Quando tão poucos dão muito poder a alguns

As taxas de abstencionismo dos sócios na vida dos principais clubes portugueses ultrapassam os 90%, mas não impedem os presidentes de assumirem cada vez mais autoritarismo. O líder do Sporting Bruno de Carvalho deu o mais recente exemplo desta postura de intolerância

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ANTÓNIO PEDRO SANTOS/LUSA

O futebol é um dos desportos mais democráticos do planeta. Não nega oportunidades a nenhum dos seus praticantes ou candidatos a praticantes, independentemente da sua base social, num princípio norteado pela meritocracia. Mas pode falar-se em democracia neste desporto ao nível das cúpulas dirigentes, nomeadamente nos clubes?

As recentes declarações de Bruno de Carvalho, presidente do Sporting, no final de uma assembleia geral (AG), que aprovou a sua continuidade por esmagadora maioria, abalou os mais básicos princípios de liberdade e pluralismo próprios dos regimes liberais.

“Os sportinguistas vão ter de se mobilizar naquilo que é militância. A partir de hoje não vamos comprar nem mais um jornal desportivo — e incluo o Correio da Manhã. Não vejam nenhum canal português a não ser o do Sporting. Todos os comentadores afectos ao Sporting abandonem os programas e que nenhum sportinguista aceite estar ao lado daquela gente. Só assim podemos ser diferentes.” Esta intervenção do líder “leonino” foi aplaudida entusiasticamente pelos quase seis mil sócios presentes na reunião magna, que lhe haviam concedido instantes antes um voto de confiança com um peso de aproximadamente 90%. E, no final dos discursos, a massa de apoiantes começou a caça às bruxas, com ameaças à ténue oposição presente e aos jornalistas no local.

Um universo paralelo

“O futebol comporta-se muitas vezes como se vivesse num universo paralelo, mas mesmo neste mundo à parte as declarações de Bruno de Carvalho são escandalosas”, defendeu ao P2 o sociólogo Carlos Nolasco, investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, que compara este tipo de discurso ao “populismo imbecil” do actual Presidente dos EUA [Donald Trump]: “Muitos adeptos aderem a ele de forma completamente acrítica.”

O também sociólogo João Nuno Coelho assina por baixo. “Estas últimas afirmações do presidente Bruno de Carvalho ultrapassam tudo o que ele já disse. A forma não é tão chocante como outras declarações mais antigas, mas o significado é ultrajante. Essa radicalização de querer que as pessoas só oiçam a história contada pela versão oficial é inacreditável. É um atestado de menoridade aos adeptos, um discurso paternalista e muito triste.”

Num futebol onde a exposição pública dos seus grandes protagonistas, os jogadores, é extremamente condicionada e escrutinada pelos próprios clubes, o desbragamento dos dirigentes e respectivas falanges de apoio é particularmente contrastante. O fenómeno não é novo, mas ganhou especial relevância nos tempos mais recentes, muito por força da hipermediatização desta actividade.

“Este protagonismo dos líderes das direcções dos clubes tem muito que ver com a dinâmica mediática verificada sobretudo a partir do final da década de 1980 e especialmente no início dos anos de 1990 [com o surgimento das televisões privadas]. Com a conjugação da imprensa, rádio e televisão, a dinâmica mediática alterou-se substancialmente”, explicou ao P2 o historiador Francisco Pinheiro: “O conteúdo noticioso à volta do futebol é uma das temáticas que mais vendem.”

Democracia e radicalismo

Declarações como estas do líder “leonino” ou outras de idêntica gravidade a envolverem dirigentes dos principais clubes portugueses têm inflamado o futebol nacional nas últimas décadas, mas eram impensáveis no período da ditadura. “Durante o Estado Novo, até 1974, era tudo muito controlado pelo poder central. Os clubes eram obrigados a ratificar na Direcção-Geral dos Desportos a elegibilidade de determinado presidente ou direcção, por serem cargos de exposição pública.” A democracia trouxe uma radicalização da retórica em torno do futebol.

