Big Mouth, a puberdade animada em toda a sua indecência no Netflix

O cómico Nick Kroll e um amigo de infância criaram uma série de dez episódios sobre os tempos em que lhes começou a puberdade.

Dois miúdos a entrarem na puberdade e o seu monstro das hormonas
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Dois miúdos a entrarem na puberdade e o seu monstro das hormonas Netflix
Uma monstra das hormonas desencaminha uma rapariga
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Uma monstra das hormonas desencaminha uma rapariga Netflix

Na noite de quarta-feira, Nick Kroll foi convidado do Late Show de Stephen Colbert. O mote era a promoção de Big Mouth, a nova série animada que Kroll co-criou e protagoniza, sobre um grupo de crianças a entrar na puberdade e o quão desconfortável esse período pode ser. Com ele, trouxe uma fotografia sua e de Andrew Goldberg, seu amigo de infância que escreveu a série com ele, em miúdos. A ideia era lançar uma campanha para pôr outras pessoas conhecidas a mostrarem fotografias na Internet, com a hashtag #PuberMe, e Colbert, que também contribuiu com uma fotografia sua, juntou-lhe uma parte de beneficência: doar dinheiro para ajudar Porto Rico a recuperar do furacão Maria por cada celebridade que o fizesse.

Os resultados que têm obtido – de pessoas como Sarah Silverman, Kristin Chenoweth, Jimmy Kimmel, Conan O’Brien, Lin-Manuel Miranda, Lena Dunham, Billy Eichner, Gina Rodriguez ou America Ferrera, entre outros – sublinham o carácter confrangedor que caracteriza essa época. E é justamente disso que Big Mouth, cujos dez episódios chegaram sexta-feira ao Netflix, trata. Da forma mais honesta, desconfortável e indecente possível, com histórias tiradas diretamente da vida dos criadores, mesmo que sejam do mais embaraçoso possível.

Em Big Mouth, que tem o recém-falecido Charles Bradley a cantar uma versão de Changes, dos Black Sabbath, no genérico, os protagonistas são Kroll e John Mulaney, um brilhante cómico de stand-up seu parceiro na dupla Oh Hello, em que fazem de dois idosos nova-iorquinos com uma fixação por Alan Alda e que tinha segmentos recorrentes em Kroll Show, o programa de sketches que durou de 2013 a 2015 no canal Comedy Central, e teve direito ao seu próprio especial de comédia ao vivo no Netflix este ano. Kroll faz de Nick e Mulaney faz de Andrew.

Mesmo que Nick ainda não tenha entrado na puberdade, Andrew já, e isso leva-o a ser seguido por Maurice, um monstro hormonal que passa a vida a convencê-lo a agir da pior forma possível (o nome é claramente uma referência ao autor de livros de crianças Maurice Sendak, já que a criatura se parece com os animais de Onde Vivem os Monstros.

Mas não são as únicas personagens. Ao contrário do que poderia ser expectável de uma série tão indecente e suja, o mundo masculino não é o único focado. Existem raparigas por aqui, com as quais os rapazes se cruzam – e a mente deles explode literalmente quando descobrem que elas têm os mesmos desejos que eles. Além de Kroll e Goldberg, a série é criada pelo casal veterano Mark Levin e Jennifer Flackett, e há muitos episódios escritos e co-escritos por mulheres, ou seja, não é uma visão masculina da puberdade feminina. Jessi, a quem é dada voz por Jessi Klein, a cómica que era a chefe dos argumentistas do programa de sketches de Amy Schumer, Inside Amy Schumer, até tem a sua própria monstra, cuja voz é de Maya Rudolph, que pertenceu a Saturday Night Live.

A ideia de que uma comédia completamente imunda e indecente pode ser progressista e não-misógina ou homofóbica – existem insultos homofóbicos na série, mas nunca são mostrados como uma virtude e são pintados como defeitos de personalidade das personagens que os proferem –, desde que se tenha o cuidado de não apontar as armas ao género oposto – algo que Má Vizinhança 2, o subvalorizado filme do ano passado, já fazia.

