinte.

A caminho do final do disco, um outro momento de excepção em Oi minha mãe (de Custídio Castelo), em que Mariza envelhece uns quantos anos — o que só lhe fica bem —, e deixa baixar em si um fado que é também morna e samba, atrevendo-se a romper com o terreno mais seguro e redondo que Javier Limón imprime à maior parte do disco. Talvez a avisar-nos de que este é, em definitivo, o seu novo lugar, Mariza canta nesse tema: “Sou da terra das canções”. Ou seja, desse espaço alargado e sem especial cedência às tradições. Mas era bom que, à semelhança do que acontece neste momento, embarcasse com maior regularidade em canções que trazem algum fogo lá dentro. Como continuam a trazer na voz fulgurante de Maria da Fé.