O bibliotecário informal

Quando nasceu, a sua casa já estava carregada de livros. Dedica boa parte do seu tempo livre à História, sobretudo à de Mafra e do seu palácio-convento, cuja biblioteca conhece como poucos. Também se deixou fascinar pela astrologia e pela alquimia, porque, diz, o mundo não se explica de uma vez só.

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Na família de José Medeiros os livros e a química sempre se misturaram. Não é por isso de estranhar que este investigador de 75 anos, que fez o curso de técnico de laboratório, que foi professor de liceu, trabalhou em publicidade e deixou por acabar os estudos de História na Sorbonne continue fascinado por ambos. Na biblioteca da sua casa, que hoje continua carregada de volumes, muitos deles herdados, muitos deles comprados, sempre houve ciência, política, filosofia. “O meu avô [Serafim da Paz Medeiros], que foi farmacêutico, aliás, como o meu bisavô e o meu trisavô, foi um republicano convicto e o primeiro presidente da Câmara de Mafra depois da implantação [da República, entre 1912 e 1914]. Era um homem que se interessava muito pela química, pelas ciências naturais, mas também pela filosofia política, pelo pensamento.” Na sua biblioteca os livros não fechavam a porta uns aos outros. Na do neto também não.

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Na família de José Medeiros os livros e a química sempre se misturaram. Não é por isso de estranhar que este investigador de 75 anos, que fez o curso de técnico de laboratório, que foi professor de liceu, trabalhou em publicidade e deixou por acabar os estudos de História na Sorbonne continue fascinado por ambos. Na biblioteca da sua casa, que hoje continua carregada de volumes, muitos deles herdados, muitos deles comprados, sempre houve ciência, política, filosofia. “O meu avô [Serafim da Paz Medeiros], que foi farmacêutico, aliás, como o meu bisavô e o meu trisavô, foi um republicano convicto e o primeiro presidente da Câmara de Mafra depois da implantação [da República, entre 1912 e 1914]. Era um homem que se interessava muito pela química, pelas ciências naturais, mas também pela filosofia política, pelo pensamento.” Na sua biblioteca os livros não fechavam a porta uns aos outros. Na do neto também não.

Na casa onde vive, no centro da vila de Mafra, sucedem-se as salas de paredes cobertas de mapas e prateleiras carregadas de volumes, fotografias e objectos vários, muitos deles ligados a outra das suas áreas de interesse, a que muitos se referem como “ocultismo”, mas a que ele prefere chamar “saberes antigos”. Alguns são tão inusitados que é impossível não perguntar: “E isto o que é?” José Medeiros sorri e responde, acrescentando histórias e pormenores graças a uma memória que parece prodigiosa, a mesma que, diz ele, já lhe vai falhando, mas que ainda lhe permite saber exactamente onde encontrar determinado livro no meio de milhares, sem recorrer a listas nem etiquetas.

Foi quando estava em Paris a decidir se preferia a pintura ou a fotografia que José Medeiros acabou na Sorbonne a estudar História e passou a trabalhar na biblioteca do Centro Cultural Português, que António Coimbra Martins, diplomata e tradutor de Sartre, ali criara em 1965 com o apoio da Fundação Gulbenkian.

“Peguei nas ‘Décadas da Ásia’, a parte do Diogo do Couto, porque a décima ainda não estava publicada e a Biblioteca Nacional de França tinha um exemplar.” O investigador refere-se a um dos volumes que Diogo do Couto (c.1542-1616), cronista, guarda-mor da Torre do Tombo de Goa e amigo de Camões, escreveu quando o incumbiram de dar continuidade à obra Da Ásia, de João de Barros, importante e monumental referência histórica sobre a presença dos portugueses naquele continente, com os acontecimentos a serem agrupados em volumes que abarcam dez anos cada (daí ser conhecida por “Décadas”).

“É verdade que a minha investigação em história mais a sério começa pela conquista e pela expansão, mas foi em Mafra — a vila, o convento, o palácio, a escola real — que me concentrei”, diz, explicando que deixou Paris e a universidade, porque a casa onde vivia ia ser vendida e ele não queria sair nem tinha dinheiro para a comprar. “Na mesma altura o professor Veríssimo Serrão [uma das figuras mais marcantes da historiografia portuguesa do século XX] ia deixar de ser o director do centro e eu achei que, se era para mudar, mudava de país.”

Para esta paixão por Mafra e pela sua história muito terá contribuído o facto de, quando era criança, ter chegado a sua casa o espólio documental reunido por Júlio da Conceição Ivo, grande estudioso da vila e autor do livro O Monumento de Mafra — Guia Ilustrado (com Santos Ferreira), obra de 1906 que é ainda uma fonte importante para todos os que o estudam.

