Lições de flamenco, para aplaudir e repetir

A décima edição do Festival Flamenco Heritage teve dois momentos portentosos, numa Aula Magna reconquistada para o género. Évora, dia 11, e Madrid, dia 15, ainda têm uma boa surpresa pela frente.

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Em duas noites consecutivas, 3 e 4 de Novembro, a Aula Magna voltou a receber o Festival Flamenco de Lisboa, agora rebaptizado Festival Flamenco Heritage porque o seu âmbito já extravasa as fronteiras da capital, indo até Vila do Conde, Aveiro, Évora, Campo Maior, Lagoa e terminando em Madrid, dia 15. E se no passado espectáculos houve que ficaram para sempre na memória (Enrique Morente, Miguel Poveda, Miguel de Tena, Carmen Linares ou Amós Lora), desta vez o “duende” também se fez ali sentir de forma vibrante, sobretudo com os bailaores El Yiyo e El Tete e com Gerardo Núñez. Não só eles, mas todos os que com eles tocaram, de forma calorosa, em noites que foram de emoção e festa.

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Em duas noites consecutivas, 3 e 4 de Novembro, a Aula Magna voltou a receber o Festival Flamenco de Lisboa, agora rebaptizado Festival Flamenco Heritage porque o seu âmbito já extravasa as fronteiras da capital, indo até Vila do Conde, Aveiro, Évora, Campo Maior, Lagoa e terminando em Madrid, dia 15. E se no passado espectáculos houve que ficaram para sempre na memória (Enrique Morente, Miguel Poveda, Miguel de Tena, Carmen Linares ou Amós Lora), desta vez o “duende” também se fez ali sentir de forma vibrante, sobretudo com os bailaores El Yiyo e El Tete e com Gerardo Núñez. Não só eles, mas todos os que com eles tocaram, de forma calorosa, em noites que foram de emoção e festa.

Um ponto que convém assinalar é que nesta mostra estiveram três formas distintas de sentir o flamenco em três momentos que se complementaram: Extremadura, Catalunha e Andaluzia. Pela primeira, na noite de sexta-feira 3 e num espectáculo chamado Raíces – Extremadura Flamenca, estiveram os guitarristas Miguel Vargas (considerado o patriarca do toque estremenho) e Juan Vargas (seu filho), os cantaores La Kaíta e Alejandro Vega e o veterano bailaor “El Peregrino”, hoje com 75 anos. Teve alguns momentos vibrantes, mas foi, no geral, morno. Não se sentiu no ar a necessária química, como se, sendo todos eles mais que experimentados, ali estivessem ainda à procura do momento certo para arrancar o público das cadeiras em aplausos. Até a exibição de “El Peregrino”, na rábula de entrar de bengala como um ancião para, livrando-se dela, sapatear como um jovem, acabou por parecer algo “folclórica”, o que decerto não estaria nos seus planos. La Kaíta, de notável extensão vocal, não se usou dela como se esperaria, e até quando sem microfone cantou à boca de cena (incorrendo num erro de palmatória, ao virar-se de costas para o público, já que a voz praticamente desapareceu) isso não teve o impacto que teria com outro empenho e cálculo. Sob a batuta dos Vargas (cuja família Lisboa já aplaudira) e dos seus tangos e jaleos, assim começou a noite. Satisfatório, mas pouco inspirado.

