Há uma crise humanitária esquecida que não acaba com o fim do cerco a Marawi

As tropas filipinas acabam de “libertar” a cidade de Marawi, desde Maio nas mãos de um grupo jihadista inspirado no Daesh. Os seus 360 mil habitantes fugiram e estão agora dispersos em dezenas de campos de acolhimento, onde a precariedade é a norma.

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Assim que se apercebeu da primeira pausa nos tiros e explosões, depois de um dia inteiro passado no chão, escondida atrás da mobília e a rezar para que nenhuma das balas perdidas que rasavam as janelas e paredes da casa atingissem alguém lá dentro, Saliha, a matriarca da família Pumbaya, deu a ordem: vamos fugir. De gatas e de cócoras, a rastejar pelas ruas destruídas pelo combate de forma a não levantar suspeitas, mãe, filhos, filhas, genros e noras e várias crianças deixaram para trás a cidade de Marawi, tomada de surpresa a 23 de Maio pelo grupo islamista radical Maute, a última organização terrorista a germinar na instável ilha de Mindanau, no Sul do arquipélago das Filipinas.

Nessa manhã, os militantes do Maute andaram a bater às portas das casas com avisos para os habitantes “saírem já, enquanto ainda é tempo”. Acantonados na cidade, os rebeldes esperavam a investida do Exército filipino, que não tardou. Por alguma razão, ninguém bateu à porta de Saliha, de 50 anos, proprietária de um pequeno restaurante que só tarde de mais se deu conta do movimento frenético de vizinhos a abandonar a cidade em pânico. “Alguns estão mortos, outros estarão por aí, refugiados com familiares ou em campos de desalojados”, lembra.

Nessa altura, o tiroteio já era tão intenso que Sahila não arriscou sair. “Começámos por ouvir tiroteio. Logo vieram os helicópteros e logo depois havia explosões. Bombas e tiros, tudo ao mesmo tempo, como um fogo-de-artifício que nunca mais acaba”, compara. Eram três da madrugada quando o barulho da guerra finalmente se calou e a matriarca encarreirou toda a família para a porta — consciente do risco que corriam ao lançar-se na escuridão, sabedora de que não tinham outra alternativa. “Não seríamos capazes de nos proteger das balas perdidas. Íamos ficar sem água, sem comida. Íamos morrer”, acredita.

Em poucas horas, os combatentes islamistas operaram uma revolução em Marawi. Assumiram posições em todos os pontos estratégicos, incluindo a ponte de Banggolo, que lhes permitia controlar as entradas e saídas na cidade. Atacaram o quartel militar e saquearam o respectivo paiol. Abriram as portas da prisão. Ocuparam o hospital Amai Pakpak. Pegaram fogo ao Dansalan College, uma universidade gerida por protestantes, à catedral católica de Santa Maria e deixaram uma mesquita xiita em cinzas. Queimaram casas e automóveis e fizeram centenas de reféns. Conquistaram a câmara municipal e plantaram a bandeira negra do Daesh bem alto para todos saberem de onde vinha a nova autoridade na cidade de 360 mil habitantes, a maioria muçulmanos.

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A família Pumbaya conseguiu fugir, pelas montanhas, até chegar à antiga escola primária de Bubong, onde estão mais 67 famílias. Entretanto nasceu mais um bebé

Os membros da família Pumbaya (mãe, oito filhas e filhos e 12 netos) vivem agora numa das salas de aula da escola primária de Bubong, no município de Sagiaran que fica a uns escassos seis quilómetros de Marawi. Ali ouvem-se os pássaros, as galinhas, a água a correr e os risos das crianças que brincam no caminho para as aulas. Também se ouvem as explosões que continuam a acontecer poucos minutos depois de se ver passar os helicópteros das Forças Armadas Filipinas, que esta semana anunciaram o fim das operações de combate e a vitória sobre os terroristas depois de cinco meses de cerco. “Uma vitória de Pirro”, consideraram alguns comentadores, lamentando o elevado preço do sucesso militar, após meses de batalha. O avanço do Exército foi rua a rua, casa a casa: a “limpeza” de um quarteirão podia exigir uma a duas semanas de combate.

A escola de Bubong foi tomada pelos residentes em fuga, que instintivamente reagiram à chegada dos islamistas repetindo os passos que aprenderam a seguir de cada vez que soa um alerta de catástrofe natural: deixar tudo para trás, permanecer nas vias conhecidas e seguras e procurar abrigo nas mesquitas, nas escolas e nos edifícios comunitários que são de construção sólida e podem funcionar como centros de emergência. A família de Saliha é uma das 67 que ocuparam o pequeno complexo de salas de aulas alinhadas em torno de um pátio quadrado. Demoraram sete dias para aqui chegar: em vez de passar a ponte à saída de Marawi, foram obrigados a escapar pela montanha e a percorrer aldeia atrás de aldeia, num itinerário que desenhou um triângulo, do leste para norte e oeste da cidade e que acabou mais a sul, quase no ponto de partida.

