Até os cowboys ficam tristes

O Leste europeu, os seu restos de História, serve de paisagem a Western. Cowboys narcisistas espraiam a sua melancolia negociando com o teatro do mundo. O filme da alemã Valeska Grisebach é uma das pérolas da competição do LEFFest., que hoje começa em Sintra e em Lisboa.

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Nesta história alguém pergunta: “O que sabes do mundo, como é o mundo?”

Algures na Bulgária, perto da fronteira com a Grécia, um grupo de operários alemães destacados com a sua maquinaria para um estaleiro move-se como se aprendesse a linguagem do mundo. “Como se diz olá a uma rapariga” numa remota aldeia búlgara?

Às primeiras luzes da manhã, o mundo oferece-se para ser negociado. Para que se percam — para que encontrem as narrativas de desejo, violência, preconceito, instinto de dominação, necessidade de consolo...

São corpos tensos, presos a solidão irremediável. Chegaram de fora, conquistam o espaço (hasteiam a bandeira alemã num território que há mais de sete décadas dominaram) e estão destinados a partir com a altivez incólume. Como nas histórias de cowboys. Por isso, aliás, é que se chama Western a terceira longa da berlinense Valeska Grisebach, que é um dos momentos da competição do Lisbon & Sintra Film Fest — de hoje até dia 26, o LEFFest mostrará em salas dos dois municípios cerca de 180 filmes. Western chega (Centro Cultural Olga Cadaval Auditório Jorge Sampaio, dom9ngo 19, às 15h15; Cinema Medeia Monumental Sala 1, domingo 19, às 21h30) com o recente Grande Prémio do Júri do Festival de Sevilha, que deu a principal distinção ao português A Fábrica de Nada, de Pedro Pinho.

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A Bulgária, onde se passa Western, é uma espécie de falsa região selvagem para os alemães, o lugar em que a aventura espera por eles

Olhe-se para o ex-legionário Meinhard: o exibicionismo deste herói de aventuras talvez mais imaginadas do que vividas é traído pela melancolia. Os olhos de Meinhard pedem que o agarrem. O ritmo do seu narcisismo, conquista que se afirma lentamente pelo filme adentro, começa por marcar o ritmo de Western — torna-o, aliás, palpável. Mas Meinhard vai pôr-se de acordo com a dança de uma aldeia búlgara. Não haverá duelo ao pôr do sol para o alemão, haverá baile ao lusco-fusco.

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Western eleva-se a partir de um território que não estabilizou nos ressentimentos e divisões — fantasmas da II Guerra, restos do comunismo, a inquietação da fronteira, o Leste europeu é um território de presenças sonâmbulas. Esse espaço de atordoamento em que todas as coisas adormecidas podem ser acordadas é, no filme de Valeska Grisebach (Mein Stern, 2001, Sehnsucht/ Longing, 2006), o teatro do mundo.

Quando começou a pensar no filme, a ideia de fazer uma espécie de western foi um ponto de partida?
Foram diferentes as ideias de partida, mas, sim, essa foi a mais importante: fazer um filme sobre o meu fascínio de infância pelo western. Sempre me senti muito atraída por este género masculino. Era fascinante voltar a ligar-me a ele. Perguntava-me: porque é que sou tocada por ele? Falei com uma amiga, que também é realizadora, perguntei-lhe isso, o que é que ela achava deste fascínio por um género cinematográfico cujas personagens principais são sempre homens. Ela respondeu-me que talvez eu estivesse a querer ser o herói, o cowboy, ou então a querer apaixonar-me pelo cowboy. Como um momento doce de atracção.

Quis estar perto desta masculinidade, destes heróis melancólicos que procuram a liberdade e independência, mas, ao mesmo tempo, procuram um lugar a que pertençam, que os faça regressar a casa. São caras que não mostram emoção, mas por trás das quais há uma série de emoções.

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Filha da Berlim ocidental, Valeska Griseback realiza com Western a terceira longa (depois de Mein Stern, em 2001, e Sehnsucht/Longing, em 2006) e um filme sobre um fascínio de infância pelos cowboys Martin Lagardere/Getty Images

O western talvez seja o género do homem branco, mas é um género que diz muito sobre a construção da sociedade, sobre a lei do mais forte, e sobre o qual se podem tirar conclusões sobre a empatia, ou falta de empatia, em relação aos mais fracos.