É desse espólio que faz parte, aliás, o primeiro documento relativo à vila que José Medeiros publicou, em 1971, quando era ainda funcionário da biblioteca do Centro Cultural Português, em Paris, emprego que teve entre 1970 e 72. É uma carta em que Eusébio Gomes (1800-1832), um homem que começou a trabalhar no palácio como varredor e que chegou a almoxarife, alto cargo administrativo em que passou a ser uma testemunha privilegiada da vida na corte e no convento, se queixa de que não lhe pagam. “O Júlio Ivo, que foi aluno da Escola Real de Mafra, como o meu avô, tinha publicado as ‘memórias’ do Eusébio Gomes, mas não esta carta, que é muito curiosa e tem um tom de queixume. As memórias trazem muita informação sobre a época, dos rituais da corte às festas que se celebravam, mas têm um olhar de certa maneira distanciado. Na carta não, ele está implicado.”

À curiosidade que o fez querer saber sempre mais sobre a história do edifício real, começando pelo espólio que reunira Ivo — investigador e funcionário dos Correios, homem que estudara francês, inglês e alemão e que tinha ainda o curso de Telégrafos e Faróis — juntou-se depois o fascínio pelo esoterismo, que tem em Mafra, garante Medeiros, um ponto de paragem obrigatório em território português.

O investigador faz uma leitura simbólica do palácio no seu livro Os Caminhos Esotéricos de Portugal (Ed. Pergaminho), em que propõe sete peregrinações que passam por monumentos como o Convento de Cristo, em Tomar, e a Quinta da Regaleira, em Sintra. “Não é possível andar pelo edifício sabendo um bocadinho da sua história e ignorar toda a sua simbologia.”

Um palácio para ensinar

Os livros que mais lhe interessam são os que foram manuseados, que têm notas e sublinhados, e desses não há muitos na Biblioteca do Palácio Nacional de Mafra, repleta de tesouros, alguns deles “proibidos” durante décadas e décadas. Visitou-a pela primeira vez quando andava na escola primária e nunca mais deixou de lá ir. Se dúvidas houvesse de que conhece o seu espólio como poucos, as conversas que tem vindo a moderar no âmbito do programa que festeja os 300 anos do lançamento da primeira pedra do edifício que D. João V mandou construir para honrar uma promessa dissipá-las-iam.

“Para quem gosta de História e das chamadas ‘filosofias naturais’, como eu, Mafra tem uma biblioteca extraordinária”, diz. “Como o real edifício reúne três importantes valências desde a primeira hora — um paço para o poder temporal, um convento para o espiritual e uma escola para o ensino —, a sua biblioteca é rica e diversa. Os livros que tem sobre cabala, astrologia e alquimia, a que as pessoas gostam de chamar ‘ciências ocultas’, também servem para aqueles que, como eu, gostam de pensar nas grandes questões da vida. Quando procuramos respostas para essas dúvidas fundamentais, podemos encontrá-las por duas vias: ou inventamos um deus que é responsável por tudo, ou acreditamos que o divino está em nós.”

José Medeiros defende que a energia primordial está em tudo o que existe e que aquilo que hoje é para nós um mistério ou simplesmente uma teoria descabida, poderá vir a ser aceite no futuro sem reservas. E vai ao passado buscar um exemplo de que gosta particularmente: o filósofo italiano Giordano Bruno foi queimado pela Inquisição aos 52 anos, acusado de heresia e blasfémia por acreditar, entre outras coisas, que havia vários universos e que a Terra girava à volta do Sol (os seus escritos entraram para o Índex, lista de livros cuja circulação tinha de ser controlada pela Inquisição, em 1603, e só deixaram de ser totalmente censurados pelo Vaticano em 1948).

“Hoje não mandaríamos queimar Giordano Bruno”, diz, brincando. “Mas há pessoas que não gostam de viver com dúvidas, num estado de curiosidade permanente. Eu não sou uma dessas pessoas — sou mais daquelas que, quando sabem todas as respostas, mudam todas as perguntas.”

A procura do conhecimento, aliás, é coisa que sempre o motivou, daí estar a preparar um novo livro sobre o ensino no real edifício, que deverá ser lançado no início do próximo ano.

José Medeiros defende, não sem haver quem o contrarie, que a biblioteca que hoje encontramos no palácio era, em grande parte, a que pertencia à escola que ali existia desde a sua fundação. “É claro que há livros que tanto interessariam aos religiosos como aos alunos — todas as grandes obras dos jesuítas estão nesta biblioteca —, mas há outras muito específicas da área da cosmologia ou da astronomia, livros editados na Alemanha e na Holanda depois da Reforma luterana, que fazem muito mais sentido no contexto de uma escola do que no de um convento.”

Na descrição que faz do monumento ainda no século XVIII, Carvalho Bandeira fala em duas bibliotecas, uma grande e uma pequena, “uma para os alunos e outra para os frades”, remata Medeiros, lembrando ainda que o arquitecto e ourives alemão João Frederico Ludovice, homem a quem D. João V encarregou do projecto de Mafra, chegou a ter a funcionar ali uma Escola do Risco, onde se formaram alguns dos arquitectos que viriam a trabalhar na reconstrução de Lisboa.

