Björk com desejo de abraçar o mundo

Depois do luto pelo fim do amor a dois, eis um álbum que celebra a possibilidade do amor universal, numa obra que é também um grito de alerta optimista em nome de outros futuros possíveis. Eis Utopia, o novo e magnífico disco de Björk.

Foto

“Todos os meus álbuns começam como um espaço de utopia”, dizia ela há uns anos, explicitando que cada novo disco principia com qualquer coisa de imaginário, “mas passível de ser realizado”.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

“Todos os meus álbuns começam como um espaço de utopia”, dizia ela há uns anos, explicitando que cada novo disco principia com qualquer coisa de imaginário, “mas passível de ser realizado”.

Agora, ao nono álbum de originais de Björk, 52 anos acabados de fazer, é a própria ideia de utopia que está no centro de uma obra onde projecta uma espécie de ilha imaculada, imune à barbárie humana, ao mesmo tempo que evoca a construção de outros futuros que possam ser alternativas ao presente sociopolítico conservador.

É também uma obra mais virada para fora, como reacção a Vulnicura (2015), uma obra de luto, perda e catarse, um registo íntimo onde se detinha na separação do artista plástico americano Matthew Barney, com quem teve uma relação de dez anos da qual resultou uma filha. Quem viu o filme dele com participação e música dela (Drawing Restraint 9 de 2006) podia intuir ou projectar que, a acontecer uma desvinculação, poderia ser difícil.

Essa era uma obra inquietante, alquimista, onde um casal era às tantas envolto num fluido, começando a transfigurar-se, os corpos fundindo-se, turvando-se na natureza, sendo a própria natureza, num estranho ritual de osmose. Dizia ela na altura: “Ele é como um submarino, muito profundo, trabalhando num plano intelectual, eu sou o contrário, à superfície, uma romântica à antiga que vê tudo através do prisma das emoções.”

Foto

Na ficção, as duas fortes identidades tornavam-se numa só, condensando-se. Na vida separaram-se. O novo álbum ainda contém traços dessa fase, mas é outra coisa. Ao longo dos anos parece ter composto obras que ou eram muito introspectivas, como se tentasse compreender-se a si própria na relação com os outros, ou então exteriorizadas, com desejo de envolver ou abraçar o mundo.

Nos três primeiros álbuns (Debut de 1993, Post de 1995 e Homogenic de 1997) dedicava-se a atribuir novos formatos à canção pop, enquanto na banda-sonora Selmasongs (2000) e em Vespertine (2001) se afastava desses territórios mais externos, para desenvolver uma poesia digital doméstica, onde os organismos electrónicos surgiam como expressão dessa vontade de introspecção. Medúlla (2004) e a banda-sonora de Drawing Restraint 9 (2005) eram objectos estranhos, discos compulsivos de terra, músculo, sangue, carne e apenas voz. Não eram apenas introspectivos, eram internos. Era como se entrevíssemos os nervos, o corpo e as respirações ofegantes a partir da música.

O álbum Volta (2007) constituía, apesar de tudo, um retornar a formas mais reconhecíveis, enquanto Biophilia (2012) era mais uma obra total, agora centrada nas ligações entre ecologia, música e tecnologia. Em ambos estava em evidência a sua relação com a realidade à sua volta. Vulnicura era feito de ambientes serenos, quase solenes, e uma arquitectura sonora ambiental onde as orquestrações sobressaíam por entre climas digitalizados.

Era uma obra onde não receava expor-se, num álbum bem mais pessoal do que os três anteriores, com a música e as letras a reflectirem estados de alma e menos interpelações acerca da relação da espécie humana com ciência, natureza ou tecnologia, embora esses elementos nunca a abandonem verdadeiramente.

Os seus álbuns muitas vezes são apenas pontos de partida para outros desenvolvimentos artísticos. Numa exposição que tem vindo a correr mundo (Tóquio, Sydney, Montreal, Reiquiavique, Londres, Los Angeles), depois da grande retrospectiva do MoMA de Nova Iorque em 2015, é possível mais uma vez perceber isso.

Foto
Arca, com quem a islandesa tem uma invulgar afinidade, levou para este Utopia um dos seus colaboradores de sempre, o artista e videasta Jesse Kanda, com quem Björk desenvolveu toda a componente visual do álbum

Chama-se Björk Digital e a última paragem da mostra foi no Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona. Quem teve oportunidade de a ver mais uma vez constatou o gosto que tem em explorar os limites de diversas linguagens, misturando música, artes visuais e tecnologia. No lançamento da exposição, onde colaborou com o artista Andrew Thomas Huang, ela dizia que era também uma forma alternativa de dar a conhecer a sua música, numa altura em que a audição da mesma se banalizou, sem que exista concentração, condições para a experienciar e desejo de lhe descobrir outros significados para além do entretenimento.

