Na Venezuela corre-se contra o tempo numa pista manchada de sangue

Alguns analistas dizem que Nicolás Maduro pode usar a Assembleia Constituinte para angariar capital estrangeiro, principalmente russo. Do outro lado, a oposição tem de continuar a pressionar a comunidade internacional.

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Nos últimos quatro meses morreram mais de 120 pessoas nas ruas da Venezuela NATHALIE SAYAGO/EPA

Os novos super-deputados da Venezuela vão tomar posse esta sexta-feira, mas a notícia já não é nem o dia, nem a hora dessa cerimónia, nem sequer para onde vão e o que vão fazer os deputados normais – aqueles que foram eleitos em 2015 para a Assembleia Nacional, e que são na sua maioria da oposição.

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Os novos super-deputados da Venezuela vão tomar posse esta sexta-feira, mas a notícia já não é nem o dia, nem a hora dessa cerimónia, nem sequer para onde vão e o que vão fazer os deputados normais – aqueles que foram eleitos em 2015 para a Assembleia Nacional, e que são na sua maioria da oposição.

O que muita gente quer perceber é o que realmente aconteceu no domingo, durante a votação para a Assembleia Constituinte, e o que poderá mudar nos próximos tempos na Venezuela depois de Nicolás Maduro ter conseguido criar um novo Parlamento para alterar a Constituição e com poderes para dissolver o que foi eleito há dois anos.

Para já, muita gente quer saber o que leva uma empresa de eleições acusada de dormir com o chavismo há uma década a acusar o Governo de Maduro de cometer uma fraude eleitoral descarada; depois, é preciso tentar perceber de que forma pode Maduro aproveitar os seus novos super-deputados para melhorar a situação económica do país e, assim, enfraquecer a oposição mesmo perante sanções dos Estados Unidos.

Mas vamos por partes. A meio da semana, o presidente executivo da multinacional venezuelana Smartmatic, Antonio Mugica, convocou uma conferência de imprensa na sede da empresa, em Londres, e disse que a Comissão Nacional de Eleições da Venezuela cometeu fraude – sem explicar pormenores, e apenas repetindo a garantia de que o sistema usado é "impossível de contornar", Mugica acusou os responsáveis eleitorais de terem inflacionado o número de eleitores em pelo menos um milhão, de sete para oito milhões.

O número de eleitores que votaram no passado domingo é o único indicador que interessa para se avaliar o sucesso ou o fracasso de Nicolás Maduro, quando decidiu convocar eleições para a criação de uma Assembleia Constituinte – como os partidos da oposição boicotaram o processo, acusando o Presidente de desenhar um mapa eleitoral que lhe garantia a eleição dos seus apoiantes, não era sequer possível votar em representantes anti-Maduro.

Antes da acusação da Smartmatic, a Reuters já tinha dito que havia indícios gritantes de fraude eleitoral. A agência diz ter visto documentos oficiais da comissão eleitoral, segundo os quais às 17h30 de domingo tinham votado apenas 3,7 milhões de eleitores. Para se chegar aos oito milhões anunciados pela comissão venezuelana, seria preciso que mais de quatro milhões de pessoas tivessem votado nos últimos 90 minutos em que as secções de voto estiveram abertas.

Depois da conferência de imprensa do presidente executivo da Smartmatic, a procuradora-geral da Venezuela, Luisa Ortega Diaz, abriu um inquérito para investigar as acusações de fraude. Numa entrevista à CNN, a antiga apoiante de Hugo Chávez e actual opositora de Nicolás Maduro disse que o processo eleitoral de domingo foi "escandaloso" e sugeriu que "o número de eleitores provavelmente nem chega a metade do que foi anunciado". Mas a investigação da procuradora-geral pode vir a revelar-se breve – o Supremo Tribunal, constituído apenas por nomes indicados pelo Governo, já substituiu a vice-procuradora-geral escolhida por Luisa Ortega Diaz e a oposição diz que a futura Assembleia Nacional vai acabar por substituir também a procuradora-geral.

Empresa contestada nos EUA

A Smartmatic é uma empresa fundada em 2000 por três engenheiros venezuelanos, entre os quais Antonio Mugica. Desde cedo que foi acusada nos Estados Unidos de ser controlada pelo Governo da Venezuela, quando operava a partir da Florida. Em 2004, foi contratada pelo Governo venezuelano para fornecer máquinas de voto para o referendo sobre a presidência de Hugo Chávez, e um ano depois comprou a empresa norte-americana Sequoia Voting Systems, cujas máquinas eram usadas por essa altura nas eleições para o Congresso em 17 estados norte-americanos.

Depois de muita insistência da congressista Carolyn Maloney, do Partido Democrata, a comissão que investiga aquisições de empresas norte-americanas por empresas estrangeiras abriu um inquérito. Na altura, a Smartmatic mostrou-se totalmente disponível para colaborar na investigação, e o seu presidente afirmou que "nenhum Governo ou entidade estrangeira teve alguma vez acções" na empresa. Pouco mais de um mês depois, a Smartmatic afastou-se da investigação e anunciou a venda da Sequoia Voting Systems.

Para além das dúvidas sobre a votação de domingo passado, alguns analistas tentam ver através das manifestações e da violência nas ruas da Venezuela, para tentarem perceber o que pode Nicolás Maduro ganhar com a nova Constituinte.

A saída russa

Tal como em tantas outras questões que afectam o país, é impossível perceber para que lado vai virar o barco, mas há dois cenários em cima da mesa: ou a linha bolivariana mais rígida, liderada por Diosdado Cabello, empurra o país ainda mais para as nacionalizações e para o isolamento económico, ou Nicolás Maduro aproveita a revisão da Constituição para abrir as portas a capital estrangeiro nas empresas estatais – o que, na actual situação, significa abrir as portas principalmente a mais capital russo.

"O Governo vai tentar usar a assembleia para aceder aos mercados internacionais, realizar operações financeiras, refinanciar a dívida pública e aprovar joint ventures, mas acho que não vai conseguir. Os riscos para a reputação da Venezuela não vão melhorar, pelo contrário", disse ao Financial Times o constitucionalista José Ignacio Hernandéz, em Caracas.

Se for esse o caminho, a Assembleia Constituinte pode partir o tecto de 50% para entrada de capital estrangeiro em empresas estatais, principalmente no sector do petróleo. De acordo com a Reuters, a poderosa Rosneft russa está a tentar livrar-se dos 49,9% que tem na venezuelana Citgo (que opera nos EUA), e o controlo de empresas sedeadas na Venezuela pode vir a revelar-se uma alternativa interessante – ao mesmo tempo que entra dinheiro na Venezuela, a Rosneft escapa a possíveis problemas por causa das sanções norte-americanas.

Agora trata-se de uma corrida contra o tempo, tanto do Governo de Maduro como da oposição – o primeiro para continuar a reprimir os opositores, enquanto encontra uma saída para devolver algum poder de compra aos milhões que foram perdendo a fé na revolução, e os segundos para pressionarem a comunidade internacional a apertar o pescoço do Governo enquanto as ruas estão a ferro e fogo.