“O real edifício sempre teve escolas lá dentro, que foram mudando de nome e foram sendo entregues a religiosos, umas vezes os cónegos regrantes de Santo Agostinho, outras os franciscanos. Mas os primeiros professores que D. João V manda para Mafra vinham do colégio dos jesuítas de Coimbra.”

Os jesuítas, que segundo o investigador estiveram por trás do projecto de Mafra, foram, como se sabe, perseguidos pelo Marquês de Pombal, que evocou como uma das causas para justificar a sua extinção o facto de ensinarem matérias contrárias à doutrina da Igreja (acusava-os de idolatria e de recorrerem ao uso da magia e da astrologia).

Os seus autores

Se consultamos documentos relativos ao ensino neste palácio-convento, é natural vê-los designados como “reais estudos”, “real colégio” ou “escola real”. “O nome muda, mas a intenção de formação está lá. Toda a zona central do edifício está consagrada ao ensino. É por isso que temos o corredor das aulas ou a sala dos actos escolares, onde se defendiam as teses e o rei chegava a assistir à abertura do ano lectivo.”

Épocas houve em que a escola se destinava sobretudo a preparar os alunos para a universidade e outras a ensinar as primeiras letras. Com a reforma de D. Maria I (1734-1816), por exemplo, os alunos só passam a ser aceites quando já sabem ler, continua, falando enquanto percorre a sua biblioteca à procura de um documento que lista todas as matérias que ali eram ensinadas quando quem reinava era a filha de D. José I. Havia espaço para as línguas (latina, grega, francesa, italiana e inglesa), para a geografia, a história, a metafísica, a ética, a lógica, a física experimental, a retórica ou a poética. “É um programa ambicioso, muito completo”, acrescenta Medeiros, que parece não gostar muito que a ele se refiram como historiador amador. “Eu sou só uma pessoa que gosta de livros, de História.”

Com D. Pedro V (1837-1861), e a partir de 1855, a Escola Real de Mafra passa a apostar na alfabetização de todos, com os alunos vestidos de bata preta e medalha ao pescoço, para que não pudesse haver distinção de classes sociais.

Leitor e viajante compulsivo — no planisfério que tem no seu escritório, com dezenas de pioneses a assinalar os países que já visitou, percebe-se que as suas viagens muitas vezes misturam história e património com uma espécie de demanda espiritual (Egipto, China, Nepal, Índia, vários países da América do Sul.) —, garante que não vai ficar quieto.

Se lhe pedimos que escolha alguns dos “seus” autores da biblioteca do palácio, José Medeiros começa a enumerá-los sem precisar de tempo para pensar (naturalmente, esperava a pergunta, e a familiaridade com o acervo aliada à sua memória faz o resto): Paracelso (1493-1541), médico, físico e alquimista suíço, “porque conseguiu juntar o conceito cabalístico do universo a uma releitura da alquimia”; Athanasius Kircher (1601-1680), jesuíta, matemático e inventor, a quem se deve “o primeiro museu do conhecimento de que há memória” e por ser também “autor de alguns dos primeiros estudos ocidentais sobre a China”; Robert Fludd (1574-1637), médico e alquimista inglês, seguidor de Paracelso e profundo conhecedor da cabala, por acreditar que o conhecimento devia estar ao serviço de toda a gente.

Da lista dos eleitos faz parte ainda Coménio (1592-1670), o autor de Didáctica Magna (a Fundação Gulbenkian editou-a em 2006), considerado o primeiro tratado de pedagogia. Nele este religioso protestante e cientista checo defendia um sistema pensado para ensinar tudo a todos, de acordo com princípios que hoje consideramos elementares mas que nem sempre são cumpridos, como o que obriga a respeitar o estado de desenvolvimento da criança a cada nova proposta de aprendizagem, o que favorece a multidisciplinaridade ou o que diz ser útil ao professor demonstrar afecto e preocupação pelos seus alunos.

Espagiristas, boticários, magos, astrólogos, cabalistas e quirólogos fazem parte das leituras (e estudos) de José Medeiros, assim como cientistas, filósofos, teólogos e historiadores. Encarrega-se a biblioteca de Mafra de nos provar, em dezenas de volumes, que tempos houve em que aquilo a que hoje chamamos “ocultismo” era visto como ciência, tempos houve em que um médico podia voltar-se para a magia sem que isso afectasse a sua prática.

Apesar disso, e apoiados num cepticismo que é próprio do jornalismo, não há como não perguntar a José Medeiros, homem com formação em ciência e um apreço de historiador à prova documental, o que o leva a deixar-se fascinar pela astrologia ou a cabala. A resposta, como muitas das que realmente valem a pena, só à primeira vista é simples: “O mundo não se explica todo de uma só vez e não se explica de uma maneira só.”

Texto corrigido às 17h50 de 25 de Julho: O Centro Cultural Português de Paris, em 1965, foi criado por António Coimbra Martins e não por António Correia Martins. As nossas desculpas pelo erro.