Já o que se seguiu foi excelente. Os jovens bailaores El Yiyo (Miguel Fernández) e El Tete (Ricardo Fernández) mostraram que o título Flamenco de Sangre não era metafórico, era bem real. A destreza, elegância e força dos seus passos de baile são arrebatadoras, com destaque para o irmão mais velho, El Yiyo, de 20 anos (El Tete, de 16, segue-lhe as pisadas já com visível competência). Mas é no conjunto que Flamenco de Sangre deve ser entendido. E aqui entra extraordinária capacidade dos músicos, que aos nossos ouvidos soaram como um bloco harmonioso e expressivo, soma dos valores audíveis na prestação de cada um: Miguel Angel Martin, José Sargero Alunda, Manuel Lopez Creo (voz, palmas), Justo Fernández Heredia (guitarra) e Jacobo Cristobal Sánchez (percussões). Se na Extremadura o cante se faz a golpe, com lances que ampliam e moldam o grito a compasso, na Catalunha ele soa como se as vozes desenvolvessem os seus discursos tonais em teias contínuas e envolventes. E isso “casa”, como se viu, de forma perfeita com o baile que El Yiyo e El Tete apresentaram. Sem excessos espúrios, antes fazendo valer toda a sua garra flamenca, foi um espectáculo deveras memorável o que nos trouxe, em som e baile, o bloco catalão que fechou a primeira noite do Festival Flamenco Heritage.

No dia seguinte, sábado, foi a vez da Andaluzia. E os que pensaram que já tinham assistido, na véspera, ao momento mais alto destes dias, tiveram a grata surpresa de ver algo ainda melhor: o espectáculo Entre Dos Águas – A Paco de Lucía, agora com uma “equipa” andaluza. Nele, Gerardo Núñez (guitarra), Carmen Cortés (baile), Antonio Carbonell (cante), Cepillo (percussão) e Pablo Martin Caminero (contrabaixo) foram, juntos e à vez, extraordinários. Sem réstias de exibicionismo, o génio de Gerardo revelou-se na forma como ia fazendo soar a guitarra flamenca, lírica, vigorosa, ardente. Carmen, no baile, teve momentos de excelência (no primor de certos passos, na expressividade e contenção dos gestos) e Antonio Carbonell mostrou que é possível cantar sem microfone (como fez La Kaíta) mas fazer-se ouvir, mediante um saber e uma técnica que o dão como grande senhor do cante. Pablo Martin Caminero, no contrabaixo (que também tocou com arco), foi outra figura, um músico que provou a sua excelência sem fazer alarde dela. E Cepillo, no cajón (a dada altura, foi também percutir a caixa do contrabaixo de Pablo, enquanto este tocava), soube completar o leque de forma superlativa.

Mas o Festival anunciava ainda convidados especiais, Helder Moutinho, fadista, e Pedro de Castro, na guitarra portuguesa. Anunciou-os bem, mas cometeu um erro: colocou-os a frio no palco, logo ao início, a cantar e tocar fado sem qualquer anúncio prévio. Ou seja: os convidados acabaram por, sem que isso estivesse sequer na cabeça do público (provavelmente nem na dos próprios músicos), fazer uma espécie de mini-primeira parte do espectáculo principal. Felizmente, correu bem. Com André Ramos (viola de fado) e Frederico Gato (viola baixo) ao lado de Pedro de Castro, Helder acabou por cantar três fados: Vielas de Alfama, Loucura e O que sobrou da Mouraria.

Voltariam mais tarde, para um jogo fado-flamenco que funcionou perfeitamente porque cada qual manteve o seu papel (Carbonell a elevar a voz, Helder a mantê-la em tons baixos) e porque o palo escolhido mostrou ter parentescos naturais com o fado. Foi assim que ouvimos Resposta fácil (onde Carmen ensaiou uns passos para o fado, naquele que foi o seu único gesto dispensável) e, mais tarde, nos encores, Tenho uma onda no mar e Trago na voz o vento. Aplaudidos de pé, efusivamente, os músicos vieram uma e outra vez ao palco. Cumpria-se assim, com um espectáculo verdadeiramente admirável, o Festival Flamenco Heritage.

Agora, Entre Dos Águas – A Paco de Lucía ainda tem pela frente mais dois palcos: o do Teatro Garcia de Resende, em Évora, no dia 11 (21h30); e o Teatro Nuevo Apolo, em Madrid, no dia 15 (22h).