“Saímos de Marawi a rastejar, com medo de que nos atingissem. Como a ponte para a estrada já tinha sido capturada pelo Daesh, seguimos pela montanha para Kapai, foram sete horas a caminhar. Parávamos nas aldeias, as pessoas deixavam-nos dormir nas suas casas e comíamos milho e outras raízes. Demorámos quatro dias a pé a chegar a Tagoloan. Dali foi mais um dia até Baloi, onde encontrámos o primeiro centro de deslocados. Mas nesse centro já não tinham comida, por isso continuámos à procura de um lugar para ficar”, recorda a filha de Sahila, Raihanna, de 21 anos, que dois meses depois da fuga deu à luz uma menina prematura que não sobreviveu.

Não há vidros nas janelas, nem móveis nas antigas salas de aula da escola de Bubong: o espaço onde antes houve mesas, carteiras e presumivelmente quadros de ardósia nas paredes é agora dividido por painéis de contraplacado de madeira ou cortinas de plástico, de forma a que cada família possa ter um mínimo de privacidade. No cubículo que coube a Saliha, na sala 4, está uma pequena mesa onde repousa uma garrafa térmica e uma panela de arroz com (poucos) legumes. Há duas cadeiras, uma de madeira e outra de plástico, e um único colchão no chão, que serve de cama para toda a família e agora de berço para o novo neto, nascido há sete dias. O menino é, para já, o filho de Fahad. Terá nome quando a família reunir os 10 mil pesos filipinos (160 euros) que o imã pede pela cerimónia. A filha de Saliha chora porque o bebé vai continuar sem nome: não tem dinheiro para pagar.

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O gigantesco telhado de chapa metálica do ringue desportivo de Saguiaran foi transformado em campo de acolhimento para mais de mil pessoas (373 famílias). Chamam-lhe “People’s Hall”, a praça do povo

Na praça do povo falta tudo

“Falta-nos água, falta-nos comida, falta-nos roupa, faltam-nos camas e cobertores, falta-nos sabão, pasta de dentes, faltam-nos leite em pó e fraldas para as crianças”, reclama Nina Malawa, que nasceu em Marawi a 25 de Agosto de 1957 e desde o fim de Maio vive debaixo do gigantesco telhado de chapa metálica do ringue desportivo de Saguiaran, transformado em campo de acolhimento para mais de mil pessoas (373 famílias). Chamam-lhe “People’s Hall”, a praça do povo, e é um labirinto erguido com muros de cartão, precário, insalubre e onde é impossível escapar do torpor provocado pelo calor húmido e sufocante.

Tal como em Bubong, o espaço foi ocupado na fuga caótica do ataque dos terroristas a Marawi. “Ninguém nos disse para vir para aqui, mas quando chegámos a municipalidade acolheu-nos, disse que éramos bem-vindos e podíamos ficar”, conta Jamel Hali, informalmente nomeado um dos quatro “líderes” do campo onde falta tudo. “No mês de Setembro só nos entregaram três rações”, queixa-se Nina, que produz o seu cartão oficial de desalojada com os três carimbos correspondentes. As rações são entregues por família, iguais para todos. “Não interessa quantos são ou se são novos ou velhos”, completa.

A tensão é palpável. Depois de cinco meses de convívio forçado, sem acesso a informação fidedigna ou qualquer ideia do que se está a passar no campo de batalha, os seus ocupantes já ultrapassaram a fase do choque e do medo e vêem-se agora tomados por sentimentos de angústia, raiva e desespero. É a lentidão dos esforços humanitários e a ajuda de emergência que não satisfaz; é a ausência de rendimento e de uma perspectiva de trabalho que lhes permita aspirar a um futuro menos carecido; é a hipótese de retaliação dos grupos extremistas perseguidos pelo Exército e a certeza de que o ciclo de violência não acabará com o fim de mais esta crise.

Na “cidade das tendas” de Pantar, a dez quilómetros, as mulheres da família Aragasi repetem uma a uma as queixas ouvidas em Saguiaran. “Perdemos todos os nossos rendimentos e agora estamos totalmente dependentes do apoio humanitário”, diz Cobari. “Sardinhas, rolo de carne enlatada e arroz. Estamos fartos de comer a mesma coisa todos os dias, precisamos de outra comida”, pede Norhaida, uma comerciante de 28 anos que com o marido (carpinteiro) e os três filhos ocupa uma das 494 tendas alinhadas em filas paralelas. São feitas de uma lona grossa, que aquece como uma sauna ao sol e inunda com a chuva — mas comparadas com as divisões ad hoc feitas com trapos no ringue do People’s Hall, são um luxo. “Foi difícil chegar aqui, deixámos a moto para trás e caminhámos à chuva horas, completamente ensopados, mas era uma fuga para a sobrevivência. Primeiro fomos para uma madrassa, mas depois avisaram que tínhamos de sair dali e transferiram-nos para aqui, tivemos sorte”, admite.

