A fotografia que não fiz para o meu jornal

Em Março de 2000, fui enviado pelo meu jornal a Moçambique, meu país de origem, para cobrir as dramáticas cheias que o assolavam. Mais uma vez, os Rios Limpopo e Save tinham-se entornado para lá das suas margens. O sul e o centro do país estavam agora como que submersos em toda a água que noutras épocas faltara. Já não visitava os meus pais, em Maputo, fazia cinco anos. Era urgente deslocar-me a Moçambique para dar a conhecer ao mundo aquele drama. Como era urgente, também, um abraço dos meus pais.

Foi com dois grandes camaradas que trabalhei nesta reportagem: o Marcelo Mosse e o João Manuel Rocha. Quando se é enviado especial, o peso da responsabilidade pode pôr a profissão acima dos laços familiares. Desembarcado em Maputo, entre abraços e lágrimas, senti-me de novo aquele menino que adorava correr nu, a fintar os fios de água que caíam em dias de chuva tropical. Ocorreu-me o que apreendera um dia sobre o rio Limpopo: que corria muito disciplinado na vizinha África do Sul, sobretudo durante as chuvas. Mas a caminho da sua foz, em Moçambique, libertava algumas vezes toda a sua irreverência. Soltando-se do seu percurso sem avisar ninguém, levando vidas e bens. A minha avó materna vivia nas margens do rio Limpopo, cerca de 200 quilómetros a norte de Maputo, onde a situação era crítica. A estrada nacional estava cortada na Manhiça. Uma ponte tinha desabado, levada pela corrente, e não havia comunicações telefónicas. O distrito de Chokwé estava literalmente isolado. Soube que uma criança nascera em cima de uma árvore. Em Maputo, a família não sabia da minha avó, da minha tia mais nova e dos meus primos há alguns dias.

Duas horas depois do desembarque em Maputo, fiz-me à estrada, a caminho do Chokwé. Os meus avós maternos eram agricultores e criadores de gado nas margens do Limpopo, outrora denominado o “celeiro da nação”. Este vale foi também a minha escola. A maior parte das férias da escola primária foram lá vividas e foi ali que, ainda menino, aprendi a “domar” um tractor  Massey Ferguson. O meu avô Luís, padrasto da minha mãe, deixava-me lavrar os arrozais. Eram as férias mais estimulantes que uma criança podia ter em plena natureza. Campos sem fim, com uma linha de horizonte que mal conseguia ver, transmitindo-me a sensação de que a vida era infinita. Imaginei vezes sem conta ver de cima aquelas machambas (campos agrícolas). Talvez tenha sido por isso que, um dia, enquanto modulava lama na machamba, sonhei ser piloto de aviação. Os meus avós nunca abandonaram esta região por nada. Mesmo depois de os cooperantes búlgaros terem fertilizado as terras. A terra, eles e os arrozais também foram lá sepultados.

Durante esta reportagem, em 2000, vivi um dilema enquanto jornalista: a terrível sensação de estar a reportar sobre mim mesmo. No lugar onde me fiz à vida e, ainda por cima, numa situação de calamidade. Chegado ao Chokwé, cinco horas depois, a terra que me tinha visto crescer era agora um imenso rio lamacento. No que sobrava dela, um tractor cor-de-rosa recolhia cadáveres. Alguns estavam caídos como folhas secas, arrastados do seu refúgio nas copas das árvores por um rio em fúria. Outros iam sendo aconchegados no atrelado cor-de-rosa, no qual,  curiosamente, até os homens que carregavam as vítimas estavam calçados com luvas dessa mesma cor.

Adivinho que fosse uma forma de atenuar aquele céu cinzento carregado que se impunha sobre aquele lugar. Os que fugiram a tempo da torrente de água que em poucas horas inundou a vila estavam num centro de acomodação. Quando lá cheguei, dei com um rio de gente que aguardava faminta a ajuda alimentar que chegaria dos céus. Crianças, velhos, mulheres e homens formavam longas filas para conseguirem a marca lilás no dedo indicador que os elevaria à condição de vítima das cheias. Já não lhes bastava o terrível pesadelo que viviam, sem saberem de alguns dos seus familiares que ficaram para trás, pendurados nas copas das árvores ou sobre os frágeis telhados das suas casas.

As condições eram miseráveis. Tentava fotografar um grupo de pessoas sentadas no chão, fragilizadas por aquela situação dramática, quando, no visor da câmara, vi a minha avó Luísa. Uma mistura  de choque e alívio tomou conta de mim. O coração parou-me ao ponto de não sentir o dedo no exacto momento. Foi a fotografia que não fiz. A fotografia que nunca me arrependi de não ter feito e que permanecerá para sempre na minha memória. Ajudei-a a levantar-se. Abraçámo-nos e levei-a para Maputo. Para longe daquelas águas que a pouco e pouco senti regressar para o seu curso natural. Há imagens que devem ficar só connosco. Emulsionadas em nós.