Acordo para o “Brexit” em risco por causa da fronteira da Irlanda

Theresa May disse que o rascunho de tratado jurídico divulgado pela Comissão Europeia é “inaceitável”, porque põe em causa ordem institucional e territorial do Reino Unido.

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A falta de “clarificação” de Downing Street obriga a "considerar um plano B ou C", disse Barnier OLIVIER HOSLET/EPA

O confronto entre Londres e Bruxelas sobre a delicada gestão da fronteira entre a República da Irlanda e a Irlanda do Norte parece inevitável. A primeira-ministra britânica, Theresa May, considerou “inaceitável” a proposta de manutenção do funcionamento do mercado único na ilha, e o negociador chefe da Comissão Europeia para o “Brexit”, Michel Barnier, insistiu que a ausência de “clarificação” de Downing Street sobre essa e outras questões “fundamentais” obriga a considerar um plano B ou C.

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O confronto entre Londres e Bruxelas sobre a delicada gestão da fronteira entre a República da Irlanda e a Irlanda do Norte parece inevitável. A primeira-ministra britânica, Theresa May, considerou “inaceitável” a proposta de manutenção do funcionamento do mercado único na ilha, e o negociador chefe da Comissão Europeia para o “Brexit”, Michel Barnier, insistiu que a ausência de “clarificação” de Downing Street sobre essa e outras questões “fundamentais” obriga a considerar um plano B ou C.

No limite, disse Barnier, até pode significar que a saída do Reino Unido da União Europeia não decorra da forma “organizada e ordeira” que todos pretendem. “Desde o início que nos preparamos para todos os cenários”, afirmou.

A Comissão Europeia divulgou esta quarta-feira o rascunho do texto jurídico que regulará a saída do Reino Unido do bloco, no fim de Março de 2019. Trata-se, por enquanto, de um documento de trabalho, de 120 páginas com 160 artigos e anexos que traduzem juridicamente o acordo político alcançado entre as duas partes em Dezembro quanto aos princípios gerais do divórcio. A saber, sobre a protecção dos direitos dos cidadãos europeus que vivem no Reino Unido; o respeito de todos os compromissos financeiros assumidos (a 28) no âmbito do quadro plurianual que termina em Dezembro de 2020; e a salvaguarda da cooperação norte-sul e do Acordo de Sexta-feira Santa, que pôs fim a anos de conflito na Irlanda do Norte.

Como realçou Michel Barnier, o texto aprovado durante a manhã pelo colégio de comissários (e que poderá ainda sofrer emendas dos 27 Estados-membros) visa promover a “transparência” e introduzir “clareza” nas negociações — que só não são mais claras e transparentes porque Londres continua sem avançar com propostas concretas em várias matérias.

“Inaceitável”, disse ela

No rascunho jurídico estão vertidas “soluções concretas e realistas” que dão “validade jurídica” aos três pontos do acordo político de Dezembro. Essas soluções foram encontradas na base da mediação e da criatividade, esclareceu. “O texto não tem nenhuma surpresa para quem está dentro da negociação”, sublinhou o diplomata francês encarregado de liderar o processo negocial com Londres. Mas imediatamente viu uma dezena de braços levantar-se na sala de imprensa do Berlaymont com perguntas sobre a complexa questão da fronteira da Irlanda do Norte.

Theresa May, numa intervenção no Parlamento de Londres, classificou como “inaceitável” a proposta de uma “área regulatória comum” na ilha da Irlanda.

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Campanha anti-Brexit à porta do edifício do Governo na Irlanda Clodagh Kilcoyne/REUTERS

“O rascunho que a Comissão divulgou, se for posto em prática, põe em causa o mercado interno do Reino Unido e ameaça a sua integridade constitucional, ao criar uma fronteira alfandegária e regulatória no mar da Irlanda. Nenhum primeiro-ministro britânico poderia concordar com isto e quero deixar isso muito claro”, declarou a líder conservadora, que esta sexta-feira fará um discurso para apresentar as ideias do seu Governo para a relação comercial com a UE após o “Brexit”.

Admitindo que o Governo britânico certamente “terá muito a dizer” sobre o documento que a partir de agora serve de base às negociações, e insistindo que “o tempo é escasso” até à conclusão do processo, Barnier foi repetindo que, na falta de uma posição definida de Londres sobre a questão da fronteira da Irlanda do Norte, a Comissão Europeia teve de fazer “um exercício” e planear os diferentes cenários possíveis para assegurar o cumprimento do acordo político de Dezembro, que rejeitava o regresso dos controlos fronteiriços entre as duas Irlandas.

“No parágrafo 49 do tratado são apresentados três cenários para evitar uma fronteira física [hard border] e garantir o acordo de paz.” “Estamos disponíveis para discutir as três opções”, garantiu Barnier. Referia-se-se à possibilidade de ser assinado um acordo de livre comércio entre o Reino Unido e a UE, ou de ser estabelecido um quadro específico para a Irlanda do Norte por proposta de Londres — que ainda não foi formulada pelo Governo britânico.

Mas tendo em conta que essas duas opções só serão “operacionais” no contexto das discussões sobre a relação futura, a Comissão avançou com uma terceira opção, um chamado stop-gap ou “acordo-tampão”, que estabelece uma “área regulatória comum” na ilha da Irlanda, onde continuarão em vigor as regras do mercado comum e da união aduaneira. “Numa ilha que tem dois países, mas que é um espaço geográfico coerente, não podemos deixar de ter coerência regulamentar”, justificou Barnier.

Apesar de vincar que nada, nessa terceira opção, “interfere com a ordem institucional ou a unidade territorial” do Reino Unido, Barnier disse que a questão que tanto incomoda Theresa May deixará de se colocar quando o Governo britânico apresentar uma solução alternativa que assegure os objectivos de cooperação norte-sul e protecção do Acordo de Sexta-feira Santa a que se comprometeu. “Esta terceira opção surge no texto como último recurso. Se o acordo sobre a futura relação [entre o Reino Unido e a UE] tiver uma solução para este problema, este ponto será suprimido e eliminado do texto definitivo”, explicou.

Linhas vermelhas

Mas se a questão da fronteira da Irlanda do Norte é aquela que mais inflama os ânimos neste momento, há outras matérias em que o consenso entre os dois blocos também continua difícil. Michel Barnier sublinhou que, no processo negocial, não é só o Reino Unido que tem linhas vermelhas.

E é por não aceitar que Londres escolha, no futuro, quais as regras que lhe interessa ou não seguir que Michel Barnier avisa que nem o período de transição que foi solicitado por Londres para os 20 meses a seguir ao “Brexit” pode ser dado por adquirido — “As discussões técnicas da última semana mostraram que persistem grandes divergências” —, nem o plano para a saída “ordeira” da União Europeia é uma garantia absoluta.

 “O meu papel enquanto negociador é trabalhar para que essa saída organizada aconteça, por mais difícil que seja. Mas desde o início que nos preparamos para todos os cenários, e o secretário-geral da Comissão Europeia está, em paralelo, a trabalhar num plano de contingência [para o caso de não haver acordo final]”, informou Barnier.