Por que é que um cão com chip é mais livre do que um humano servo do Facebook

O que se está a passar nos nossos dias é uma usura da democracia através das mais novas tecnologias, substituindo a informação pela manipulação.

Sigam o exemplo da Al-Qaeda... e se quiserem mesmo manter confidencial o vosso correio e as vossas conversas deitem fora o telefone satélite e mandem um homem com uma mula ou um burro levar as mensagens ao destinatário. Não é perfeito, porque o homem pode ser um agente infiltrado, ou pode haver informações sobre o seu trajecto e ser emboscado, mas, mesmo com estes pequenos inconvenientes de trajecto, a privacidade da mensagem fica muito mais protegida do que se usar qualquer moderno meio de comunicação. Querem encriptar uma mensagem? Usem o velho e seguro método do one time pad, dá muito trabalho e demora tempo e exige um enorme rigor no cumprimento das suas regras. Não dupliquem os livros de código, como os russos fizeram por causa da falta de papel durante a guerra e depois tramaram-se. Se quiserem escrever com tinta invisível, ainda há uma série de receitas datadas da Primeira Guerra que ainda estão classificadas, o que quer dizer que ainda estão operacionais pelo menos para os serviços que eventualmente as usem. Não falem alto nem junto de uma janela, nem aceitem presentes muito bonitos para colocar em cima da secretária, mesmo que tenham sido escrutinados para microfones, porque, como os ingleses fizeram a um embaixador russo, basta uma certa configuração de um objecto para ampliar o som de uma conversa dirigi-lo para uma janela que vibra e poder ser ouvido do outro lado da rua. Como toda a gente sabe, o outro lado da rua das embaixadas mais “especiais” está cheio de ouvidos. Não confiem em telefones apagados e mesmo sem pilhas, nem em ecrãs de computadores, nem nas paredes — ouçam a velha máxima “nem às paredes confesso”.

Tudo isto porque querem organizar um qualquer crime, querem espiar alguém, querem esconder qualquer segredo inominável? Não. Porque não querem que a vossa privacidade e intimidade seja violada, porque acham essa coisa que hoje cada menos gente acha que a vida de cada um, desde que não seja criminosa, não cura ao Estado, nem ao vizinho, nem a ninguém e assiste a cada um ter os segredos que quiser entre si e o seu espelho. Levou duzentos anos a conseguir uma ténue privacidade nas cidades, com casas onde não estão todos num mesmo quarto, e com janelas com cortinas. Levou duzentos anos, mas nós não teríamos sequer, e só mesmo uma minoria de “nós”, a possibilidade de sermos senhores da nossa vida sem isso. De sermos autónomos e livres.

Claro que é uma utopia a privacidade mesmo imperfeita, porque se alguém quiser saber e tiver meios para saber tudo, pode fazê-lo. Pode escrutinar o contador da luz inteligente, pode espionar o lixo, pode pagar a empregadas e homens da pizza para contarem o que está para lá da porta, pode seguir o rastro do dinheiro comum e das despesas comuns no multibanco e nessa invenção perniciosa que é a e-factura (como, aliás, tudo aquilo que o fisco se arroga o direito de saber acabando com qualquer constitucional presunção de inocência), pode escutar conversas telefónicas, monitorizar os ritmos cardíacos nos novos relógios inteligentes, medir passos e escadas nas aplicações de saúde, seguir o uso do telefone pelo mapa, seguir um automóvel pela sua electrónica. Ou pode ler esse livro aberto no mais fundo das pessoas que é o Facebook. O que comem, onde estão, com quem dormem, em quem votam, de quem gostam ou desgostam. Suspeitem, aliás, sempre da palavra “inteligente” associada a um qualquer gadget ou device. Significa que ele quer saber mais do que deve.

Não é possível hoje evitar ter uma espécie de backup da nossa vida toda num qualquer gigantesco computador governamental, ou de uma empresa como o Facebook, o Google, ou as suas variantes asiáticas, ou em utilizadores da informação das primeiras como a Cambridge Analytica. De facto, não vale a pena ter a ilusão de que o homem comum se pode defender de ver a sua vida devassada seja pelo fisco, seja pela polícia, seja pelos serviços de informação, seja pelos múltiplos cartões desde o multibanco ao supermercado, à livraria, seja pelo boatério venenoso das redes sociais, seja por mais mil sejas que eu posso colocar aqui. Não pode.