Os Aragasi só deixaram Marawi no dia 24 de Maio. “Vimos os combates com os nossos próprios olhos”, diz Norhaida, que nunca pensou encontrar jihadistas no centro da cidade. “Nós andávamos sempre vigilantes, sabíamos que um dia podiam chegar os islamistas. Mas não esperávamos que fosse o Daesh.”

Embora a maior parte dos desalojados se digam surpreendidos com o ataque-surpresa dos militantes aliados ao Daesh e jurem não saber quem eles são e de onde vieram, a verdade é que a semente da radicalização há muito fora plantada em Marawi. Discretamente, há quem confesse ter percebido sinais inquietantes com a chegada de estrangeiros da Malásia, da Indonésia e de Singapura. Sem elaborar, alguns admitem que umas semanas antes do início do cerco já andavam a circular rumores e sms de que os Maute e outros jihadistas estariam a preparar um ataque. Movimentos suspeitos junto do balcão da [instituição de crédito] Western Union, da esquadra da polícia e do paiol de Marawi ganham agora outros contornos.

“A verdade é que é muito fácil para os grupos radicais chegar a um lugar como Marawi e convencer uns quantos a juntarem-se a eles. A maior parte dos muçulmanos de Mindanau têm um conhecimento muito limitado do islão. Sabem que têm de rezar cinco vezes por dia e que não podem cometer pecados, pouco mais”, explica um natural da ilha que pede para não ser identificado, para falar livremente sobre o extremismo. “Vieram uns imãs do estrangeiro, muito eloquentes, a falar das verdades do livro sagrado, das cores dos pássaros no paraíso. Usam os versos do Corão de forma selectiva para justificar as suas más práticas religiosas. Com o tempo, esses sermões começam a convencer e mobilizar as pessoas mais ignorantes das comunidades rurais a juntar-se à jihad”, diz o homem, que só se converteu ao islão na vida adulta.

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Nos centros de acolhimento convive-se com a ausência de rendimento e de uma perspectiva de trabalho que permita aspirar a um futuro menos carecido

Resta fugir

A experiência de Nina e Saliha, obrigadas a deixar tudo para trás do dia para a noite em Marawi e “condenadas” a esperar, a poucas dezenas de quilómetros, pelo fim da guerra entre as Forças Armadas filipinas e o grupo Maute, é pouco diferente da de Dalie Conialil, morador no bairro Pagatin de Datu Salibo, na província central de Maguindanau. Nos seus 40 anos de vida, já teve de fugir tantas vezes de casa que nem sabe precisar ao certo quantas: “Desde 2008 já foram mais de 20”, estima. Os ciclones e tufões, as cheias, mas principalmente a violência armada, fizeram dele um “deslocado de longa duração”, membro de um conjunto que em inglês é designado como “perennially displaced population” na linguagem cifrada das organizações internacionais.

Quando o encontrámos, na cidade de Cotabato, a “capital” da Região Muçulmana Autónoma de Mindanau (que abarca cinco províncias no centro e Sudoeste da ilha), Dalie Conialil estava outra vez desalojado e a viver em casa de familiares. “A minha casa fica na zona interior do município, que é onde decorrem os confrontos. Tivemos de vir para a beira da estrada, onde é mais seguro”, explica, informando que grande parte da vizinhança escapou de casa por causa do reacendimento dos confrontos entre grupos rivais e das actividades do Jamaatu al-Muhajireen wal Ansar, um outro grupo inspirado pelo Daesh que estava a usar a selva de Datu Salibo como campo de treino.

As populações sabem que estes episódios têm o mesmo efeito de uma tempestade: podem tomar-se precauções, mas, quando chegam os confrontos, levam tudo à frente. Resistir é fútil, ou então demasiado arriscado; as pessoas sabem que a única coisa a fazer é fugir. “Se o combate já estiver muito perto, deitamo-nos no chão e rezamos. Não há nenhum lugar para fugir, esperamos que Deus nos ajude”, conta Ismael Samanodin, de 37 anos, que ultimamente teve o conflito a 500 metros da porta de casa, em Sambulawan. Por causa da regularidade dos combates, a sua propriedade está aberta aos vizinhos mais próximos do mangueiral — já chegou a ter 50 pessoas em casa, “todos cheios de medo”.