De cada vez que vejo o filme, imagino-a no meio desses homens. Imagino-a confortável. Sente-se conforto nas imagens...
Completamente. Senti uma grande ternura ao fazer o filme. Havia um grande respeito no ensemble. Quando escrevia o projecto, comecei a procurar pessoas, a fazer entrevistas para o casting. Andava na rua à procura de homens que eu imaginava num western ou em cima de um cavalo, a olhar para uma certa masculinidade pin up: por exemplo, os operários da construção civil com a sua linguagem corporal e os seus utensílios nos cintos. Fico sempre tocada quando abordo alguém na rua — “quer encontrar-se connosco para uma entrevista de casting?” — e as pessoas dizem que sim. Neste caso, logo que eu dizia que queria fazer um western, as respostas eram: “Sim, apareço”. Foi interessante porque as cartas ficaram logo na mesa: sou uma mulher e quero fazer um western. No início estava algo receosa, admito, pelo olhar deles, por eu ser mulher, sem saber se isso impediria que fôssemos sinceros uns com os outros. Ficou logo muito claro que isso nunca seria um problema.

Esse sentimento de conforto, a melancolia e a ternura são a história do filme. Que troca as voltas ao western. Porque, no western, o estrangeiro que chega à aldeia faz o seu serviço e depois parte sozinho e leva o seu desejo de solidão. Aqui temos um homem, Meinhard, que quer pertencer...
Interessante, isso. Na verdade, este homem quer estar sozinho, mas projecta, como sua fantasia, essa possibilidade de pertencer. No fundo, do que se trata no filme é de saber até onde é que esta personagem consegue chegar na proximidade com outra pessoa. Sempre disse a Meinhard [Meinhard Neumann, o intérprete de Meinhard]: “Estás numa terra estranha, ninguém te conhece, podes reinventar-te, podes contar tudo sobre ti, que foste legionário ou piloto, ou lá o que é, podes garantir a atenção das pessoas. Mas chegará o momento em que não podes esconder, tens de lidar com a violência e com a vergonha, e é nesse momento que as relações começam”. Isso é o momento decisivo no desejo de pertencer a um lugar.

Falando sobre Meinhard, a fisicalidade do actor, o ritmo do seu corpo: de cada vez que ele aparece no ecrã, contamina a paisagem e o ritmo interior do filme. Como se sublinhasse ou marcasse esse ritmo. Quando estava a escrever o argumento — e julgo saber que não escreve argumentos com uma forma convencional — que corpo tinha na cabeça? Era este já?
Sim e não. Quando apertámos a mão, eu e Meinhard, o argumento, que eu andava a escrever há anos e que tinha flutuado por diversas versões e formas, de alguma forma já o tinha em mente. Escrevi a pensar num homem que era muito elegante, bonito, que cria e desperta fantasias, uma delas a de que é um durão — mas que na verdade é também um homem pequeno, com medos e sentimentos oportunistas e que quando ri tem uma cara completamente diferente. Quando vi Meinhard pela primeira vez, há seis anos, foi um choque: ele tem um rosto icónico, de alguém saído de um velho western — foi bonito isso de dizer que ele contamina, porque de facto ele cria fantasias no contacto com aquilo que o rodeia. Ele estava na minha cabeça quando escrevi o filme, embora ele não pudesse, obviamente, nesse momento estar completamente na minha cabeça. Havia um argumento, uma ideia, e quando encontrei Meinhard houve uma sintonia: aquilo que ainda não estava claro na minha cabeça tornou-se claro com ele.

Há uma paisagem europeia, uma história social e política, há fronteiras, fantasmas da História que persistem. Qual a sua relação com este espaço, como acabou a andar por ali?
A viagem serviu-me para conhecer esta área. Sou uma filha de Berlim ocidental, nunca andei muito pelo Leste europeu. Tinha estado antes na Polónia, na República Checa, mas não é uma área do globo com a qual esteja familiarizada. Procurava uma situação que me permitisse contar as coisas que queria contar e questionar, e quando se apresentou esta ideia de alemães a viajarem com as suas máquinas e o seu conhecimento para outro lugar, senti que era o momento de viajar pelo Leste. Para contar, por exemplo, que na Bulgária se sente a Europa de forma completamente diferente da forma como se sente na Alemanha. A primeira versão do argumento era escrever sobre a Bulgária sem ter estado lá, uma espécie de efeito Karl May [1842 –1912, autor de romances de aventura em que ficcionou o Oeste americano]. E depois viajei, pela Bulgária, pela Roménia, durante dois anos. É importante confrontar a ficção com a realidade. Por isso fazer o filme foi uma forma de não perder o contacto com a realidade, de garantir que se tratava de um trabalho de colaboração com os outros.

