“O atraso em que nos encontramos na História da escravatura impressiona”

Diogo Ramada Curto, historiador e professor universitário, quer um novo paradigma capaz de orientar a investigação — e a reflexão — sobre os Descobrimentos e o império colonial português. E responsabiliza as universidades pelo atraso historiográfico no que toca à escravatura e pela sua permeabilidade às guerras culturais e políticas.

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Se tivesse de resumir a sua posição face à polémica instalada em torno da proposta da Câmara Municipal de Lisboa para a criação de um Museu da Descoberta, o historiador Diogo Ramada Curto diria que “basta de comemorações e anticomemorações, o importante é que floresçam modos de fazer História mais analíticos, críticos e reflexivos”.

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Se tivesse de resumir a sua posição face à polémica instalada em torno da proposta da Câmara Municipal de Lisboa para a criação de um Museu da Descoberta, o historiador Diogo Ramada Curto diria que “basta de comemorações e anticomemorações, o importante é que floresçam modos de fazer História mais analíticos, críticos e reflexivos”.

Rejeitando aderir à discussão nos moldes em que ela tem sido feita nas páginas dos jornais, uma discussão baseada muitas vezes em posições extremadas assentes numa série de argumentos já gastos, este investigador, que gostaria de retomar a cadeira de História da Escravatura que criou e leccionou na Universidade Nova de Lisboa, reconhece que há uma guerra cultural e política que empobreceu o debate e invadiu a academia. Os historiadores universitários, diz, “são também atraídos pelo desejo de participar em esferas mais alargadas de opinião e, para isso, rendem-se aos termos dessa mesma guerra”, quando o que devem fazer é produzir conhecimento capaz de pôr as pessoas a pensar de outra maneira.

Portugal precisa de um novo museu sobre os Descobrimentos?
Não. Os museus existentes, com as competências que já têm, é que precisam de mais meios. Em lugar de um museu, sugiro um programa que articule várias instituições capazes de pensar a nossa história da expansão e o nosso legado imperial e colonial. Só em Lisboa, haveria que contar com o Museu [Nacional] de Arte Antiga, o de [Museu Nacional de] Etnologia, o Centro Cultural de Belém ou o Padrão dos Descobrimentos. Uma vez que estas instituições têm à sua frente directores e conservadores extremamente competentes, os financiamentos deveriam ser canalizados para elas. 

Sente que em Portugal, mesmo entre alguns académicos e políticos, o discurso sobre os Descobrimentos ainda é muito baseado na retórica do Estado Novo, que vendia a Expansão como um facto heróico, omitindo que foi também um confronto brutal?
Parto do presente. Há uma guerra cultural e política entre, por um lado, os que pretendem celebrar os Descobrimentos e a Expansão como um encontro excepcional de culturas, de desenvolvimento tecnológico e científico e, ainda, de formas de integração; e, por outro lado, os que insistem na violência, na exploração do trabalho, no esclavagismo e nos modos de discriminação racial. Inútil negá-lo: essa guerra está instalada na academia, nas instituições políticas e nos mais diferentes círculos de opinião. Já houve quem tentasse apelar ao consenso entre essas duas posições extremadas, situando-se a meio, dando uma cravo e outra na ferradura. E houve também quem dissesse que quem não era capaz de celebrar não era patriota e que se devia ir embora. Uma afirmação muito grave, quando se sabe que os dois maiores vultos da historiografia portuguesa da Expansão, [Jaime] Cortesão e [Vitorino] Magalhães Godinho, tiveram de sair de Portugal ou exilar-se. Mas o importante seria mudar de quadro ou de paradigma, ultrapassando tanto as posições extremadas como as que se situam a meio, muitas vezes de modo oportunista. 

E em que é que consistiria esse novo paradigma?
Depende, antes de mais, da nossa capacidade de nos distanciarmos do quadro comemorativo ou anticomemorativo em que estamos enredados. Traçar-lhe a história, identificar a sua pesada associação a lutas políticas. Depois, será necessário enquadrar o chamado “caso português” em processos mais vastos e estabelecer um diálogo com outras historiografias interessadas na escravatura, desenvolvendo trabalhos de natureza monográfica ou comparativa, com renovada base arquivística. É um trabalho moroso, que não é necessariamente espectacular, que está a ser feito aos poucos.