Como explica Dalie Conialil, cada ciclo de violência “activo” tem um “impacto tremendo” que afecta todas as famílias da comunidade. “Principalmente no que diz respeito ao rendimento e à educação dos filhos”, diz, apontando o seu caso. Os filhos, um menino de cinco anos e uma menina de nove, estão sem escola; a mulher, tecelã de tapetes tradicionais, está sem clientes. A sua casa, prossegue, está “totalmente danificada”. A sua esperança é que a crise política venha a resolver-se rapidamente para “poder continuar a vida”.

Ainda em Maguindanau, as cheias do rio Grande de Mindanau e do paul de Liguasan foram o motivo que forçou Maila, uma jovem de 23 anos, a deixar a sua casa em Shariff Saidona Mustapha. Entre Agosto e Setembro, a subida da água desalojou-a três vezes. “De duas em duas semanas, tinha de sair”, lembra. A primeira vez arranjou lugar num centro de acolhimento para desalojados, na segunda conseguiu ficar com familiares e à terceira calhou-lhe uma tenda numa das áreas designadas como seguras. Essa é uma designação a que os habitantes da região estão habituados, seja por causa das calamidades naturais seja pelo conflito.

No município de Mamasapano, o ciclo de seca e cheias é a razão pela qual a família de Alwaida, 26 anos e três filhos, é pobre, garante esta mulher que vive da agricultura. “Nuns anos fica tudo seco, noutros os terrenos inundam três vezes por mês. Nunca sabemos se vamos ter colheita”, diz. Neste Verão, houve cheias. “Tivemos de sair.” Em Julho, houve combates. “Evacuaram a aldeia outra vez, mas já voltámos para casa”, informa.

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Em Marawi, os combatentes islamistas atacaram o quartel militar e saquearam o respectivo paiol. Abriram as portas da prisão. Ocuparam o hospital, pegaram fogo à universidade, à catedral católica e deixaram uma mesquita xiita em cinzas ROMEO RANOCO/ reuters

O valor da vida humana

O desafio para estes largos milhares de desalojados/refugiados da ilha de Mindanau é o mesmo, quer fujam dos fenómenos do clima ou dos horrores da guerra, quer estejam afastados das suas casas durante uma semana, vários meses ou até anos (o recorde para Salie foram três anos num alojamento temporário): reconstruir as suas vidas e voltar a encontrar um sentido de estabilidade e permanência depois de cada crise. A deslocação implica a perda de todos ou quase todos os bens materiais, a casa, as terras, o posto de trabalho, a frequência da escola, o atendimento médico, o contacto com a mesquita. Voltar a casa, ou recomeçar noutro sítio, é sempre uma tarefa difícil. Não há indemnizações, não há apoios, não há crédito bancário, criticam os desalojados. Nem há maneira de expiar os traumas de cada agressão.

Acima deste, incomensuravelmente maior, um outro desafio passa por desafiar a história e o próprio destino de Mindanau, a única ilha de maioria muçulmana (95% da população) das Filipinas, que vive num estado permanente de instabilidade e insegurança que remonta já aos tempos da ocupação espanhola, no século XVI. A chamada Nação Moro — Moro ou Bangsamoro é o termo que identifica os muçulmanos filipinos, a maioria dos quais são seguidores do islão sunita — tem uma longa tradição de resistência aos colonos e missionários espanhóis; às administrações dos Estados Unidos e do Japão e ao Governo de Manila.

Quatro séculos de sectarismo, guerrilha e insurreição armada banalizaram o convívio (e a tolerância) com a violência extrema e relativizaram o valor da vida humana, que aqui se pode perder com enorme ligeireza e impressionante facilidade. “A violência é a cultura das províncias. As pessoas não recorrem às vias legais, recorrem à violência. Por isso a posse de armas na cultura Moro é tão prevalente. A maior parte das pessoas andam armadam e não hesitam em usar as armas. E, quando atiram, não é para assustar ou ferir, é para matar”, observa um membro da tribo Maguindanau, uma das várias etnias Moro.

“Mindanau foi sempre uma área problemática. A pobreza é histórica: as estatísticas da ilha são as piores do país e a situação em vez de estar a melhorar está a ficar pior. Além disso, há uma guerra civil a desenrolar-se de forma oculta há anos e anos”, resumia um diplomata da missão da União Europeia em Manila a um grupo de jornalistas europeus de visita às Filipinas para conhecer o trabalho desenvolvido pelo departamento de Acção Humanitária e Protecção Civil da Comissão Europeia (ECHO) e os seus parceiros na resposta à crise de Marawi (numa viagem que se tornou um périplo pelo drama humanitário esquecido de Mindanau).

