Isabel II (não) está maluca. Helena também (não)

Dois filmes sobre a identidade no feminino a brilharem fora de concurso em Berlim: Unsane de Steven Soderbergh, filmado com um iPhone, e Madeline’s Madeline de Josephine Decker.

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Nunca pensámos ver Sua Majestade Isabel II de Inglaterra nestes preparos: trancada num hotel psiquiátrico, drogada até à ponta dos cabelos para não se tornar num “perigo para ela própria e para os outros”, com toda a gente a achar que ela está maluca quando ela sabe bem que não está. Ou está?

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Nunca pensámos ver Sua Majestade Isabel II de Inglaterra nestes preparos: trancada num hotel psiquiátrico, drogada até à ponta dos cabelos para não se tornar num “perigo para ela própria e para os outros”, com toda a gente a achar que ela está maluca quando ela sabe bem que não está. Ou está?

Se isto vos soa a um grande número de filmes americanos clássicos com a “heroína em perigo”, têm toda a razão. E claro que não é Isabel II que está ali trancada, mas sim Claire Foy, a actriz inglesa que lhe deu corpo na série televisiva The Crown. Mas há qualquer coisa de estimulante em ver Foy a abandonar-se à pura mecânica da heroína em perigo que tem de se salvar a si própria porque mais ninguém o pode fazer, no novo filme de Steven Soderbergh, Unsane (selecção oficial – fora de competição).

Que é um thriller Hitchcock-mais-Hitchcock-não-há (pensem na Desaparecida contada do ponto de vista da desaparecida) onde o público está sempre um passo à frente da heroína e onde estamos até ao fim a roer as unhas sem prestar atenção às possíveis fragilidades da intriga (gente, por favor, NINGUÉM se chama Sawyer Valentini). Mas que é um thriller Hitchcock-mais-Hitchcock-não-há que Soderbergh rodou sem dar cavaco às melgas, imaginem, com um iPhone, e que se atira pelo meio às fraquezas do sistema de saúde americano e ainda se mete por caminhos #MeToo.

Chamando os bois pelos nomes, esta é uma daquelas experiências despachadas de que Soderbergh tanto gosta, um filme barato que o homem realizou, fotografou e montou sob os seus pseudónimos habituais. Mas é também a prova de que há qualquer coisa mais que encontramos no seu cinema quando ele brinca com o género, isto é, quando ele pega nas regras tradicionais de uma narrativa e as reinterpreta à sua maneira. Ao filmar com o iPhone, Soderbergh torna a imagem feia, suja, com ângulos bizarros e cores saturadas – e se somarmos essa lógica à abrasividade natural de Sawyer, que Foy torna numa heroína forte que não tem papas na língua e cuja assertividade e instinto de sobrevivência ameaça tudo o que a rodeia (porque é que as mulheres fortes metem tanto medo aos outros?) chega para instalar a dúvida naquilo que estamos a ver, vai ao cerne da própria identidade da personagem.

Claro que, depois, Unsane explora isso para criar uma montanha russa de voltas e reviravoltas típicas do filme de suspense, ao mesmo tempo que atira umas farpas à ganância e à hipocrisia que envenenam o sistema de saúde americano (não é que o hospital onde Sawyer vai procurar ajuda, afinal, está mais interessado no dinheiro do seguro do que no bem-estar dos pacientes?).

Nem seria um filme de Soderbergh se não falasse da sociedade reduzida a uma lógica de transacções financeiras (e o nosso vilão é, paradoxalmente, alguém que não está interessado nessa lógica…). Unsane é uma experiência que está mais próxima de filmes mais “pequenos” como Romance Perigoso, O Falcão Inglês ou Efeitos Secundários e que funciona como reverso complementar de Sorte à Logan (só que bem mais inspirado). De caminho, também explica que, quando quer fazer género, Soderbergh o faz como ninguém: Unsane chuta para canto praticamente toda a concorrência sem precisar de mais do que um iPhone e uma actriz. Porque é que isto está fora de concurso, enquanto banalidades esquecíveis como Figlia Mia, de Laura Bispuri (melodrama clássico de mães em luta por uma filha adoptiva que nem a energia de Alba Rohrwacher nem a dignidade de Valeria Golino salvam do déjà-vu) chegam à competição, é inexplicável.

Um festival também se faz dos acasos da programação e das descobertas que vão aparecendo, e nesse aspecto é significativo que Madeline’s Madeline, terceira longa da americana Josephine Decker (Forum), explore igualmente o tema da identidade e da instabilidade emocional no feminino de modo sensorial. Se o motor narrativo de Unsane reside em definir se a nossa heroína está, ou não, mentalmente instável e quanto do que estamos a ver é real ou ilusório, Madeline’s Madeline torna essa instabilidade no seu próprio centro. Madeline é uma miúda nova-iorquina de 16 anos que parece apenas revelar-se por inteiro no atelier de teatro improvisado que frequenta, onde as suas capacidades de representação e entrega emocional são consideradas extraordinárias. (À imagem, diga-se desde já, da espantosa Helena Howard, que a interpreta com uma energia e uma delicadeza que não deixam ninguém indiferente.)

Fora do palco, contudo, Madeline é uma panela de pressão em constante desequilíbrio com uma relação tensa com a mãe (interpretada por Miranda July), mais preocupada em protegê-la do que em dar-lhe a liberdade que uma adolescente procura – e Evangeline, a professora de teatro (Molly Parker), torna-se numa espécie de mãe –substituta, numa relação que acaba por se tornar muito mais complicada e perturbante do que parece. Contado de maneira directa e narrativa, Madeline’s Madeline poderia muito bem ser um filme de Ira Sachs sobre uma adolescente em procura de si mesmo. Mas Josephine Decker, que desenvolveu o filme em colaboração improvisada com o elenco, e a sua directora de fotografia, Ashley Connor, não a contam assim. Preferem mergulhar o espectador na cabeça de Madeline, contando a sua história como uma trip interior em constante movimento onde definir o que é sonho, projecção ou realidade se torna difuso, ao mesmo tempo física e surreal, onírica e corpórea.

Estamos certamente em modo novo-indie-americano, mas mais próximo de Barry Jenkins ou dos irmãos Safdie: sente-se em cada plano de Madeline’s Madeline a vontade de criar um mundo no qual instalar uma história, de pensar um filme como uma experiência cinematográfica própria e singular e não como algo formatado de acordo com uma lógica industrial. Tomara que a maior parte dos filmes (em Berlim ou no circuito comercial) conseguissem criar um mundo como Josephine Decker o faz.