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Na Bulgária, estava sempre atraída pelas fronteiras, questão sempre cheia de subtextos de separação e de desejo de outro país, de outro lugar. Por outro lado, a Bulgária é uma espécie de falsa região selvagem para os alemães, o lugar em que a aventura espera por eles. Viajei pela Bulgária, sabia que a Alemanha e a Bulgária tinham sido parceiras durante a II Guerra Mundial, e nos primeiros encontros sentia-se uma espécie de respeito oficial pelos alemães — que eram muitos fortes, que têm uma história terrível, que perderam a guerra, mas que são outra vez fortes, e que podem resolver os problemas dos outros. Isso, que se ouvia nas ruas e nas praças das aldeias, foi muito estranho para mim. Mas era interessante para a história, porque é uma espécie de respeito de verniz a cobrir os encontros entre alemães e búlgaros, que até partilham uma história do comunismo.

Esse movimento para chegar ao outro, coberto por esse verniz de respeito, como diz, mas que esconde ressentimentos, histórias antigas, é o retrato do movimento de uma equipa de rodagem em território estranho?
Foi uma experiência forte, de verdadeira co-produção. Mas de facto eu estava a pensar sempre nessa dualidade, e ela viajou sempre connosco. Sim, houve paralelismos entre o filme e a sua rodagem.

Se nos elevarmos dessa viagem pela história e pela política, alcançamos um grupo de homens a aprender as coisas do mundo. De forma essencial, com uma luz que, em muitos planos, é a luz das manhãs que começam. Algumas cenas do filme parecem ser sobre o começo do mundo.
É bonito isso. Sim, é uma luz sonâmbula, uma luz de sonho, quando a noite muda para o dia.

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E na aprendizagem que os corpos fazem, o alemão Meinhard acaba a tentar encontrar o seu ritmo junto de uma aldeia búlgara, a estar com os outros. Viu westerns?
Vi muitos.

De Anthony Mann?
Sim, Winchester 73 (1950) foi muito importante. Assim como The Gunfighter (1950), de Henry King. No caso de Anthony Mann, interessavam-me as personagens que James Stewart interpretou, que em alguns casos eram agricultores, tipos normais, que desenvolveram sentimentos de vingança. Em Winchester 73 há a figura do cobarde, que foge quando os índios levam a namorada, e depois tem de lidar com a vergonha e a vingança. E há Lord Jim, de James Conrad, esse tipo grande e louro com sonhos de aventura e bravura, e que falha. Para mim, para Meinhard, foi sempre interessante esse contraste entre o ideal do que poderíamos ser e a realidade muito concreta, muito colada ao chão.

Sei que não deu o argumento a ler aos actores. Porquê?
Trabalho no argumento às vezes na véspera de filmar a cena. Há o argumento que está escrito, mas estou sempre a voltar a ele, a falar sobre ele, a querer que falemos sobre ele. Gosto muito desse momento de relembrar, que não passa pela obrigação dos actores de decorar diálogos, mas em que voltamos a falar da situação. Isso cria um sentimento diferente. Falo com eles, explico a situação, a coreografia da cena, do que estão a fazer, digo qual é o diálogo, mas quando ele sai deles, da boca deles, é uma coisa diferente do que se apenas tivessem decorado. É um processo criativo comum.

No meu filme anterior, Longing, que foi há 11 anos, ensaiei demasiado, e tive a sensação, que acontece a muitos realizadores, que na rodagem estava à procura de uma coisa que já aconteceu. Por isso desta vez tentei criar uma possibilidade de frescura para os actores.

Eles sabem tudo do argumento, sabem o que vai acontecer. Isso para mim é importante, que não haja segredos sobre a cena e sobre a história. Mas Meinhard, por exemplo, pedia para não saber muito sobre o filme, queria lidar com a frescura do momento. Outros actores queriam uma abordagem mais psicológica, queriam saber mais para se prepararem. Meinhard era uma espécie de dançarino. Durante anos trabalhou num Luna Park, muitas raparigas choraram por ele, tinha uma rapariga em cada cidade. Sabe muito bem de poses, como interagir com cada pessoa diferente.