Há muito que os especialistas em contra-terrorismo alertam para o potencial de risco de Mindanau e para o verdadeiro barril de pólvora em que se tornou aquela ilha cuja localização é estratégica no xadrez do jihadismo asiático. Num território de fronteiras porosas e de fácil acesso, onde vivem 22 milhões de pessoas (um quarto da população filipina) encontram-se quase todos os ingredientes que alimentam os extremismos e facilitam o recrutamento de combatentes radicais: pobreza galopante, falta de expectativas, ausência de serviços básicos, desrespeito pela lei e desconfiança face a todas as instituições do Estado.

“O extremismo em Mindanau não cresceu subitamente pela acção do Daesh. Ele é alimentado por injustiças históricas que continuam a manifestar-se nos dias de hoje. Os grupos radicais limitam-se a explorar o enorme fosso entre a população e o Governo. Enquanto as condições sociais e económicas não melhorarem, vão encontrar sempre terreno fértil para multiplicar as suas ideias”, explicava à Al-Jazira um académico da Universidade Estadual de Mindanau e residente em Marawi, Shidik Abantas.

O risco para o Governo é que a sua resposta musculada à crise de Marawi alimente mais ressentimentos numa população já demasiado agastada. Sabe-se que os Maute andaram a recrutar adolescentes para prolongar a luta na cidade, oferecendo dinheiro às suas famílias. O pagamento pode variar entre 3000 e 5000 pesos filipinos (entre 50 e 85 euros) por mês, muito mais do que paga a maior parte dos empregos não-qualificados. Os campos de acolhimento têm guarda militar: o Exército teme que os terroristas tentem infiltrar-se entre os desalojados.

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"É muito fácil para os grupos radicais chegar a um lugar como Marawi e convencer uns quantos a juntarem-se a eles. A maior parte dos muçulmanos de Mindanau têm um conhecimento muito limitado do islão", diz um natural da ilha FRANCIS R. MALASIG/reuters

O novo sistema federal de Duterte

O Maute é apenas o último grupo radical e a mais recente ameaça jihadista a germinar em Mindanau. A insurreição islâmica original, a chamada Frente Moro de Libertação Nacional (Moro National Liberation Front ou MNLF), foi criada no início dos anos 1970 como uma organização separatista que lutava em nome da população muçulmana da ilha contra as elites (católicas) de Manila. Ao fim de décadas de hostilidades, alcançou em 1990 o seu grande objectivo político: a aprovação de uma emenda constitucional para o estabelecimento da Região Muçulmana Autónoma de Mindanau com um governo autónomo do resto da ilha e da capital. Na sequência, o grupo iniciou negociações com o Governo para a assinatura de um acordo de paz, subscrito em 1996 — contemplava a transformação do grupo numa organização política legítima e um cessar-fogo que se mantém até agora.

Insatisfeita, uma facção mais radical formou a Frente Islâmica Moro de Libertação (MILF, na sigla em inglês), que prosseguiu a campanha pela independência da Nação Moro com recurso a ataques terroristas e combates com as forças filipinas. Porém, também a luta da MILF se transformou, com a sua liderança a rever exigências e a trocar a luta pela secessão por garantias de autonomia regional.

Conversações com a Presidente das Filipinas, Benigno Aquino, iniciadas em 2012, levaram à assinatura de um acordo de paz dois anos mais tarde, que lançava as fundações de um estado semiautónomo em Mindanau, com auto-governo em todas as áreas menos na política externa e segurança nacional. O acordo seria concretizado depois da regulamentação e aprovação pelo Parlamento da chamada Lei Básica Bangsamoro — o pacote para o alargamento da experiência autonómica a todo o território da ilha e que está “empancado” no Congresso de Manila, onde é politicamente impopular.

O atraso no processo político em Manila está a pôr em causa a legitimidade da MILF e, nota um observador local, está a facilitar o trabalho de recrutamento dos grupos inspirados pelo Daesh. “Enquanto a Lei Básica Bangsamoro não for implementada, os terroristas terão um argumento para justificar a sua acção.” O Presidente Rodrigo Duterte é um dos principais defensores da legislação, que serviria de precedente para o novo sistema federal que pretende instaurar nas Filipinas. Na província de Maguindanau, o coração da região muçulmana autónoma, todos acreditam que a cooperação da MILF e o apoio de Duterte permitirão resolver o problema, “99% de certeza”, diz Ismael Samanodin. “Se isso acontecer, o risco minimiza e a nossa vida pode melhorar”, afirma.

Como acontecera antes, o acordo com o Governo resultou em novas divisões do movimento separatista islâmico em novas facções, que rejeitam a oferta da autonomia e continuam a lutar pela independência da Nação Moro. Os mais activos e preponderantes são os Bangsamoro Islamic Freedom Fighters (BIFF), que controlam o território da província central de Maguindanau e regiões circundantes e garantem dispor de mais de cinco mil combatentes.

