Filmes para descobrir o mundo em que vivemos

A competição 2017 do LEFFEST “esconde” pérolas que merecem toda a atenção que lhes quisermos dar. Cocote, Closeness, A Ciambra, La Libertad del Diablo e muitos mais: filmes para descobrir sobre o mundo em que vivemos.

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A Liberdade do Diabo: vítimas e verdugos, inocentes e criminosos falam do que é matar, ver morrer, encontrar mortos ou nunca mais ver os que amamos

Assumindo o cinismo (admissivelmente, uma saída fácil para estas coisas), imaginemos que pedíamos a um qualquer algoritmo informático "arranja-me aí uma dúzia de filmes para uma competição de festival". Apostamos que o resultado não sairia muito longe do que está este ano na competição do Lisbon & Sintra Film Festival (LEFFEST), que foi buscar metade dos seus filmes a Cannes (dois filmes da Quinzena, três de Un Certain Regard, um título da competição oficial e outro fora de concurso), com paragens em Locarno (um título de cada um das três competições) e Berlim (dois títulos mostrados fora de concurso).

A verdade é que a secção competitiva do festival que Paulo Branco iniciou como European Film Festival em 2007 andou ao longo dos últimos dez anos a oscilar entre identidades antes de se instalar na opção generalista que lhe cai melhor. Afinal, Berlim, Cannes e Veneza também têm competições muitas vezes generalistas, mas o seu estatuto de primeira categoria permite-lhes ter direito de primeira opção no circuito e ditar o que merecerá atenção ao longo dos meses seguintes. Todos os festivais de segunda categoria fazem fila atrás destes, e o LEFFEST não escapa a essa posição, assumindo-se nos últimos anos como montra abrangente de cinema global.

Abandonemos, contudo, o cinismo. Porque a secção competitiva do LEFFEST em 2017 é um honroso exemplo do que pode ser, hoje, a competição de um festival de “classe média”. E há um punhado de grandes filmes que merecem ser vistos, agora ou mais tarde quando chegarem às nossas salas (dos 13 escalados, apenas três não têm neste momento distribuição garantida). Entre eles, estão alguns dos filmes mais falados do circuito de festivais 2017 – Western da alemã Valeska Grisebach, Cocote do dominicano Nelson Arias, O Dia Seguinte do sul-coreano Hong Sang-Soo (estreia a 7 de Dezembro), Chama-me pelo Meu Nome do italiano Luca Guadagnino (estreia a 18 de Janeiro), Lucky do americano John Carroll Lynch (estreia a 7 de Dezembro). A presença portuguesa é assegurada por Verão Danado de Pedro Cabeleira, que recebeu uma menção especial em Locarno e chegará às salas a 30 de Novembro. Por onde se quiser ver, é uma escolha de filmes muito diversa mas que se enquadra no momento de convulsões sociais em que vivemos, e que tem a capacidade de pôr obras em diálogo umas com as outras.

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A Ciambra: a dramática entrada na idade adulta de Pio, 14 anos, a crescer num bairro de lata

Peguemos por exemplo em A Liberdade do Diabo (em sala a 14 de Dezembro; Monumental, quinta 23 às 19h; Olga Cadaval, sexta 24 às 15h), único documentário a concurso, onde o mexicano Everardo González aborda a violência no seu país natal na primeira pessoa. Convoca vítimas e verdugos, inocentes e criminosos, mães, irmãos, filhas, militares, polícias e assassinos, para falarem, frente à câmara de María Secco, do que é matar, ver morrer, encontrar mortos ou nunca mais ver aqueles que amamos.

Relacionamos estes testemunhos com a violência dos cartéis de droga (fala-se às tantas de Ciudad Juárez), mas González nunca nos diz quem são, o que aconteceu ou onde. Deixa estas pessoas falar anonimamente para a câmara, com os rostos cobertos por uma máscara cor de pele, que remete para as máscaras de lucha libre ou para as gazes e compressas das cirurgias plásticas, e nos recorda da abstracção das confissões registadas por Avi Mograbi em Z32 (2008) e por Francesco Rosi em El Sicario Room 164 (2010). Apenas vemos olhos, bocas, posturas – e A Liberdade do Diabo ganha a sua força desse anonimato, e da perturbação que ele cria no espectador, colocando-nos no lugar desta gente que mata para não morrer ou que morre sem morrer.

A claustrofobia destes depoimentos rodados inteiramente em interiores anónimos, pontuados por planos do mundo que gira lá fora normalmente, ecoa na fuga para a frente e na escuridão apertada de Closeness (Monumental, segunda 20 às 19h15; Olga Cadaval, quinta 23 às 17h). É um filme pouco recomendável às almas sensíveis, onde uma jovem procura escapar ao colete-de-forças social que o seu estatuto – mulher, minoria, judia, numa das repúblicas do Cáucaso em plena turbulência dos anos 1990 - lhe impõe. E a sensação de impunidade que percorre todo o desespero do filme de González é reencontrada na tensão dilatada e subjacente de Cocote (Olga Cadaval, quinta 23 às 19h15; Monumental, sexta 24 às 19h). Um jardineiro profundamente religioso de Santo Domingo regressa à sua aldeia natal para enterrar o pai, vítima de um feudo local com um polícia corrupto, e dá por si apanhado numa luta de pequenos poderes que levanta questões de fé e crenças, tradições e estruturas.

