Lugares-comuns da linguagem hodierna

A nossa criatividade é coarctada por vocábulos enleados a que acedemos sem um átomo de esforço ou imaginação. Somos todos prisioneiros involuntários da caterva de chavões que ouvimos e lemos diariamente. Prisioneiros inconscientes — o mais perigoso tipo de prisão.

Pense o leitor na fronteira (ou na linha divisória). Diga em voz alta a seguinte frase: “A fronteira entre isto e aquilo é muito…” Que ouve sempre? Pense um pouco antes de continuar. Que adjectivo lhe sai naturalmente? Não salte para o parágrafo abaixo sem ter a palavra.

Deixe-me agora adivinhar: ténue.

E o adepto?

É um adepto fervoroso.

Mas se for o defensor…

… já é acérrimo.

Uma figura importante do século XX não poderá deixar de ser… uma figura… incontornável do século XX. 

Se o período foi bom, tratou-se garantidamente de uma época áurea.

Quando há muito trânsito, o trânsito está caótico. E quando a velocidade excede largamente os limites, é vertiginosa, estonteante ou louca.

O elogio de determinada observação puxa sempre o mesmo adjectivo. Gostei da sua observação, foi uma observação muito…

… pertinente. Mas se teve uma boa “saída”, teve uma saída airosa.

A discussão é acalorada ou acesa. Os ânimos, por seu turno, quando se agitam, estão sempre exaltados.

Em se tratando de um crime que todos devemos repudiar, não haja dúvidas: foi um crime hediondo (e, provavelmente, com requintes de malvadez.) E o ódio? Ah, o ódio só poderá ser visceral.

Já o erro… foi clamoroso ou crasso. E, tal como o momento inesquecível, deixou uma marca indelével.

Os convites podem ser sugestivos ou irrecusáveis, mas as propostas, quando boas, são quase sempre irrecusáveis.

Um grande silêncio é um silêncio sepulcral ou ensurdecedor.

Na descrição da sensualidade ou beleza, tem de haver lábios carnudos, pernas bem torneadas, olhares penetrantes, pele aveludada ou macia, voz doce ou quente, cabelos sedosos, odores inebriantes e, inevitavelmente, um corpo escultural. O corpo escultural, de tão gasto, já é —  imagine-se… — motivo de enjoo. E tudo isso provoca desejos ardentes e paixões arrebatadoras ou assolapadas.

Na Natureza, há sempre árvores frondosas, prados verdejantes ou jardins luxuriantes. O mar, quando não está sereno, está quase sempre revolto. Num “dia luminoso”, o Sol só poderá estar resplandecente ou radioso. E não deve haver hoje um lugar com belas paisagens naturais que não seja publicitado como “destino paradisíaco”.

Tal como os adjectivos que aparecem quase sempre associados aos mesmos substantivos, também os advérbios que fazem companhia aos verbos são, bastas vezes, os mesmos.

Vejamos…

Se chove muito, chove torrencialmente. Se aconselhamos ou recomendamos com ênfase, aconselhamos e recomendamos vivamente. Se rejeitamos ou recusamos, rejeitamos e recusamos liminarmente. Mas se afirmamos, afirmamos categoricamente ou peremptoriamente. Quando acreditamos, acreditamos piamente; mas quando confiamos, já confiamos cegamente. Se nos enganamos, enganamo-nos redondamente; mas se falhamos, já falhamos rotundamente. E quando alguém mente, não raro, há uma rima: mente descaradamente. Sendo preciso reduzir algo, é preciso reduzi-lo drasticamente e trabalhar arduamente ou afincadamente para o conseguir. Aquilo que lamentamos… lamentamos profundamente… a ponto de, em algumas circunstâncias, chorarmos convulsivamente. Com fome e sede, comemos avidamente e bebemos sofregamente. E quando alguém pede… pede encarecidamente.

Todos os lugares-comuns têm o mesmo resultado: de tão gastos e puídos, não representam nada na imaginação de quem os lê. O ventriloquismo inconsciente de quem escreve gera a anestesia cerebral de quem lê. Quem escreve (e quem lê…) tais encadeamentos vocabulares não representa mentalmente cada palavra. Num bloco inconsútil, as palavras perdem autonomia e vitalidade. Quem escreve “silêncio sepulcral” não parou para pensar em imagens e escolheu o sepulcro. De igual modo, quem escreve “velocidade vertiginosa” não reflectiu na ideia de vertigem para associar à velocidade. Lemos “época áurea” e não vemos a cor do ouro — um automatismo diz-nos que foi uma boa fase e isso é tudo o que acontece na nossa cabeça. Acaso alguém escuta um clamor quando lê “erro clamoroso”? Não lemos as palavras isoladamente, sabemos apenas o significado das palavras juntinhas.

Repare que muitos SÓ empregam os adjectivos e advérbios acima inventariados quando colados aos mesmos substantivos ou verbos. Verificará também que muitos nem sabem o que significam “assolapar”/”solapar” (assolapada[1]), “liminar” (liminarmente), “áureo”, “pio” (piamente), ou os significados de “encarecido” (encarecidamente) ou “crasso”, ou ainda que “acérrimo” é superlativo absoluto sintético de “acre”. Experimente desagregar “liminarmente” dos verbos recusar e rejeitar e pergunte a si próprio quantas vezes emprega “liminar” ou “liminarmente” sem tais muletas. O mesmo pode ser dito de “pio” ou “piamente” — desirmanado do verbo acreditar, tal advérbio parece não existir. Como o adjectivo “aparatoso”, que só vem à tona na expressão “queda aparatosa” — ou, vá lá, “acidente aparatoso”. (E no futebolês: lance aparatoso, defesa aparatosa, falta aparatosa.)

Quanto mais vezes determinada sequência de vocábulos aparece nos textos e na oralidade, mais débil é a sua capacidade de evocação.

William Strunk e E. B. White, em The Elements of Style (Os Elementos do Estilo), alvitram que “todas as palavras digam algo”, ou seja, que todas as palavras tenham vida própria — precisamente aquilo que não acontece nas locuções estereotipadas. George Orwell, num texto fundamental sobre a arte da escrita, A Política e a Língua Inglesa, de 1946, fala de “expressões pregadas umas às outras como secções de uma capoeira prefabricada”. Cristina Borges, formadora e professora na área da escrita, contou-me que diz aos seus formandos e alunos que escrevam “Sol resplandecente” no Google, de modo que vejam como as mesmas duas palavras juntas apresentam tantas imagens diferentes — como se trata, no fundo, de um grande chapéu que impede a descrição de aterrar na realidade específica.

A nossa criatividade é coarctada por estes vocábulos enleados a que acedemos sem um átomo de esforço ou imaginação. Somos todos prisioneiros involuntários da caterva de chavões que ouvimos e lemos diariamente. Prisioneiros inconscientes — o mais perigoso tipo de prisão.

Não se esqueça, portanto, de alargar horizontes.

Reparou em algo na frase acima?

 

[1] A Infopédia regista apenas os significados de “oculto” e “disfarçado” no verbete “assolapado”.

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