Islâmicos, jihadistas inspirados pelo Daesh, indígenas e comunistas

Mais a oeste, cresceu o grupo radical salafista Abu Sayyaf, cujo líder Isnilon Hapilon fazia parte da lista dos terroristas mais procurados pelos Estados Unidos, que ofereceram cinco milhões de dólares pela sua captura. O grupo, composto por fanáticos religiosos, apareceu do nada nos anos 1990, e proliferou como cogumelos na selva das ilhas remotas do arquipélago de Mindanau. Notabilizou-se pelos raptos de turistas ocidentais em férias nas estâncias paradisíacas das ilhas vizinhas de Cebu ou Palawan e por outras acções brutais. Em 2001, um cerco a uma igreja e a um hospital de Lamitan, em que padres, médicos e enfermeiras foram tornados reféns e alguns posteriormente executados, provou a sua crueldade. Em 2004, estiveram por detrás da bomba que afundou um ferry que partiu de Manila com 900 pessoas a bordo — mais de cem morreram.

Os mais recentes alvos destes militantes — que foram aliados da Al-Qaeda, mais tarde juraram fidelidade ao líder do Daesh, Abu Bakr al-Baghdadi, e agora estiveram ao lado dos irmãos Maute na batalha de Marawi — são os emissários chineses que viajam para Mindanau em busca de oportunidades de negócios, bem como empresários de Manila. Os raptos servem o propósito de financiamento das actividades jihadistas através do pagamento de resgates avultados.

Nas zonas de montanha, no Nordeste da ilha, encontram-se ainda activas duas insurreições históricas: um grupo constituído pela população indígena originária e o Novo Exército do Povo (New People Army), grupo rebelde maoista que os filipinos genericamente designam por “os comunistas” e que supostamente ainda conta com 3200 “soldados” nas suas fileiras.

Embora os diferentes grupos insurrectos — islâmicos, jihadistas inspirados pelo Daesh, indígenas e comunistas — tenham como adversário comum o Governo e as Forças Armadas de Manila (o que por vezes os leva a fixar alianças contra o Estado filipino), também se combatem entre si. Por exemplo, em Agosto, as forças da MILF lançaram uma ofensiva em Salibo contra uma facção do BIFF comandada pelo clérigo radical Esmael Abdulmalik, na qual morreram pelo menos 16 militantes.

Mas os confrontos com o Exército e os atentados terroristas não são a única fonte da insegurança, violência e opressão na ilha. Por incrível que pareça, em pleno século XXI, Mindanau é ainda terreno de uma sangrenta guerra feudal entre clãs, um fenómeno conhecido como “rido” que tem por base rivalidades e disputas ancestrais e se caracteriza por episódios súbitos de violência — pode ser um confronto entre duas famílias ou entre duas comunidades, motivado por honra, terras, dinheiro ou política. Segundo as estimativas oficiais, existem 235 casos de “rido” por resolver.

A este cenário juntou-se, no último ano, a guerra nacional às drogas e às redes de traficantes declarada pelo Presidente Duterte. Em Mindanau, não são poucos os cartazes, espalhados em grandes painéis de publicidade ao longo das principais estradas e pontos estratégicos como aeroportos e terminais de autocarro, totalmente preenchidos com fotografias de indivíduos suspeitos de envolvimento no negócio da droga — numa mensagem nada subtil para aqueles que gostam de praticar justiça por conta própria ou a soldo (grupos armados privados empregam centenas de pessoas). Além disso, a lei marcial, que vigora em toda a ilha desde o assalto a Marawi, permite que qualquer pessoa possa ser detida por qualquer razão sem qualquer prova ou indício.

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JOEFFREY MAITEM/ reuters

Recordar o assalto a Marawi

A chamada “batalha de Marawi” começou no dia 23 de Maio, com um raid falhado das autoridades filipinas para capturar Isnilon Hapilon, que se intitulava xeque Mujahid Abu Abdullah al-Filipini, o “emir” de um pretenso “califado” do Daesh no Sudeste asiático e estava abrigado numa casa de quatro pisos do bairro de Basak Malutlut. A operação foi um fiasco: até hoje os analistas não se entendem sobre a origem das informações que conduziram as tropas até ao local, com uma corrente a garantir que foi tudo orquestrado pelos terroristas. O certo é que, em vez de se depararem com Hapilon, os soldados encontraram os planos para o assalto a Marawi — que já estava em curso.

A cidade muçulmana no centro da ilha, à beira do pitoresco lago Lanao, era um alvo fácil e apetecível para uma acção espectacular dos rebeldes: com um governo enfraquecido e poucas dezenas de polícias dedicadas ao patrulhamento das ruas, era um movimentado centro de comércio e de diversas universidades. Além disso, “em Marawi, as pessoas não poupam dinheiro no banco, guardam em casa”, conta um morador — na sua ofensiva, os militantes (consta que cerca de 800) amealharam todo o dinheiro e todas as armas que havia na cidade.

