A independência de Ana Moura

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DANIEL ROCHA

Desfado é o disco em que larga o fado, canta Joni Mitchell e faz pontes para a canção de charme. É um grito do Ipiranga. Em nove anos passou de moça que cantava ao lado de Jorge Fernando para estrela que vai a festas organizadas por Prince. Como chegou a este ponto?

Há dois anos Ana Moura teve uma vaga ideia para um disco: reunir canções em torno dve um "conceito definidor", que se baseasse "na loucura e nos sonhos". A ideia acabou por não vingar por completo: ainda sugeriu "o mote inicial" a Pedro da Silva Martins, o compositor dos Deolinda, que lhe ofereceu dois temas que "têm um pouco de loucura", sendo que, segundo a fadista, o mesmo pode ser dito da letra de O espelho de Alice, escrita por Nuno Miguel Guedes. "Mas isso ficou por terra porque me foram oferecendo temas que nada tinham a ver com o mote inicial - temas que adorei". Pelo que quando abordou outros compositores à procura de mais canções deu-lhes "liberdade total".

"Queria ver como é que me viam se escrevessem para mim", diz, acrescentando, com visível prazer, que "cada canção conta uma história diferente", como se as diferenças fossem o reconhecimento das diferentes facetas da fadista.

A loucura e os sonhos ficaram então de parte, dando lugar a uma outra vontade, que ruminava em fundo: musicalmente, queria fazer "um disco menos fadista" porque os seus últimos anos têm "sido assim", de "colaboração com artistas muito diferentes. Queria que este disco espelhasse os convites [para colaborações musicais] que recebi, as amizades que fiz". Referia-se, entre outras, à sua participação no disco comemorativos dos 70 anos de Caetano Veloso ou às colaborações com Tim Rise ou Prince.

A opção por menos fado e mais variedade em Desfado, disco que apresentará no Coliseu de Lisboa a 25 de Janeiro do ano que vem e no dia seguinte no do Porto, é clara na escolha dos compositores: há António Zambujo (semi-fadista alentejano com costela brasileira), Márcia (a cantautora de voz delicada), Miguel Araújo Jorge (o rapaz dos Azeitonas), gente mais velha (como Pedro Abrunhosa) ou gente mesmo muito mais velha (Tó-Zé Brito). Dos dezassete temas, só quatro são claramente fados, pese embora até esses temas tenham elementos estranhos ao género, como a bateria de escovas. "Queria que o disco tivesse fado tradicional, mas sabia que ia ser um disco diferente", diz Ana.

Feminino/Masculino

E Desfado é diferente: a guitarra portuguesa está presente em todos os temas, mas não guia, surge a espaços, com uma função de ornamento. A percussão é omnipresente, o piano abunda, há cordas e a viola acústica é a base das canções. Ela canta três vezes em inglês e, não por acaso, o produtor é um americano, Larry Klein, não por acaso ex-marido de Joni Mitchell - que ela canta, numa versão de A case of you.

O produtor e alguma instrumentação - como a guitarra eléctrica e os órgãos em Thank you - não são as únicas presenças estrangeiras: tirando a guitarra portuguesa e a viola, Desfado foi "gravado com músicos americanos", sendo que alguns são estrelas (como Herbie Hancock) e "outros trabalharam com a Lhasa", nota Ana - e nota o ouvinte, porque certas soluções harmónicas ecoam a mexicana. Tanta presença estrangeira pode levar-nos a pensar que Desfado foi feito a pensar no mercado americano e que canções como Thank you ou Dream of fire, a última das quais com melodia dela e muito próxima da soul, abrem a porta a um futuro na canção de charme.

Ana tem a resposta na ponta da língua e rebate qualquer conversa sobre mercados com um argumento eficaz: o mercado. "Eu já tenho o meu mercado americano", diz, com subtil ênfase no "meu". "Já lá vou há alguns anos. E canto sempre o No expectations e o Brown sugar [dos Rolling Stones] e as pessoas gostam imenso".

Há mais dados: "Nos EUA já estive em 6º lugar do top da Billboard, com o Para Além da Saudade [2007]", lembra, antes de acrescentar que a sua próxima digressão nos EUA "vai durar dois meses".

O ponto é este: não fez um disco com menos fado para chegar com mais facilidade às pessoas que não cresceram a ouvir fado (os estrangeiros). A razão que a levou a experimentar outros caminhos é mais profunda e pessoal.

"Teve a ver com uma necessidade que eu tinha de me sentir livre e independente", diz, antes de abrir o jogo: "Trabalhei sempre com as mesmas pessoas e isso tornou-se quase dependente".

Pode parecer estranho que uma mulher tão talentosa, bonita e bem sucedida se sinta dependente de outrém, mas não é assim tão incomum, muito menos no meio do fado - é, até, a tradição.