Ter piada de uma forma suja também não implica não pegar em temas importantes e às vezes até controversos, acabando por não ser uma série tão gratuita quanto pareceria à primeira vista. Do primeiro período à homossexualidade, passando por slut-shaming, consentimento, discriminação racial e a tendência que a sociedade tem para não acreditar em mulheres que dizem ter sido vítimas de algum tipo de assédio ou abuso, bem como as perturbadoras alegações contra Woody Allen, há espaço para tratar questões relevantes aqui.

Em termos de vozes, Kroll, alguém que se especializou em fazer várias personagens diferentes, dá vida a muitas das pessoas que vemos por aqui, e a ele, Mulaney, Klein e Rudolph juntam-se nomes como Fred Armisen, de Portlandia, Jenny Slate, de várias séries e de filmes como Obvious Child (ambos também passaram por Saturday Night Live), Jason Mantzoukas, que fazia de Rafi, o completamente perturbado cunhado da personagem de Nick Kroll em The League, Richard Kind, de Doido Por Ti e Cidade Louca, ou Andrew Rannells, de Girls. E, de uma forma bastante memorável, Kristen Wiig, outra pessoa ex-Saturday Night Live, faz o papel de uma vagina.
Apesar de retratar crianças, não é uma série recomendável para crianças. Se não for pelo facto de ser tão obscena, que seja pelas referências que usa. Kroll fazia personagens nos primeiros tempos de WTF, o podcast de Marc Maron, e até há pouco tempo era dele – em personagem como o radialista latino El Chupacabra – a voz que se ouvia no final dos episódios de podcasts da rede Earwolf. Isto sem mencionar a quantidade de vezes que foi a Comedy Bang! Bang!, seja em nome próprio ou em personagem, o podcast principal dessa rede. Jason Mantzoukas apresenta um podcast sobre filmes maus ou inacreditáveis chamado How Did This Get Made? – com June Diane Raphael, que também dá voz a uma das personagens – e é um convidado recorrente de Comedy Bang! Bang! – e tão importante que se fazem t-shirts com expressões ditas por ele que Scott Aukerman, o apresentador, percebeu mal. É portanto natural que haja piadas com podcasts como o quiz de cultura pop Wait Wait…Don’t Tell Me ou o espectáculo ao vivo de contar histórias pessoais The Moth.

Há também muito de muito de surreal por estes lados, mesmo quando não envolve nada de sexual. Jon Hamm, o Don Draper de Mad Men, dá voz a escalopes, existe um cão chamado Featuring Ludacris – que incorpora a forma como normalmente vozes convidadas conhecidas são creditadas em músicas –, outro que é igual a Nathan Fillion, protagonista de séries como Castle e Firefly, as personagens falam várias vezes de um videojogo chamado Hooker Killer: Vatican City, e vai aparecendo um par de detectives (com as vozes dos protagonistas) ao estilo de Lei & Ordem – uma obsessão de Mulaney muito usada na sua comédia de stand-up.

E mais: o fantasma de Duke Ellington, a quem é dada voz por Jordan Peele, o cómico e realizador de Foge!, dá conselhos terríveis aos miúdos, há números musicais que vão de um tampão com cara de Michael Stipe a cantar sobre períodos – e uma Aimee Mann verdadeira a voltar ao tópico na música dos créditos – a todos os participantes de um bat mitzvah a cantarem sobre como a vida é – para parafrasear eufemisticamente – uma confusão tramada, com o fantasma – sim, há muitos fantasmas por aqui; Prince, Platão e Pablo Picasso também aparecem, entre outros – de Freddie Mercury a falar do quão boa pode ser a homossexualidade pelo meio.

Já para não falar do surgimento recorrente de momentos meta-referenciais, seja com personagens a quebrarem a quarta parede e mostrarem que sabem que as pessoas estão a fazer binge-watching ou fugas à estrutura narrativa e aproximações ao estilo mockumentary de séries como O Escritório e às cenas de restaurante de Seinfeld. Que provavelmente nem todos os miúdos de 12 anos de hoje viram, mas funcionam bem para falar deles.

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