Francisco Pinheiro deixa dois exemplos: “O Sporting é dominador na década de 1940 e praticamente ninguém sabe quem é o presidente ou os presidentes daquela altura. O que fica na memória são os ‘cinco violinos’. O mesmo acontece com o Benfica na década de 1960, com a equipa maravilhosa que vai a cinco finais dos campeões europeus e vence duas.”

Tudo muda a partir do último quartel do século XX, quando os presidentes dos clubes passam a dividir com jogadores e treinadores um palco cada vez mais amplificado. “Esta dinâmica mediática acaba por incluir, por arrasto, um conjunto de discursos que são extremamente apelativos para as audiências. Estes fenómenos não podem ser vistos de forma isolada, fazem parte de um contexto histórico e, no caso do futebol, numa relação muito próxima com os media”, observa Pinheiro, investigador e fundador do Grupo História e Desporto da Universidade de Coimbra.

O advento da Internet e das redes sociais, principalmente a partir do início do novo milénio, são os novos instrumentos que contribuíram para esta articulação mediática, potenciando uma exposição enorme. Os dirigentes depressa aprenderam a manobrar as novas ferramentas à sua disposição e não resistiram à tentação de controlar e condicionar a informação.

“A partir de determinada altura, com a profissionalização e o aparecimento das SAD [Sociedades Anónimas Desportivas que gerem o futebol profissional dos clubes], os dirigentes perceberam a importância do controlo da informação e a criação da sua própria informação. Não é por acaso que têm os seus próprios canais de televisão, jornais e newsletters diárias”, nota Francisco Pinheiro, reforçando que este não é um fenómeno novo.

“O período que estamos a viver, de muita agitação no futebol português, é relativamente próximo daquela que se viveu na segunda metade da década de 1990.” Na altura, a “agitação” coincide com o surgimento dos primeiros programas televisivos que polemizam os bastidores do futebol, nomeadamente o precursor Donos da Bola da SIC. “Há um conjunto de fenómenos que vão explicando esta dinâmica. Estes períodos são mais ou menos repetitivos ao longo do tempo, não são exactamente uma novidade”, defendeu o historiador.

Em nome da defesa intransigente dos respectivos clubes e massas associativas, os dirigentes assumiram o protagonismo de forma ruidosa, escudando-se com a legitimidade do sufrágio que os conduziu à cadeira do poder. Isto apesar de as eleições nos clubes serem cronicamente pautadas por taxas de abstencionismo que ultrapassam os 90%.

Adesão, mas só à discussão

Mesmo no último acto eleitoral no Sporting, que reelegeu Bruno de Carvalho para um segundo mandato, em Março de 2017, com uma participação recorde de 18.755 sócios, estes representaram apenas 11,72% de um universo que o próprio clube estima em 160 mil (dados de Agosto de 2017). E, no caso da polémica AG de 17 de Fevereiro, foram apenas perto de seis mil aqueles que apoiaram em massa o actual presidente: ou seja, 3,8%.

Uma realidade que se estende a FC Porto e Benfica e que não é apenas portuguesa. A 17 de Abril de 2016, Pinto da Costa foi reconduzido para o seu 13.º mandato com 79% dos votos (a sua votação mais baixa de sempre, desde que foi eleito pela primeira vez, em 1982), com a participação de 2403 sócios de um total de 107 mil (segundo dados de Setembro de 2015): 2,3%. E refira-se que nestas eleições se registou um crescimento de 91% de sócios votantes relativamente às anteriores (1258), em 2013, em que o decano líder dos “dragões” arrasou com 99,3%.

Entre as “águias”, o cenário não é melhor. No último escrutínio, a 27 de Outubro de 2016, Luís Filipe Vieira recolheu 95,52% dos votos de um total de 13.257 sócios. Ou seja, votaram apenas 7,2% de um total que roçava os 184,3 mil sócios, segundo dados divulgados pelo clube relativos a 31 de Dezembro de 2016.