Depois pode responder a esta rede de informações recolhidas com dolo, indo, como dizem os americanos, “out of the grid”, para o meio de uma remota montanha onde não há sinal de telemóvel e onde pode subsistir do que caça ou pesca, ou tornar-se num ludita perigoso como o Unabomber. Pode, mas deixa cá fora o resto da humanidade a entrar numa variante perfeita do mundo do Big Brother do 1984 de George Orwell. E sabem porque é que isto é muito perigoso para quem ama a liberdade? O que se está a passar nos nossos dias é uma usura da democracia através das mais novas tecnologias, substituindo a informação pela manipulação e obtendo resultados com isso. A história do trio Facebook-Cambridge Analytica-serviços russos é isso mesmo, a história de como é possível manipular eleitores em massa, usando a big data e as fake news, gerando um tecido social e psicológico que permite terminar com a democracia. Trump ganhou por causa disto? Não, Trump ganhou também por causa disto e, numa eleição apertada, isto faz uma enorme diferença, a diferença que é necessária para ganhar. Trump combinou um discurso populista e social (não é a mesma coisa) com a manipulação científica das massas. A palavra científica é deliberada, porque a ciência é o que se fizer dela sem deixar de ser ciência.

Ah! e falta acrescentar que as pessoas se puseram a jeito e se põem cada vez mais a jeito, comprometendo a sua privacidade, gerando uma nova ignorância agressiva, aceitando pôr em causa a sua liberdade por um qualquer pequeno conforto, vivendo um Ersatz de vida para combater a solidão  e a exclusão e tendo como resultado aumentá-la significativamente. Para além dos antigos pobres, que ainda são de mais, há os novos pobres, que são os ignorantes, os que vivem sem silêncio nem tempo para pensar, que falam de mais no Facebook ou no contínuo fluxo de mensagens vazias com o único objectivo para A dizer a B ou a C, D, E, F, que está ali, presente no meio de uma logomaquia do nada. Um cão com um chip transmite muito menos informação do que um humano burro com um telemóvel inteligente e é, por isso, mais livre.

Se tudo isto é um esforço baldado e inútil, o que é que se pode fazer em democracia? É educar de forma diferente desde o jardim- de-infância, porque poucas coisas são mais obsoletas do que os modelos educativos actuais para um mundo como o de hoje. É criar uma cultura de respeito pela privacidade, que considere que há valências das máquinas que devem ser só usadas quando é preciso e que se deve dizer mais vezes não à geolocalização, que não se deve andar com um detector de mentiras no pulso disfarçado de relógio inteligente e por aí adiante. Há muito mais que se pode fazer do que o que se faz. Não basta educar os namorados a não se agredirem — é preciso que saibam que, da mesma maneira que não se põe os pés em cima de mesa de comer, não se pede a password como prova de “amor”.

E depois há que fazer pagar caro quem viole a regulação existente, quem use para fins ilícitos a informação recolhida, mesmo legalmente, proibir a recolha de certos dados pessoais a não ser em excepções muito raras. E punir no bolso as empresas que vendem o que não devem vender e as que recolher dados que não devem recolher. E exigir ao Estado que persiga o crime, mas com exigência de haver uma séria suspeita e autorização judicial, e não nadar à pesca de arrasto. Nada disto impede o abuso, mas pode fazê-lo pagar caro. Mas tenhamos consciência de que cada um de nós, assinando de cruz o que não deve, aceitando gratuitidades que tem um preço e usando a “inteligência” a favor dos maus costumes sociais, e seguindo velhas tentações humanas como o voyeurismo e a bisbilhotice, a pequena maldade e a troca da liberdade pelo confortozinho, estamos a fazer a cama onde nos iremos deitar. Um dia paga-se caro. Hoje já se paga caro.

 

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