Quando as autoridades locais e nacionais se organizaram para repor a ordem, Marawi já estava totalmente controlada pelos combatentes do grupo extremista fundado pelos irmãos Abdullah e Omarkhayam Maute, aspirantes a líderes jihadistas que juraram fidelidade ao Daesh e levantaram a bandeira negra do prometido “califado” islâmico na cidade. Se estes homens pertencem, ou não, à organização islamista mais temível da actualidade, é matéria de especulação. Um dos desalojados dizia que “a única ligação entre os irmãos Maute e o Médio Oriente e o Daesh é o Facebook e o WhatsApp. Eles têm uma empresa de construção e é daí que vem a maior parte do dinheiro e do pessoal para a jihad”, assegurava.

Especialistas em terrorismo contrapõem, porém, que o financiamento do grupo passava sobretudo pelo estrangeiro. Os irmãos Maute, jovens com estudos e bem relacionados, “representam a nova geração de extremistas islâmicos: educados no Egipto e na Jordânia, com ligações às redes jihadistas tanto no Médio Oriente como noutros pontos do Sudeste asiático”, assinala Geoffrey Hartman, especialista do programa asiático do Center for Strategic and International Studies, em Washington.

O debate alimentado por tantas dúvidas — quantos são, de onde vêm, como se radicalizaram, quem sustenta a sua luta — não esconde, porém, a dura realidade no terreno: os jihadistas foram para Marawi preparados para matar e para morrer. Estavam bem organizados, bem equipados e motivados: armados até aos dentes, dispunham de um arsenal pesado de granadas e rockets, que não hesitavam em utilizar tanto contra as forças governamentais como contra a população em fuga. “Jamais nos renderemos. Se tiver de ser, morreremos a combater”, prometiam os Maute, segundo o relato de uma refém.

“Depois do primeiro assalto, foi um autêntico êxodo. Em Marawi só ficaram os militantes e os cães e gatos vadios”, diz Froilán Gallardo, um jornalista de Mindanau que logo no primeiro dia dos combates viu uma bala perdida enterrar-se no colete antibala que teve o bom senso de vestir para acompanhar as manobras do Exército filipino. A sua descrição é vívida mas não inteiramente correcta, porque mais de duas mil pessoas ficaram encurraladas durante semanas dentro da cidade.

Além disso, os jihadistas fizeram largas centenas de reféns, muitos dos quais ou serviram de escudo humano ou acabaram a combater contra as tropas filipinas. Segundo a imprensa filipina, algumas mulheres poderão ter sido usadas como escravas sexuais. Desde o início da crise, o Exército resgatou mais de 1700 reféns; entre os últimos, havia bebés de meses, nascidos durante o cerco.

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80% dos residentes de Marawi foram alojados por familiares ou vivem em centros de acolhimento em condições precárias

Mais de 150 dias de combates

Estima-se que nestes cinco meses mais de 1100 pessoas tenham perdido a vida em Marawi, incluindo 165 soldados e largas centenas de combatentes rebeldes. Na cidade, totalmente devastada por meses de tiroteios e bombardeamentos, não resta quase nada. Vislumbram-se as carcaças dos prédios por entre montanhas de entulho, onde é possível encontrar as “provas” da sua anterior ocupação: tanques de lavar a roupa, sofás, televisores, bicicletas, brinquedos.

A 16 de Outubro, o Exército filipino anunciou a morte de Omarkhayam Maute, no decurso de uma operação especial conduzida durante a madrugada e que também eliminou o líder do grupo Abu Sayyaf e o proclamado emir do Daesh, Isnilon Hapilon. Os comandantes no terreno manifestavam confiança na desmobilização dos rebeldes e o fim iminente do cerco, mas reconheciam que ainda havia dezenas de militantes armados e entre 50 e 100 reféns escondidos em Marawi.

Animado pela confirmação da morte dos cabecilhas do ataque, o Presidente das Filipinas declarou vitória. “Vim aqui para declarar a libertação desta cidade da influência terrorista e para assinalar o início da sua reabilitação”, sublinhou o chefe de Estado, que voou para Mindanau assim que soube da notícia. Mas só nesta última segunda-feira (23 de Outubro) é que as operações militares foram dadas por terminadas e o fim do cerco a Marawi foi oficialmente decretado pelo chefe das Forças Armadas das Filipinas, Eduardo Año. “Depois de 154 dias de combates, derrotámos os terroristas do grupo Maute”, anunciou.