"As mulheres da minha geração viveram um ciclo muito machista", dizia-nos Carlos do Carmo ao telefone. O que há-de curioso nesta declaração é que em momento algum lhe tínhamos falado da vontade de independência de Ana Moura. Ligámos-lhe para ele nos ajudar a contextualizar a evolução do fado feminino - para tentar perceber como era no tempo dele e quais as diferenças para o tempo de hoje, em que várias fadistas atingem o estatuto internacional de divas, coisa que só aconteceu com Amália.

"A Hermínia, em palco, falava sempre do seu guerreiro, que era o marido", continua Carlos do Carmo. "A primeira mulher que saiu desse esquema de dependência foi a Amália. E trabalhou muito para isso".

Sair do esquema de dependência masculino significava, no meio do fado, pôr os discos à frente das parcerias, isto é: cortar com as pessoas com que se teve sucesso se dali não pudesse vir mais sucesso, se isso diminuísse o grau de controlo que se tem sobre a obra.

"Nos grandes artistas nunca há parcerias permanentes", diz-nos Rui Vieira Nery. "Quando um intérprete está muito ligado a um criador, não se autonomiza", acrescenta e de novo há aqui uma coincidência: no momento em que disse isto, Nery ainda não nos tinha ouvido ler a seguinte citação de Ana Moura: "Sempre trabalhei com o Jorge Fernando e confiei sempre nos arranjos dele. Mas queria que este disco tivesse a minha marca. Por isso é que queria que este disco fosse totalmente diferente". A seguir diz: "Não tive menos controlo [por fazer um disco fora do fado]. Foi talvez o disco em que tive mais controlo. Dei mais opiniões que nunca".

Posto de forma clara: Ana "queria que a independência fosse o tema do disco". "Queria sentir que tinha uma identidade própria e que isso não dependia dos compositores que trabalham comigo", diz, e se levarmos cada palavra dela à letra, o assunto torna-se sério e ecoa as palavras de Carlos do Carmo e de Nery.

Foi essa a luta que travou ao longo dos anos, diz agora: "Sempre me disseram como é que uma artista se devia apresentar. E eu nunca soube lidar com isso, nunca me soube vender ou vender o produto que queriam que eu vendesse".

E isto, esta vontade de fazer à sua maneira, justifica todo o Desfado, inclusive o cantar em inglês: "As minhas grandes referências são da soul: Nina Simone, Aretha Franklin, Otis Redding". Quando lhe perguntamos se era capaz de fazer um disco soul a resposta é tão ambígua quanto clara: "Já não digo nada".

A autonomia justifica também a escolha dos compositores: "A maior parte deles são meus amigos, gente que eu admiro e com imenso talento". Ana diz que já devia ter feito isto - chamar gente de outros mundos - há mais tempos: "Os brasileiros juntam-se muito mais que nós. Cá faz-se pouco disto, há pouca vontade de partilhar". E, acrescenta, era isso que ela queria: "Explorar a ideia de partilha".

De moça a estrela

Independência e partilha esclarecidas, há um ponto a elucidar: quando e como é que Ana Moura chegou a este ponto, em que músicos como Herbie Hancock entram nos seus discos, em que ela sente a liberdade de fazer o que quiser e tem digressões de dois meses preparadas? Não é uma pergunta descabida: o seu primeiro disco, Guarda-me a Vida na Mão, data de 2003. Já então ela flirtava com outras músicas - o cajon e a guitarra de flamenco marcavam presença - mas o disco estava longe da ambição deste Desfado: nove anos é muito pouco para o estatuto que Ana Moura alcançou.

Carlos do Carmo realça esse crescimento ao lembrar uma história que se passou com ele, já tinha o primeiro disco de Ana Moura saído em Portugal: estava no Canadá e um amigo de lá disse-lhe: "Esteve aqui a tocar o Jorge Fernando, vinha acompanhado de uma moça com muito boa voz", que era Ana Moura.

Em nove anos ela passou de moça que cantava ao lado de Jorge Fernando para estrela internacional que vai a festas privadas organizadas por Prince: "Ele adora música e está sempre a fazer jams e a convidar-me. Faz umas festas de música muito engraçadas - a última vez foi em Nova Iorque, com a Björk, num concerto privado".

Quando Ana começou já havia Mísia, Cristina Branco, Mafalda Arnauth, Kátia Guerreiro e outras que nunca tiveram tanta exposição, embora nas casas de fado brilhassem, como Ana Sofia Varela. Ana partiu, como se costuma dizer, do fundo.

"Não foi só ela, se pensar bem", diz Rui Vieira Nery. "Também ninguém apostava na Mariza".

Se perguntarem a um estrangeiro a quem corresponde no fado a disputa Messi vs Ronaldo, isto é, se perguntarem quem é o melhor fadista, a resposta não será Carlos do Carmo ou Camané. A resposta será Mariza ou Ana Moura.

