Recolha de dados étnico-raciais sim, mas com quem, como e para quê?

Não abrimos mão do direito de ser envolvidos nesse processo em igualdade de circunstâncias na tomada de decisão.

Consideramos que a recolha de dados étnico-raciais, reivindicada há anos por pessoas e coletivos que têm combatido o racismo institucional, a discriminação racial e a xenofobia e recomendada por vários organismos internacionais, poderá ser um passo sem precedentes no combate ao racismo e às desigualdades étnico-raciais na sociedade portuguesa.

Se até há bem pouco tempo diferentes governos se haviam escudado no conveniente, mas falso, argumento da inconstitucionalidade, a resistência, crescente articulação e mobilização coletiva levaram a que o ano de 2017 se fechasse com o compromisso público do Estado português em avançar nesse sentido. No entanto, à medida que algumas opções tomadas vão sendo de conhecimento público, aumenta a nossa preocupação face à operacionalização desta decisão. Convictos de que este processo deve respeitar, desde o seu início, os princípios da representatividade étnico-racial e da participação, rejeitamos que se inicie de maneira torta, correndo o sério risco de não mais se endireitar. Reiteramos que não o fazer é não só uma incoerência política gritante, como também enfraquece o potencial transformador dessa recolha de dados.

A esse propósito interessa sublinhar a decisão unilateral do Governo em avançar com a proposta para os Censos 2021, consultando, sem concertação prévia com as comunidades racializadas, o Instituto Nacional de Estatística (INE). Assinale-se ainda a composição do entretanto criado Grupo de Trabalho Censos 2021 — Questões Étnico-Raciais, sob a coordenação do Alto-Comissariado para as Migrações (ACM) e Secretaria de Estado para a Cidadania e Igualdade, cuja primeira reunião decorre a 5 de fevereiro. Exatamente nesse dia perfazem-se três longos anos sobre as brutais agressões, com motivações racistas, praticadas por agentes da esquadra de Alfragide contra moradores da Cova da Moura, sem que até hoje haja um veredicto sobre o caso. A importância desta data não permite que possa ser reescrita como um momento de diálogo e concertação.

Na composição do referido grupo de trabalho não foram incluídos coletivos afro-descendentes ou ciganos. Esta forma de fazer política é sintomática de um entendimento da democracia que coloca as comunidades racializadas na posição de “beneficiárias” e não de agentes de mudança. Certamente que atribuímos ao Estado a responsabilidade e o dever de levar a cabo a recolha de dados e formular políticas públicas, mas não abrimos mão do direito de ser envolvidos e representados nesse processo em igualdade de circunstâncias na tomada de decisão.

Se esse envolvimento fosse efectivado, outras questões estratégicas, até ao momento ausentes da agenda do grupo de trabalho, estariam em cima da mesa: como envolver, de forma ampla, os sujeitos racializados e a população em geral por forma a que esta recolha seja por eles reconhecida e apropriada? Como garantir o bom uso dessa informação pela comunicação social? Como se articulam os dados dos Censos 2021 com outros inquéritos sectoriais, desde logo no domínio da Justiça e da Educação? Como se articula esse processo com a proposta de lançamento da Década Internacional dos Afro-descendentes feita em Outubro do ano passado pela Secretaria de Estado para a Cidadania e Igualdade, mas até agora sem sequência? Mas, sobretudo, que políticas estruturais de combate ao racismo e desigualdades étnico-raciais se prevê implementar articuladamente com a recolha de dados? Não é razoável esperar pelos resultados da recolha de dados para se começar finalmente a pensar numa agenda de políticas; antes, pelo contrário, essa agenda é que deveria conduzir o processo da recolha de dados.

Mas o ponto onde este processo é mais problemático é exatamente a inscrição na pasta das migrações. Por um lado, as desigualdades étnico-raciais tocam várias áreas de acção política — Educação, Justiça, Habitação, etc. —, transversalidade que remete para o foro da cidadania e igualdade, extravasando a competência restrita da política migratória. Por outro, só quem tem estado muito alheado do debate que vem acontecendo em Portugal é que ainda não interiorizou o caráter fundamental da distinção, inequívoca, entre políticas de migração e políticas de combate ao racismo e desigualdades étnico-raciais. Em setembro passado, o então ministro adjunto Eduardo Cabrita dizia: “Os afro-descendentes e ciganos estão em Portugal há séculos [...]. São tão portugueses como eu.”

Não podemos continuar a ser relegados para fora do corpo da nação. Essa é também a mensagem da Campanha por Outra Lei da Nacionalidade, em que temos lutado para que todos aqueles que nascem em Portugal tenham a nacionalidade portuguesa. Não somos apêndices da sociedade portuguesa, pelo que, da mesma forma, as políticas voltadas para a garantia do nosso pleno acesso à cidadania e igualdade também não o podem ser. A recolha de dados pode ser uma ferramenta ao serviço da igualdade étnico-racial, mas somente se esta for resultado da participação activa daqueles que não têm voz, nem pegada estatística.

 

Os autores escrevem segundo o novo Acordo Ortográfico

Coletivos e indivíduos signatários:

Afrolis – Associação Cultural
Associação Cavaleiros de São Brás
Consciência Negra
Fundo de Apoio Social de Cabo-Verdianos em Portugal (FASCP)
KUTUCA – Associação Juvenil do Bairro das Faceiras
Núcleo de Estudantes Africanos – Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (NEA-ISCSP)
Plataforma Gueto
SOS Racismo
Teatro Griot
We Love Carapinha
Alciony Silva
Alessandra Brito
Alexandra Santos
Ana Fernandes
Ana Rita Alves
Anabela Rodrigues
Apolo de Carvalho
Ariana Furtado
António Tonga
Beatriz Carvalho
Carla Fernandes
Carla Lima
Carla Moura
Carlos Dias
Carlos Graça
Cristina Roldão
Daniel Martinho
David Lima
Diógenes Parzianello
Eduardo Jaló
Ianick Insaly
Iolanda Évora
Joacine Katar Moreira
Joana Mouta
José de Pina
José Semedo
José Semedo Fernandes
Lúcia Lopes
Maíra Zenun
Mamadou Ba
Maria da Graça
Marlene Nobre
Marta Araújo
Matamba Joaquim
Mojana Vargas
Myriam Taylor
Nádia Lima
Nuno Dias
Otávio Raposo
Raquel Lima
Silvia Maeso
Sofia Peysonneau Nunes
Susana Djiba
Telma Gonçalves
Vítor Sanches

 

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