Em Mindanau, os responsáveis militares mantêm-se cautelosos, admitindo que mesmo depois da expulsão de todos os rebeldes da cidade serão necessários meses de trabalho de limpeza e consolidação até a população poder voltar a casa. “Esta é uma fase de normalização e preparação para que os habitantes possam regressar a Marawi, talvez a partir de Janeiro. Para já, a cidade está pejada de explosivos e armadilhas, e muitos edifícios estão em risco de colapso”, afirmou à Reuters o tenente-coronel Rosendo Abad, que no dia 19 de Outubro estava no porto de Iligan a receber 47 máquinas a reluzir (tractores, escavadoras, bulldozers, camiões misturadores) vindas da China.

Num alerta que foi um autêntico balde de água fria para quem festejava o fim da ameaça dos Maute, os especialistas em contraterrorismo nomeavam o novo cabecilha da organização: Mahmud Bin Ahmad, um professor universitário malaio de 39 anos que os serviços secretos já tinham identificado como o principal recrutador e financiador dos grupos ligados ao Daesh em Mindanau e que conseguiu escapar de Marawi. Como ele, outros estrangeiros que ganharam as suas credenciais de jihadistas no cerco da cidade poderão estar já noutros países, a organizar novas células terroristas e  a expandir a ameaça a nível regional.

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Nos 89 campos de acolhimento que rodeiam Marawi estão 116 organizações humanitárias

À espera de que algo aconteça

Em condições normais, é preciso resiliência, cautela, destreza e imaginação para sobreviver neste território perigoso e sofrido, de uma desconcertante beleza natural — colinas cobertas por vegetação verde luxuriante e inesperadas quedas de água, ou vales de mangues e pauis e praias com palmeiras que parecem ter sido propositadamente plantadas para replicar o contorno da linha da costa.

No caso das populações deslocadas, há que acrescentar a esses predicados umas boas doses de perseverança e paciência quase sobre-humana: os dias destas famílias são passados à espera de que algo aconteça. Quando é possível, as crianças vão à escola. Os homens procuram trabalho à jorna — um dia como pedreiro ou cantoneiro pode render 150 pesos filipinos, 2,5 euros. Mas a maior parte das mulheres não consegue trabalhar. “A única coisa que faço o dia todo é limpar”, desabafa Norhaida Aragasi, na cidade das tendas de Pantar.

Nos 89 campos de acolhimento que rodeiam Marawi, as dificuldades e carências são tremendas, apesar dos esforços das dezenas de organizações que já há muito intervêm em Mindanau. A resposta ao cerco mobilizou 116 agências, que asseguram mais de duas mil acções em 53 municipalidades.

As necessidades vão das mais básicas e imediatas — 80% dos campos não têm acesso a água corrente, latrinas e outras instalações sanitárias — às mais intangíveis. Enquanto organizações como a Action Against Hunger trabalham para suprir necessidades alimentares e garantir apoio médico, outras como a Save the Children mantêm centros de aprendizagem e distribuem material escolar aos alunos e professores. Em Bubong e Pantar, encontram-se tendas que servem de abrigo e local seguro para mulheres e crianças vítimas de abusos: a violência sexual é um dos muitos riscos associados à vida nos campos de desalojados.

A complexa rede de assistência no terreno debate-se com inúmeras dificuldades para levar a cabo a sua missão de apoio aos deslocados. Além dos danos nas infra-estruturas, também os checkpoint militares e os horários do recolher obrigatório impedem o acesso e comunicação com as diferentes áreas para onde dispersou a população. Cerca de 80% dos residentes de Marawi foram alojados por familiares ou amigos próximos e vivem em condições tão ou mais precárias do que quem encontrou abrigo num centro de acolhimento (oficial ou “não reconhecido”).

Mas um outro factor tem estado a limitar a eficácia da sua acção: a conjuntura política em Manila e a atitude do Presidente, que se recusa a reconhecer a existência de uma crise humanitária em Mindanau e a requisitar formalmente assistência à comunidade internacional. Sem essas medidas, as agências envolvidas na resposta de emergência não podem operar de forma independente; estão debaixo da jurisdição das autoridades locais, que não têm a mesma capacidade e experiência.

Secundarizando a questão humanitária, o Governo central lançou um ambicioso plano para a reabilitação de Marawi (o seu responsável é o director de Defesa nacional), que conta com o apoio do Banco Mundial e vários doadores internacionais.

A pressa do Governo em avançar com a reconstrução da cidade, quando ainda havia tropas a combater, tem que ver com as críticas dos habitantes, que culpam os jihadistas pela crise mas responsabilizam o Estado pela destruição da cidade à bomba.

No Sul da ilha, ouvem-se outros lamentos. “Com a crise em Marawi, as vítimas de Maguindanau foram esquecidas. E a nossa situação é tão difícil e dramática como a deles”, resume Alwaida.

A jornalista viajou a convite do ECHO, departamento de Acção Humanitária e Protecção Civil da Comissão Europeia.
Esta reportagem encontra-se publicada no P2, caderno de domingo do PÚBLICO