Como a Motorola passou de mera accionista a fornecedora privilegiada do SIRESP

Contratos com entidades públicas já renderam 4,43 milhões de euros à empresa de equipamentos de comunicações desde 2008.

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A actuação do SIRESP foi questionada na tragédia recente em Pedrógão Grande Daniel Rocha

A Motorola não é só accionista do SIRESP (Sistema Integrado das Redes de Emergência e Segurança de Portugal), também é uma das suas fornecedoras privilegiadas e aparentemente continuará a sê-lo sempre que for necessário actualizar equipamentos e software deste sistema de comunicações.

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A Motorola não é só accionista do SIRESP (Sistema Integrado das Redes de Emergência e Segurança de Portugal), também é uma das suas fornecedoras privilegiadas e aparentemente continuará a sê-lo sempre que for necessário actualizar equipamentos e software deste sistema de comunicações.

É isso que indica um dos contratos entre o Estado e a empresa que o PÚBLICO consultou nas instalações do Tribunal de Contas (TdC). Trata-se de um ajuste directo autorizado em Julho de 2015 pela ex-ministra da Administração Interna de Pedro Passos Coelho, Anabela Rodrigues, e rendeu 1,072 milhões de euros à empresa. Com ele, o Estado garantiu o fornecimento de 11 salas de controlo e 18 consolas de despacho para a rede SIRESP, assim como “a necessária actualização tecnológica do software da rede” e a “adaptação dos sistemas de informação”.

O TdC deu visto positivo ao negócio, não sem antes questionar a Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna (é do secretário-geral Carlos Palma a assinatura no contrato, de Agosto de 2015, com a Motorola) sobre a escolha do procedimento de ajuste directo. E a justificação que recebeu foi simples: o objecto do contrato “só pode ser confiado a uma única entidade, a Motorola”.

Exclusividade

Para que a Autoridade Nacional de Protecção Civil (ANPC) “possa coordenar de forma eficiente os meios SIRESP atribuídos torna-se necessária a existência de um centro de despacho (control room) em cada um dos 18 CDOS [Comandos Distritais de Operações de Socorro]”, explicou então a Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna (SGMAI). Tendo em conta que apenas sete dos 18 CDOS do continente tinham esses centros de despacho, era forçoso que se adquirissem os equipamentos em falta.

“Entretanto, fruto da evolução tecnológica do fabricante do sistema de comunicações TETRA que suporta a rede SIRESP (Motorola), já não é possível adquirir novos control rooms e consolas de despacho compatíveis com a actual versão existente no continente e Madeira (Dimetra R6.1)”, esclareceram os serviços do MAI.

Para instalar as novas consolas, tornava-se “indispensável proceder ao upgrade da versão actual para a versão seguinte (Dimetra R6.2)” e a Motorola era, como reconheceu a  SGMAI, “a fabricante exclusiva do sistema TETRA – Dimetra”. Por isso, apesar de o TETRA “ser uma norma standard aberta”, no que respeita aos elementos de rede de cada sistema TETRA, incluindo as salas de controlo e as controlas de despacho, “existem características proprietárias”.

Características que parecem fazer da fabricante peça incontornável sempre que for necessário actualizar estes elementos-chave do SIRESP, como se lê no contrato depositado no TdC: “Para o sistema Dimetra instalado na rede SIRESP [...] não existem no mercado nacional e internacional fornecedores alternativos para as control rooms e consolas de despacho [...] nem para o indispensável upgrade” de software.

Outros contratos

Este nem foi, contudo, o negócio mais valioso para a Motorola assinado no âmbito do SIRESP. Em Dezembro de 2014, a empresa já tinha conseguido ganhar um concurso público para fornecimento de “6856 equipamentos terminais rádio e respectivos acessórios para utilização no SIRESP”. Valor do contrato: 2,888 milhões de euros. O documento consultado pelo PÚBLICO não evidencia que o negócio tenha suscitado qualquer tipo de dúvida ao TdC. Assinado pelo antigo secretário de Estado da Administração Interna, Fernando Alexandre, e pelo director-geral da Motorola Solutions Portugal (e administrador da SIRESP), Juan Manuel Rodrigues, o contrato pressupôs um período de 30 dias para verificar as quantidades e testar a qualidade dos bens entregues e tem um prazo de garantia (para substituição de equipamentos ou reparações) de cinco anos.

São estes dois negócios que explicam boa parte dos 4,43 milhões (valores sem IVA) que a Motorola já ganhou com entidades públicas desde 2008. Segundo o Portal Base, a empresa de equipamentos de telecomunicações já tem 15 contratos como adjudicatária, embora com valores menos sonantes e nem todos na esfera do SIRESP (entre 2008 e 2010 foram celebrados sete contratos de ajuste directo com o município de Lisboa para manutenção e assistência dos sistemas de comunicação de emergência, por 454 mil euros).

O contrato publicado mais recentemente no Base refere-se à venda ao INEM de uma consola de despacho fixa para a rede SIRESP, por 36 mil euros. Mais caro, por exemplo, foi outro negócio fechado em Maio de 2015, em que a ANPC desembolsou 170 mil euros por uma “aplicação para mapas de cobertura (TRACES-UMR) destinada a reforçar o serviço da rede SIRESP em situações de emergência”.