Num país onde a popularidade e visibilidade do futebol atinge patamares estratosféricos, estas percentagens de participação na vida dos clubes não deixam de surpreender pela escala. “Há mais adesão à discussão sobre o futebol do que propriamente à intervenção. É estranho que estes clubes, que reivindicam ter um enorme número de adeptos e sócios, não tenham reflexo disso”, lamentou Carlos Nolasco.

Para Francisco Pinheiro, a fraca expressão na vida democrática dos clubes não é um exclusivo do futebol, verificando-se também ao nível da participação política com percentagens menos preocupantes, mas João Nuno Coelho acredita que este distanciamento dos sócios tem razões mais profundas.

“O futebol tornou-se um fenómeno de popularidade precisamente porque muita gente tem opinião e se considera avalizada para a expressar, ao contrário da economia e da política. Mas desde que os clubes se transformaram também em empresas surgiu um novo léxico económico que, em muitos casos, os sócios não dominam ou não têm interesse. A distância em relação aos sócios aumentou e as pessoas deixaram de se sentir parte importante na vida do clube.”

Braços armados

O sociólogo responsabiliza também as direcções pela forma musculada com que exercem o poder. “Os grandes clubes portugueses passaram a ter uma espécie de apaniguados que estão lá para servir os interesses dos presidentes. Quem conseguir, por exemplo, ter as claques do seu lado reúne uma espécie de braço armado, que controla tudo, incluindo as assembleias gerais. O ambiente que se vive não é de forma alguma convidativo ao pluralismo.”

E Carlos Nolasco acrescenta a dispersão geográfica das massas associativas, que, muitas vezes, têm de se deslocar a Lisboa ou ao Porto (no caso dos três “grandes”), como uma das principais causas para esta desmobilização.

A falta de um apoio maciço dos sócios em eleições (em número, não em percentagens) não impede os líderes dos clubes de assumirem comportamentos com tiques cada vez mais autoritários. “Simbolicamente, surgem como grandes timoneiros, que conduzem um barco. A liderança está muito mais próxima de um poder carismático do que propriamente balizada por valores democráticos”, salientou Carlos Nolasco.

Algo que parece não preocupar os adeptos, que passaram a estabelecer uma relação directa entre uma liderança musculada e duradoura e o sucesso desportivo. O mais recente exemplo veio do Sporting e enterrou de vez a tradição presidencial moderada das últimas décadas, com os chamados líderes “roquetistas” (José Roquette, Dias da Cunha, Soares Franco, José Eduardo Bettencourt e Godinho Lopes).

“Querer ganhar a todo o custo é o que está na base do apoio a Bruno de Carvalho. Tenho a certeza absoluta de que se o Sporting estivesse com uma dezena de pontos de atraso em relação ao FC Porto e Benfica nunca na vida teria obtido esta percentagem de votos na AG e nunca teria ameaçando demitir-se”, garantiu João Nuno Coelho.

Para Francisco Pinheiro, as posições públicas de Bruno de Carvalho e as críticas que motivam são precisamente fruto do novo paradigma e dinâmica que o líder “leonino” trouxe para o clube: “O Sporting sempre foi tradicionalmente um clube elitista, fundado pela aristocracia. A partir do momento em que chega um presidente que quebra com este género de dinâmica e estratificação social torna-se um alvo de críticas e conotações justas ou injustas.”

De resto, o historiador considera exageradas as acusações de populismo com que muitas vezes são brindados os presidentes dos principais clubes portugueses. “Quando aparecem figuras que acabam por ter uma maior presença mediática, um discurso diferente ou agressivo relativamente ao statu quo, não se pode forçosamente conotar com o populismo. E não estou a particularizar.”

Com tentações populistas ou não, certo é que, enquanto os sócios e adeptos têm hoje mais dificuldades em dominar o novo léxico empresarial dos clubes, os presidentes passaram definitivamente a falar na língua dos adeptos.

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