“Os populistas latino-americanos comprometem a qualidade das democracias”

Michael Coppedge alerta para a erosão das democracias liberais na América Latina e encontra semelhanças entre o clima das eleições europeias de 2017 e o das presidenciais deste ano naquela região.

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Em alguns Estados latino-americanos assistimos a ataques sistemáticos à legislatura e à independência dos tribunais, diz Coppedge Rui Gaudêncio/PÚBLICO

É investigador de Política Comparada na universidade norte-americana de Notre Dame (Indiana), um nome grande no estudo sobre partidos, sistemas políticos e eleições na América Latina e veio a Lisboa participar na conferência de lançamento do livro Variedades de democracia na Europa do Sul 1968-2016, coordenado por Tiago Fernandes, financiado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos e editado pela Imprensa de Ciências Sociais.

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É investigador de Política Comparada na universidade norte-americana de Notre Dame (Indiana), um nome grande no estudo sobre partidos, sistemas políticos e eleições na América Latina e veio a Lisboa participar na conferência de lançamento do livro Variedades de democracia na Europa do Sul 1968-2016, coordenado por Tiago Fernandes, financiado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos e editado pela Imprensa de Ciências Sociais.

Em ano de presidenciais no México, Venezuela, Colômbia e Brasil, e com perspectivas de alterações significativas no mapa político da região, Michael Coppedge explica o que une e o que afasta os sistemas políticos dos países latino-americanos e lembra que apesar de a corrupção, a violência e a desconfiança nas instituições democráticas serem sintomas paralelos a muitos daqueles Estados, não significa que haja uma relação directa entre eles.

A América Latina deu uma guinada à direita na última década. É uma tendência ou uma coincidência?

É tendência. Houve uma espécie de movimento pendular no desfecho das eleições na América Latina nos últimos anos. Em meados dos anos 1980 já tinha havido essa viragem à direita, em resposta às crises económicas e à necessidade de reformas estruturais para combater os enormes défices orçamentais, a desvalorização cambial e a inflação. Vários países fizeram-no e com sucesso. Mais tarde, houve uma viragem à esquerda – na Venezuela, Equador, Bolívia, Nicarágua, Brasil e, de certa forma, na Argentina e no Chile – que serviu para lidar com as consequências desses ajustamentos estruturais e com a falta de investimento em políticas sociais. E nos últimos anos houve uma reacção ao trabalho dos governos de esquerda e à mais recente crise económica, com novo avanço da direita. O México é a excepção.

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Manuel López Obrador sempre foi um candidato forte no México Henry Romero/REUTERS

Como é que se explica então que Manuel López Obrador, um candidato de esquerda, duas vezes derrotado em presidenciais, esteja muito próximo de ser eleito Presidente do México, um país dominado pela direita desde os anos 1920?

Na verdade Obrador sempre foi um candidato competitivo e esteve muito perto de vencer as duas eleições em que participou. A administração de [Felipe] Calderón gerou imenso descontentamento popular, por culpa da guerra às drogas. A de [Enrique] Peña Nieto também, de novo por causa da guerra às drogas e das revelações de corrupção e do aumento do assassínio de jornalistas. O Partido da Acção Nacional e o Partido Revolucionário Institucional [os dois de direita] governaram em democracia e falharam. Por isso é natural que seja dada uma oportunidade a Obrador.

Para além do México, estão agendadas outras cinco eleições presidenciais na América Latina este ano. E no México, no Brasil e na Colômbia têm surgido discursos populistas e extremistas. É semelhante ao que se verificou na Europa e nos Estados Unidos?

Em alguns aspectos sim. Olhando para os casos de Donald Trump, do Podemos [Espanha], do Syriza [Grécia], do Movimento 5 Estrelas [Itália] ou da Frente Nacional [França], há algumas semelhanças no discurso e nas propostas. Mas há que ter em conta que, América Latina, o conceito de populismo diverge imenso de país para país. Basta ver a Venezuela. Pode descrever-se o Partido Socialista como populista de esquerda, com uma forte componente autoritária, mas é incomparável a movimentos políticos noutros países latino-americanos. Na Bolívia, Evo Morales usa uma retórica populista, mas o sistema político que daí advém é relativamente democrático. E no Equador, [Rafael] Correa adoptou estratégias semelhantes a [Hugo] Chávez, mas menos severas. Estes exemplos ajudam-nos a perceber que há diferentes categorias de movimentos populistas na região. A grande diferença em relação à Europa é que nesta o populismo ainda não redundou em autoritarismo, pelo menos em termos de conquista do poder político, controlo da imprensa ou supressão de organizações. Na América Latina o descontentamento com os partidos tradicionais e a vontade de algo de novo são explorados por populistas que em muitos casos conseguiram impor sistemas autoritários e comprometeram a qualidade das suas democracias.