Cada sessão de cerca de uma hora comportava apenas 25 pessoas, que eram acompanhadas de monitores, numa mostra dividida em seis partes. Nas salas existiam caixas de som e telas, proporcionando uma experiência imersiva e interactiva ao espectador, disposto com auscultadores e óculos de realidade virtual. Entrar na boca da própria Björk ou ajudá-la a costurar uma ferida aberta no peito eram algumas das inesperadas situações interactivas propostas que, de tão impactantes, chegavam a criar situações de má disposição entre os visitantes. Mas o mais surpreendente era a forma como a exposição, em grande parte baseada no álbum Vulnicura, passava de um ciclo de dor e sofrimento para um outro de renascimento e transcendência.

É como se aí já fosse entrevisto o novo ciclo que Utopia acaba por expor. Agora o amor volta a estar no centro dos acontecimentos. Mas já não é o amor romantizado a dois. É a possibilidade do amor universal ou espiritual pelo outro, pela natureza, pelos animais ou pelas coisas que a move. Em vez do medo dos outros, a possibilidade de nos abrirmos a eles com inteira liberdade.

Pontos de partida

Um dos pontos de partida foi a leitura extensiva acerca das diversas formas como as utopias são representadas, seja em estudos académicos, em novelas, em fábulas, em manuais políticos ou na ficção-científica, num círculo vasto onde tanto nos podemos deparar com ilhas onde apenas moram mulheres e crianças ou lugares mágicos onde a afecto é transmitido sem hesitações e existem plantas com formas harmoniosamente exóticas.

É previsível que muitos venham a ser cínicos com este universo idílico de Björk, com tanto de clássico como de invulgar. Existe uma assumida e excessiva romantização, trazida pelos sons delicados, pelos tons de pastel e pela inclusão de sons de campo.

E no entanto é uma combinação que funciona com mestria, num álbum que foi sendo trabalhado ao longo de dois anos, entre Nova Iorque e Reiquiavique, na Islândia, onde vive metade do ano, com um aliado muito importante ao seu lado, o músico e produtor Alexandro Ghersi, 28 anos, mais conhecido por Arca, natural da Venezuela mas a habitar em Londres. Os dois já haviam colaborado no anterior registo, e Arca acompanhara-a na digressão que se seguiu, mas desta feita, diz ela, existiu mesmo uma comunhão criativa. Houve trocas de emails, de música e de ideias das quais acabaria por resultar o som celestial de Utopia.

Foi a partir dessa troca, e da investigação anterior, que acabou por nascer a ideia de criar uma sonoridade onde a flauta, tocada por uma orquestra de 12 mulheres islandesas, haveria de se tornar no centro da sonoridade de muitas das canções, ajudando a criar uma atmosfera ondulante, espaçosa e possuída por leveza. Nada de novo. Björk já nos habituou a desenvolver projectos à volta de motivos precisos, sejam orquestrações, vozes ou electrónicas.

Foto

Uma boa porta de entrada para perceber o disco é ouvir uma recente colecção de temas que misturou para a publicação Mixmag, onde ouvimos minimalismos, música clássica, ambientalismos, sons concretos exóticos ou pop electrónica contemporânea, numa selecção que passa por Steve Reich, Russian Wind Instrument, Arca, Kelela ou Kelly Lee Owens.

Mas nem só de utopia, no sentido mais alegórico, se ocupa o disco. Durante a sua gestação intensificaram-se os desequilíbrios do mundo actual. Acentuaram-se desigualdades ou perigos ambientais e regressaram nacionalismos, gestos ditatoriais, estados musculados ou racismos, com acontecimentos como a eleição de Trump ou o "Brexit" a corporizarem um contexto onde as dinâmicas conservadoras parecem predominar.  

É também dessa conjuntura que o novo álbum se alimenta, com ela a acreditar que não basta ter uma atitude reactiva, mas que é necessário ser intencional, mostrando alternativas, e fazendo-o de forma confiante, rebatendo o medo como conduta de existência.

No fim de contas, Björk, acredita que, apesar de tudo, o mundo está a mudar. A utopia não é um acontecimento. É um processo, por vezes lento, mas que já está a acontecer. Quando discorre sobre velhas ideias patriarcais que têm vindo a ser postas em causas – no seguimento dos escândalos de assédio sexual de Harvey Weinstein, onde acabou por se envolver quando falou do ambiente das filmagens do filme Dancer In The Dark, de Lars Von Trier – é isso que reflecte.

Para ela o que está a acontecer não é propriamente uma surpresa. É qualquer coisa que surge num determinado momento, de uma certa forma, mas que acaba por representar desejos de mudança profundos que já estavam presentes há bastante tempo no subconsciente colectivo. Nesse sentido a utopia que ela desenha não é amanhã. Está a acontecer neste exacto momento.