O russo Kantemir Balagov, aluno e protegido de Aleksandr Sokurov, cita Bresson e os Dardenne como influências em Closeness, inspirado por um relato que lhe foi feito por um familiar, mas o seu filme é feito de outro tecido, mais urgente, mais interessado em pôr-nos junto com as personagens do que a observá-las de fora. (É aí que Balagov dá o escorregão que podia perder o filme, com imagens de arquivo de uma violência insustentável que vão provar ser um limite para muitos espectadores. E é também essa urgência em partilhar o quotidiano, a câmara literalmente à flor da pele, que nos remete para a fuga para a frente e para as longas noites de Verão Danado.)

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Closeness: uma sova no espectador, um filme sobre um padrão atávico de exploração e submissão

Closeness não é um murro no estômago, é uma sova monumental ao espectador dada por duas senhoras actrizes – Darya Zhovner, a jovem que percebe que a tragédia que caiu sobre a sua família é apenas a mais recente manifestação de um padrão atávico de exploração e submissão; e Olga Dragunova, a mãe que parece ter internalizado o sistema social em que vive e é capaz de sacrificar a própria família para manter essa estrutura. São gente de carne e osso, e é por serem gente que Closeness não nos larga, nem nós o filme.

É também gente de carne e osso que encontramos em Cocote (que, com Closeness e A Man of Integrity, do veterano iraniano Mohammed Rasoulof, completa o lote de filmes sem distribuição entre nós): sobretudo Alberto, o jardineiro cujo conflito espiritual entre perdoar e castigar, esquecer e vingar, é encenado de modo telúrico e encantatório. O dominicano Nelson Arias alterna entre janelas de écrã de diferentes tamanhos, cor e preto-e-branco, 16mm e digital, para contar uma narrativa ficcional contaminada pelo documentário etnográfico, com longas sequências de registo de tradições místicas rurais. É um enorme caldeirão de cinema moderno e estético, que alguns críticos compararam (compreensivelmente mesmo que com algum exagero) a Glauber Rocha, mas é também um olhar vivo e atento sobre uma comunidade viva.

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Cocote: o conflito espiritual entre perdoar e castigar, esquecer e vingar, encenado de modo telúrico e encantatório

Há muitas comunidades vivas nesta competição. Podíamos falar de Western (ver entrevista com Valeska Grisebach), e de Lucky, mas vamos esperar que cheguem às salas. Para o efeito vamos falar da comunidade Roma italiana que é o cenário de A Ciambra (Olga Cadaval, quarta 22 às 18h; Monumental, sexta 24 às 21h30), que conta a dramática entrada na idade adulta de Pio, 14 anos, a crescer num bairro de lata e compreendendo (como Ila em Closeness) que essa entrada implica escolhas, e escolhas difíceis. O italo-americano Jonas Carpignano filma essa passagem num movimento de uma graça calorosa, que evoca os grandes momentos da comédia italiana (com destaque para os Feios, Porcos e Maus de Scola, 1976) antes de se colocar mais do lado do Rosselini de Roma Cidade Aberta (1945).

Carpignano, protegido de Martin Scorsese e parte da actual geração de indies americanos, está no entanto mais próximo de colegas que, como ele, trabalham nas fronteiras da ficção com comunidades específicas – Jean-Christophe Hué com os ciganos yéniche franceses, ou os nómadas circenses que a dupla italo-austríaca formada por Tizza Covi e Rainer Frimmel tem acompanhado. Carpignano já tinha rodado com Pio e com a sua família, não-profissionais e verdadeiros residentes de Gioia Tauro, numa curta de 2014 que já se chamava A Ciambra e na sua longa de estreia, Mediterranea (2015), da qual reencontramos aqui personagens e locais. E o novo filme é (tal como Cocote ou Closeness) uma ficção inspirada por situações reais, nascido (como o cinema de Covi e Frimmel) da própria vida daqueles que o interpretam.

É também um filme que dialoga por oposição com Chama-me pelo Meu Nome (Olga Cadaval, terça 21 às 21h; Monumental, quarta 22 às 21h45). O italiano Luca Guadagnino “redime-se” aqui da má recepção a Mergulho Profundo (2015) com uma outra história de entrada na idade adulta em Itália, só que esta cosmopolita e sensual, nos perfeitos antípodas da dureza do quotidiano de Pio. Adaptando com James Ivory (Quarto com Vista sobre a Cidade) um romance de André Aciman, Guadagnino encena como uma pastoral idílica o primeiro amor e a descoberta da sexualidade. Coloca o filme nos ombros de Timothée Chalamet tal como Carpignano colocou A Ciambra na presença de Pio Amato, e encerra a sua “trilogia do desejo”, iniciada em 2009 com Eu Sou o Amor, de modo quase celebratório, e deixando entrar alguma luz numa competição com muito de sombrio.

Por onde se quiser ver, contudo, o tal algoritmo teria aqui feito um bom trabalho. Há óptimos filmes a concurso no LEFFEST. Assim o público os saiba receber com a assistência que eles merecem.

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