Nas suas viagens Carlos do Carmo chegou a uma conclusão: "Ainda hoje lá fora as pessoas lá fora acham bizarro ver um fadista. Só conhecem a Amália e desde o tempo dela que associam fado a mulheres".

"As oportunidades de carreira são maiores para as fadistas que para os fadistas", acrescenta Rui Vieira Nery, e, em parte, isso pode explicar porque é que por cada fadista-homem que ganha espaço mediático surgem três ou quatro mulheres: elas têm mais mercado onde o mercado existe: lá fora. Isso não explica, contudo, porque é que Ana Moura chegou a este patamar - o do disco de cross-over, um tipo de disco que o ouvinte comum considera um exotismo moderno. Mas olhando para a história talvez não seja bem assim.

"Eu canto Brell e Ferré desde miúdo e antes já a Amália o fazia", diz Carlos do Carmo. Isto é: os discos em que os fadistas fogem do fado podem ser a excepção, mas existem desde sempre - ou desde que os artistas começaram a cantar lá fora, pelo menos.

Mas o fado teve uma história convulsa. Esteve em latência desde 1974 até quase à viragem do século e quando se voltou a ouvir fado era cedo demais para experiências - o que explica que as primeiras aventuras de Mísia, no início da década de 1990, tenham sido recebidas quase como escândalo. Pouco a pouco, misturar géneros e procurar vários públicos tornou-se condição quase obrigatória para não se ser visto(a) como um(a) purista.

Há, curiosamente, mais mulheres que homens a fazê-lo, o que pode ter uma explicação: "Elas estão mais expostas ao mercado internacional, ao público internacional e por isso é natural que façam mais cross-over", diz Vieira Nery.

Lançar pontes com outras músicas é o resultado de lidar com "um mercado de público composto por não-iniciados ao fado", continua, no sentido em que um público tradicionalista exigiria tradição e não inovação. Mas é isso - inovação - que é pedido às fadistas: elas têm de "saber usar as expectativas do público para criar um mercado individual: não dar só o que o público quer, o que seria aborrecido, mas surpreender e renovar-se".

A ideia de Nery rima com as próprias palavras de Ana Moura acerca de Desfado: "Este é um disco em que estão sempre a acontecer coisas. Gosto que haja uma canção inglês e depois um fado tradicional, gosto de estar sempre a ser surpreendida".

A dimensão do estatuto internacional de Ana é reflectida por uma frase solta que ela larga enquanto estamos na típica conversa de circunstância antes de se iniciar a entrevista. Ela estava a dizer que a maior parte do seu tempo é passado lá fora, e depois conclui: "Ao ponto de ainda não sentir a minha casa como minha. Não tem história. Não reflecte aquilo que eu sou".

Reflectir o que Ana é era o propósito de Desfado e, perante o sucesso que ela tem tido, não podemos senão perguntar: o que é que ela tem reflectido até agora, pelo menos fora de Portugal, onde passa a maior parte do tempo? Isto é: o que é que ela representa? O que no fundo é o mesmo que perguntar: qual a chave do seu meteórico sucesso?

"Há uma ideia de pecado original e de triste sina que continua presente no ideário do fado e que a Ana assume muito bem", diz Vieira Nery. "Tem uma dimensão de sensualidade que está ligada a uma sugestão de culpa. Isso também estava presente na Amália e está, de forma menos trágica, na Ana".

Carlos do Carmo também assinala a importância da sensualidade na construção icónica de uma fadista: "A Amália, aos 40 anos, era uma mulher de fazer parar o trânsito." Não se trata de pôr a beleza acima do talento: é que o talento, quando conjugado com a beleza, torna-se fascinante. Quando a isto se junta o seu tom, segundo a definição de Carlos do Carmo, "baixo, aveludado, que aliás a torna a menos Amaliana de todas", temos a imagem que seduz não só cá como lá fora: a de uma mulher do século XXI, que assume a sua fragilidade mas luta pela sua independência. Uma imagem única e distinguível do lado mais sofisticado de uma Cristina Branco ou do lado mais popular de uma Mariza.

Isto está presente em inúmeras declarações da fadista. Por exemplo, quando diz que neste disco "não tinha direcção de canto e isso assustava[-a] imenso. Mas comecei a estilar e comecei a descobrir que se calhar era capaz de fazer mais coisas sozinha do que pensava". Vez após vez há esta ideia: a de alguém capaz de tomar a vida nas mãos.Para Ana Moura, é isso que este disco significa - um disco que aliás ela considera comercialmente arriscado porque estava habituada a ser "incluída no circuito da world music, onde se espera o fado mais puro". "Há pessoas que não se vão identificar com isto", diz.

Mas ela não se importa com o que as pessoas digam: "Faça o que fizer, sou do fado, sou fadista", diz. Está a citar uma canção sua. Do primeiro álbum.

Ver crítica de disco págs. 30 e segs.

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