Portugal continua incapaz de reconhecer o seu passado esclavagista?
É recorrente a guerra cultural e política em torno dos Descobrimentos, da Expansão e do império colonial português. Essa guerra acompanhou todo o Estado Novo, teve os seus momentos de intensidade exemplar na altura de comemorações oficiais, ganhou um novo alento durante as guerras coloniais e de independência e foi reinstalada, em democracia, pela conhecida Comissão dos Descobrimentos, sobretudo pelo seu primeiro comissário [Vasco Graça Moura]. Frente a essa continuidade, o facto que mudou, a partir da década de 1950, é que a História passou a ser feita por profissionais, ou seja, foi monopolizada pela universidade. E o que necessita de ser esclarecido é por que razão a universidade reproduz os termos de uma guerra cultural e política sem conseguir criar e impor um outro olhar. Os historiadores universitários acabam por funcionar como caixas de ressonância de lógicas de confronto que não foram eles a criar. São também atraídos pelo desejo de participar em esferas mais alargadas de opinião e, para isso, rendem-se aos termos dessa mesma guerra. Ora, a quase inexistência de uma História da escravatura na universidade portuguesa é bem o resultado do atraso nas formas de fazer a História em Portugal.

Por que é que está praticamente arredada dos currículos?
Ao longo do século XX, a História da escravatura ou foi utilizada para defender os regimes de trabalho vividos em contexto colonial, cumprindo um papel de sentido político de defesa do Estado colonial, ou então foi silenciada. Sobretudo durante o Estado Novo são poucos os que a ela se dedicam: José de Almada e Edmundo Correia Lopes. Mas com a entrada na década de 1960 começaram as perspectivas críticas de Magalhães Godinho, Alfredo Margarido, António Carreira  e José Capela. Hoje, os historiadores que se dedicam ao tema continuam a ser em número reduzido: Isabel Castro Henriques, Jorge Fonseca, Arlindo Caldeira, Maria Manuel Torrão. A que acrescentaria, para os séculos XIX e XX, Miguel Bandeira Jerónimo. Só agora começa  a aparecer uma nova geração de investigadores dedicados ao tema.

O Rio de Janeiro está a trabalhar num futuro Museu da Escravidão e Liberdade, nome ainda provisório, e Lisboa trabalha num Museu da Descoberta. Como interpreta esta diferença?
Pessoalmente, não estou a trabalhar em nenhum Museu da Descoberta, por isso, não concordo com os termos da sua comparação. Estou, isso sim, a retomar as minhas investigações sobre História da escravatura, iniciadas no final da década de 1990, e gostaria de voltar a ensinar a disciplina de História da Escravatura – uma cadeira de licenciatura criada por minha iniciativa na Universidade Nova de Lisboa (FCSH) que levou alguns estudantes a fazerem teses de mestrado e de doutoramento nesta mesma área. A riqueza da historiografia brasileira, nomeadamente no que respeita às investigações sobre a escravatura, impressiona, quando comparada com o atraso em que nos encontramos.   

A postura que hoje se tem perante o nome do museu é mais uma questão moral/ética ou científica?
Sem alienar responsabilidades éticas e morais, nos termos em que a coloco, a questão é, antes de mais, científica e pedagógica. Num panorama em que a História se profissionalizou, competindo às universidades promoverem a sua investigação e ensino, é nossa obrigação mudar de paradigma. Para tal, é fundamental perceber as razões da persistência de uma guerra cultural e política – que empobreceu os termos do debate e invadiu a universidade. No meu entender, são as debilidades da institucionalização académica (a começar pela sua falta de autonomia) que ditam o atraso historiográfico em que nos encontramos e, simultaneamente, a permeabilidade às guerras culturais e políticas. Se tivesse de resumir numa fórmula, diria: basta de comemorações e anticomemorações, o importante é que floresçam modos de fazer História mais analíticos, críticos e reflexivos.

Tem sido muito defendida a ideia de que os museus – apesar dos esforços recentes de instituições de referência como o Rijksmuseum – precisam de se “descolonizar”, de rever a forma como apresentam os seus conteúdos, ainda muito eurocêntrica. Concorda?
O trabalho de “descolonização” e de adopção de posições não eurocêntricas não começou no Rijksmuseum, nem tão-pouco pode ser considerado recente. O risco é grande quando julgamos que basta introduzir, entre nós, o que é considerado novo. Preferia perguntar: quais são as fontes ou mesmo as tradições que podemos ter em conta relativas a essa atitude “descolonizadora”? Um dos exemplos está na literatura. Por exemplo, os historiadores, os conservadores de museus ou o público em geral têm muito a aprender com a leitura e o estudo de obras que são hoje centrais na literatura  angolana: Castro Soromenho ou Luandino Vieira. Os historiadores que mantiverem viva a abertura às ciências sociais, a começar pela antropologia social, têm muito a aprender com as investigações da década de 1950 de Marvin Harris sobre Moçambique – exemplo importante de uma maneira “descolonizada” de compreender Moçambique.