Este país não combina consigo próprio

Portugal está, neste momento, dividido em dois países: um que prospera nos números e nas estatísticas e um que definha em vários aspectos da vida real.

Portugal 2017, um contra-senso. O país do optimismo crónico — não é só o primeiro-ministro que é optimista, são os portugueses em geral — olha-se ao espelho e vê o desemprego a descer, o défice a diminuir, o crescimento económico a aumentar e as exportações e o turismo a reforçarem o seu caminho. As nuvens do procedimento por défice excessivo dissipam-se e até o Fundo Monetário Internacional vem prever que o país pode chegar ao fim do ano com um crescimento de 2,5% do PIB. "Se se vier a verificar, é o maior crescimento que o país teve desde a adesão ao euro", reagiu António Costa.

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Portugal 2017, um contra-senso. O país do optimismo crónico — não é só o primeiro-ministro que é optimista, são os portugueses em geral — olha-se ao espelho e vê o desemprego a descer, o défice a diminuir, o crescimento económico a aumentar e as exportações e o turismo a reforçarem o seu caminho. As nuvens do procedimento por défice excessivo dissipam-se e até o Fundo Monetário Internacional vem prever que o país pode chegar ao fim do ano com um crescimento de 2,5% do PIB. "Se se vier a verificar, é o maior crescimento que o país teve desde a adesão ao euro", reagiu António Costa.

Há semanas que andávamos assim, a coleccionar boas notícias, já quase com uma certa naturalidade e apatia, como se não fosse possível voltarmos a ser apanhados pelo negrume dos anos da troika. Alguns precários a serem integrados no Estado, as pensões mais baixas a aumentarem, a sobretaxa a desaparecer, as agências de rating a ajustarem perspectivas — o diabo definitivamente afastado. E, no horizonte, a presidência do Eurogrupo debaixo de olho, como recompensa para o agora bom aluno da Europa. 

É este o país que não combina consigo próprio. Parece aqueles senhores bem vestidos que traçam a perna e mostram a peúga branca. Parece um Estado moderno e eficaz, mas deixa que 64 pessoas morram queimadas e asfixiadas num incêndio complexo e inédito em que os sistemas de comunicações tiveram falhas durante quatro dias. Parece seguro e feliz, mas permite que presos serrem grades e fujam de cadeias sem serem interrompidos na fuga — e que ainda se vangloriem disso nas redes sociais.

O país que permite que 50 armas Glock desapareçam de uma arrecadação da Direcção Nacional da PSP, em Lisboa, e só se dê por isso quando uma delas é apreendida, no Porto, combina com o país em que há instalações militares a serem invadidas e subtraídas de material de guerra. Videovigilância em baixo, sensores inutilizados, vedações estragadas, rondas com intervalos de 20 horas. Essas coisas combinam todas entre si, é verdade, mas não combinam com o país que prospera nos números e que subitamente parecia estar no bom caminho, sem desvios.

Nada contra ir no bom caminho, desde que não fique bagagem esquecida. Se ficar, e ficou, é preciso voltar atrás e verificar serviço público a serviço público, sector a sector, se o que diz Jerónimo de Sousa faz sentido, aplicado a outras áreas nucleares do Estado — o líder do PCP acusou sucessivos governos de terem reduzido a condição militar "ao osso".

Não é, aliás, o primeiro a chamar a atenção para isso. Há um mês, em reunião de deputados em Albufeira, o PSD dedicou uma manhã ao tema da saúde. E depois de visitar o Centro Hospitalar do Algarve, Pedro Passos Coelho elencou pelo menos duas preocupações dos algarvios que são transversais ao resto do país: a falta de recursos humanos e a falta de investimento na saúde, o que conduz ao aumento dos tempos de espera. “Há uma retórica que não casa com a realidade”, disse então o líder do PSD.

Também o BE esteve em jornadas parlamentares no Algarve e pressionou o Governo para repor cortes na saúde e educação no Orçamento do Estado para 2018. E ontem, Catarina Martins foi ainda mais clara ao dizer que asfixiar o Estado e os serviços públicos é um risco enorme. "Quando muitas vezes se festejam números do défice mais ou menos extraordinários, essas poupanças extra, de facto, são falhar também onde o dinheiro é preciso."

Na próxima semana, o Parlamento debate o Estado da Nação. Se, há um mês, nada faria crer que esta poderia ser uma discussão complicada para o Governo, hoje é certo que áreas como a Administração Interna, a Defesa Nacional, mas também a Saúde, a Justiça e a Educação (que voltaram às greves) vão estar debaixo do olhar crítico da oposição. E a esquerda pode até unir-se em bloco contra os ataques da direita, como tem feito nos momentos essenciais, mas não será honesta consigo própria se esquecer este lado lunar do país do optimismo crónico.