Do Estado-Silo ao Estado-Plataforma

A reforma do estado-administração tem muitos ângulos de abordagem, desde logo na sua configuração orgânica e estatutária.

Numa conjuntura global marcada por grandes transições – ecológica, demográfica, digital, migrações – nenhuma área da sociedade atual ficará imune a uma transformação de grande alcance e impacto. No caso da organização “estado-administração”, para lá das alterações jurídicas que as reformas sempre implicam, acreditamos que uma grande transformação acontecerá no plano da cultura organizacional sob o lema genérico “Do Estado-Silo ao Estado-Plataforma”, a pretexto, justamente, da transformação digital que já aí está e que terá um crescimento exponencial no futuro próximo.

A reforma do estado-administração tem muitos ângulos de abordagem, desde logo na sua configuração orgânica e estatutária por via, por exemplo, de privatização, fusão e extinção de serviços, medidas de desconcentração e descentralização, mudanças de regimes da função pública e, mesmo, reformas constitucionais. Muito provavelmente, a política legislativa e regulamentar adotará um combinado de todas estas reformas. Mas não é disso que agora se trata.

Perante a Grande Transformação Digital, a tabela que se segue resume o essencial de uma mudança de cultura organizacional na estrutura e funcionamento do estado-administração que temos. Não se trata, apenas, de converter um estado-informático num estado-digital, mas de converter uma cultura organizacional em silo numa cultura organizacional em plataforma.

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Basta olhar para a tabela para descortinar grandes obstáculos e outros tantos desafios à nossa frente:

- Não há, por enquanto, pensamento estruturado nem um guião para a ação, nem sabemos mesmo se essa vontade existe no interior do estado-administração ao mais alto nível, não obstante existir, em Portugal, um ministro adjunto com competência na área da modernização administrativa.

- Há um enorme passivo acumulado, pois nos últimos 30 anos usámos com frequência serviços em regime de outsourcing que, gradualmente, desclassificaram os serviços do estado-administração e os perfis profissionais da função pública, ao mesmo tempo que o lobbying corporativo ia capturando e esvaziando as principais funções técnicas do estado.

- O negócio informático toma a dianteira, sob a forma de concursos e mercados públicos; a inovação incremental e a obsolescência programada que lhe está associada, são um excelente negócio para a grande clientela informática do estado-administração.

- Uma função pública envelhecida, com as carreiras e as remunerações congeladas há quase uma década, conservadora em matéria de avaliação e direitos adquiridos, significa, muito provavelmente, que não estão reunidas as condições para acolher uma nova cultura organizacional que põe em causa a lógica dos direitos adquiridos e a segurança das carreiras da função pública.

- Uma nova cultura organizacional baseada em “plataformas colaborativas com a multidão” põe em causa não apenas as missões clássicas do estado-administração como, também, o próprio perímetro da ação administrativa do estado e, ainda, a própria noção de “função pública” tal como elas são convencionalmente conduzidas e reproduzidas no modelo silo, para além de implicar muito mais investimento na cobertura digital do território.

- Um dos aspetos centrais da nova cultura organizacional colaborativa e participativa é o grau de literacia digital da população em geral para lidar com uma nova geração de “serviços ao público”; não me refiro à manipulação de telefones inteligentes e outros dispositivos, reporto-me a questões de cultura digital que implicam a coprodução de “serviços ao público” em vez de serviços públicos; esta transição da cultura informática para a cultura digital é plena de consequências sobre o sistema de educação em geral, mas precisa de ser assumida com rigor e frontalidade.

- Outro aspeto central da nova cultura organizacional do estado-plataforma é o “acesso livre, sob certas regras e condições”, aos dados públicos detidos pelas diversas estruturas setoriais do estado-administração; desde logo, acesso livre horizontal por parte de outros setores públicos, depois acesso livre, sob regras e condições, a outros atores e agentes, e desde que a transparência de dados públicos não afete a privacidade de informação particular.

- Espera-se que esta abertura dos dados públicos possa criar uma grande zona de interface com a sociedade civil e ser o pretexto que faltava para fazer explodir o estado-plataforma, em múltiplos modelos e formatos de plataforma colaborativa e abrindo o caminho para novas categorias de bens e serviços, como os “comuns colaborativos” em regime de coprodução com o cidadão-utente,

- Esta política de abertura dos dados públicos deve ser acompanhada de incentivos à inovação no interior da própria administração, de tal modo que sejam criados núcleos de inovação ou “start-up internas à administração”, desejavelmente em estreita cooperação com start up exteriores à administração; estes núcleos de inovação devem ser coadjuvados por uma incubadora pública cujo principal objetivo é criar externalidades positivas para as centenas de start up que emergirão como extensão de serviços públicos.

- Política de “acesso livre e governo aberto” significam, ainda, uma pequena revolução na forma de fazer política pública e regulação de política pública; cobrir todo o território, conectar todos os cidadãos, cumprir um programa de literacia digital, atribuir uma identidade digital aos cidadãos, criar regras para a proteção de dados pessoais, definir as condições e os termos para a cogestão dos bens comuns colaborativos, assim como atribuir uma licença colaborativa para a sua utilização ulterior, eis algumas variáveis essenciais para a política regulatória do estado-plataforma.

Notas Finais

Como se observa, há um longo caminho a percorrer, tanto mais quanto, não temos, ainda, uma linha de rumo clara em matéria de transformação digital do setor público e um ator-rede acreditado para levar a bom porto esta pesada tarefa que exige um grande esforço de programação e planeamento.

O modelo silo criou territórios-zona e gavetas orçamentais para administrar áreas e atividades de natureza clientelar e corporativa. A equipa ministerial é a cúpula desse modelo silo e a sua legitimidade alimenta-se dessa provisão clientelar. Em cada área governativa forma-se uma cadeia de valor com várias intermediações onde se acomodam os agentes facilitadores e as estruturas de concertação e negociação. Ninguém parece estar muito preocupado com as ineficiências internas que se geram nas zonas de interface entre setores e áreas de atividade, uma vez que as externalidades negativas são geralmente cobertas e socializadas pelo contribuinte.

Não tenhamos ilusões, num país onde geralmente se confunde uma política pública com a publicação de um diploma legal em diário da república, não é tarefa fácil montar um estaleiro de pequenos núcleos inovadores no interior da administração pública em estreita ligação com centros de investigação e outras start up e, a partir daí, gerar um movimento de reforma da nossa administração pública, tal como está sumariamente descrita na tabela anterior. Entretanto, a alternativa mais conveniente está sempre à espreita, chama-se modernização administrativa e negócio informático, necessários, é certo, mas que não se confundem com cultura colaborativa e participativa e estado-plataforma. No nosso caso o principal estrangulamento ao patrocínio adequado deste novo universo de start-up é o “modelo silo” completamente ultrapassado das nossas principais instituições, totalmente viciadas em candidaturas e ajudas públicas para preencher a sua missão corporativa.

O exemplo francês, embora recente, mostra que a triangulação entre o ministério da transição ecológica, o ministério da coesão territorial e a secretaria de estado da modernização digital, está vocacionada para criar espaços de inovação no interior da administração pública que eram no modelo silo uma espécie de buracos negros da administração. Com um programa de incentivos adequado os funcionários são estimulados a converter-se em intrapeneurs, a formar pequenas equipas e a desenvolver as sementes de uma cultura organizacional de transição para o estado-plataforma. Com este propósito o governo francês criou uma incubadora (beta.gouv.fr) com o objetivo expresso de apoiar o lançamento de “start up internas à administração”. Recomendo uma visita.

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