Recentemente debateu-se na Europa a perspectiva de um resultado eleitoral num país poder influenciar a agenda e o desfecho das eleições de outro. Este debate foi constante em 2017, com as eleições holandesas, francesas, britânicas, alemãs e austríacas. Esse efeito dominó pode ser replicado nas presidenciais deste ano na América Latina?

É uma reflexão pertinente, mas muito difícil de responder. Os estudos sobre a difusão da democracia dizem-nos que os países costumam influenciar-se uns aos outros. O grau de democratização de um Estado repercute-se bastante no grau de democratização dos seus vizinhos, dos seus parceiros comerciais e até das suas ex-colónias. Mas a verificação de mudanças semelhantes em países diferentes pode não ter qualquer conexão directa. No que toca ao debate sobre a corrupção e aos discursos populistas, tendo a argumentar que se trata de reacções idênticas a condições internas também idênticas e não de um cenário em que os países se estão a influenciar uns aos outros.

Porque é que os países latino-americanos têm tendência para favorecer democracias eleitorais em detrimento das chamadas democracias liberais?

As democracias liberais têm uma importante componente de garantia e protecção de direitos e liberdades individuais e possuem mecanismos de controlo e fiscalização do poder executivo, que advêm de um legislador forte e de tribunais independentes. Ora, em determinados Estados latino-americanos assistimos a ataques sistemáticos a estes dois últimos. Isto aconteceu na Venezuela – que já nem pode ser considerada uma democracia eleitoral –, mas também no Equador, na Bolívia, no México ou na Nicarágua. Para além disso, os tribunais da grande maioria dos países da América Latina – exceptuando a Costa Rica, a Colômbia e o Uruguai – sempre foram historicamente fracos, porque o poder judicial está muitas vezes amarrado ao político. Possivelmente, só o Uruguai e a Costa Rica são verdadeiras democracias liberais, de acordo com estes padrões. Mas é tudo uma questão de grau.

Mas os índices de democracia eleitoral da América Latina decresceram no século XXI. O relatório de 2017 do projecto V-Dem, no qual está envolvido, assim o sugere.

Essa realidade resultou de um esforço concertado, por parte do Governo venezuelano, de difundir o Chavismo por países como a Bolívia, o Equador, a Nicarágua e a República Dominicana. Falamos de um modelo de poder populista, assente numa eleição presidencial e na possibilidade de se convocar uma Assembleia Constituinte para reescrever a Constituição. Com isso abriu-se caminho para a concentração de poder nas mãos do executivo, para o enfraquecimento do sistema de checks and balances ao qual a presidência deveria estar sujeita e até para o controlo da imprensa. É preciso notar, no entanto, que isto não resultou de uma imposição. Não acredito que a Venezuela tivesse conseguido ser bem-sucedida se nestes países não existisse uma base interna de apoio a este modelo.

Uma sondagem recente do Latinobarómetro mostra que apenas 53% dos latino-americanos acreditam que a democracia é o melhor sistema de Governo. A que se deve esta desconfiança?

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No Brasil, os simpatizantes do PT sentem que têm sido alvo de uma perseguição judicial injusta Diego Vara/REUTERS

Existem enormes variações de país para país. No México, por exemplo, existe um enorme desencanto nos eleitores, resultante da violência criminosa que tem vindo a aumentar desde que o país transitou para a democracia. O aumento do crime e da violência faz as pessoas reflectirem sobre o seu real funcionamento. Nos últimos anos da presidência de Peña Nieto assistimos a um maior controlo da imprensa, ao assassinato de vários jornalistas e ao aumento da corrupção. São tudo motivos que levam as pessoas a desconfiar da eficiência da democracia. No Brasil, o combate à corrupção também tem gerado enorme controvérsia e o país está fortemente dividido de acordo com simpatias partidárias, uma vez que muitos dos alvos das investigações são líderes do Partido dos Trabalhadores (PT). Os simpatizantes do partido sentem que tem sido o principal alvo de uma perseguição judicial injusta e as pessoas que não simpatizam com o PT congratulam-se com facto de se estar finalmente a fazer algo para combater a corrupção. Nenhuma das posições favorece a imagem da democracia.

Numa entrevista recente disse que os avanços verificados em matéria de democratização têm sido acompanhados por um aumento da corrupção. Não é um paradoxo?

Sim, parece tratar-se de um paradoxo. É, no entanto, possível que o que entendemos como um aparente aumento do número de casos de corrupção seja, na verdade, o resultado de uma maior transparência, trazida pelos processos democráticos. Numa democracia é possível que as pessoas estejam mais alerta, já que existem mais denúncias destas questões. Ainda assim, em alguns casos houve mesmo um aumento da corrupção. As democracias promovem mais oportunidades e incentivos à classe política para enveredar neste tipo de práticas. A procura de financiamento privado para campanhas eleitorais ou a compra de votos são exemplos disso mesmo.