Maria mostrou a Donato como (quase) morreu, numa fotografia de Artur Pastor

De visita à exposição Mar Nosso, no Museu Marítimo de Ílhavo, um casal de antigos pescadores de Caxinas (re)encontrou-se, através da obra do fotógrafo Artur Pastor, com as memórias de um Portugal engolido pela maré do tempo.

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Houve um dia em que Maria Viana quase morreu. Ela diz mesmo “morri”, como quem desdenha o imperfeito “morria”, tão grave foi que o mar quase a levasse, quando tentava apanhar sargaço junto ao cais norte do Porto da Póvoa de Varzim. Muitas vezes o contou a Donato Maravalhas, o marido, que nunca duvidara da história. Mas agora, no Museu Marítimo de Ílhavo, de dedo tocando uma fotografia de Artur Pastor que retrata um triângulo de mulheres catando “argaço” naquele mesmo mar agitado, “bulitcheiro”, ela deixa-se arrastar até àquele dia em que quase o deixou viúvo — acrescentando à exposição Mar Nosso novas legendas, e um falar a perder-se, também ele, na maré dos tempos.

Na casa deles, a sul da Póvoa, na comunidade piscatória de Caxinas, já em Vila do Conde, quase não há fotografias. Toda a sua história está fechada em dois corpos castigados por décadas de trabalho e quase ensimesmados numa vida a dois, sem filhos, que já passou das bodas de ouro. Poupados nas palavras, parecem-nos seres muito diferentes dos que habitam nesta espécie de aldeia grande à beira-mar, pejada de casas, de gente aos milhares que se vigia socialmente, e de histórias que perpassam, aos repelões, como vagas tocadas pelo vento, nas conversas dos cafés que nem Donato, 76 anos, e muito menos Maria, nos seus 74, frequentam. Mas neste silêncio aparente, interrompido por um bom dia, boa tarde, havia, sabíamos, muito mais. E a obra de Artur Pastor, exposta por estes dias, e até 27 de Julho, no MMI, seria prova bastante de que, com paciência e perseverança, um jornalista, como um pescador, acaba sempre por fazer uma boa maré.  

Apesar de reformados, hoje o mar é ainda deles. Mesmo que já não tenham o pequeno barquito com motor fora de borda, o Miguel e Sofia, em que Donato foi o arrais de Maria, uma caxineira de armas que, com 48 anos, regressou aos bancos de escola para completar, à noite, a 4.ª classe, tirar a cédula e, imagine-se, ir para o mar, ali na costa, com ele. Foi, assume, um falatório. “Nem queires saber o que se dezia na rua! Que a mulher quer-se in casa”, diz-nos. Ser sobrinha-neta da tia Antónia “Balé”, a única mulher-arrais das Caxinas, de quem herdou a alcunha, não a livrou da fama. Má, por ali, ao contrário do que acontecera, durante décadas, no mesmo concelho, a sul, na comunidade de Vila Chã, que ficou famosa por lhes dar, a várias delas, a primazia no governo dos barcos.

Maria e Donato vêem o catálogo que acompanha a exposição "Mar Nosso" no Museu Marítimo de Ílhavo (editado numa parceria com a Âncora Editora)
Donato Maravalhas, 76 anos
Maria "Balé", como é conhecida na comunidade piscatória de Caxinas, em Vila do Conde, onde nasceu e sempre viveu. A alcunha veio-lhe de uma tia
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Maria e Donato vêem o catálogo que acompanha a exposição "Mar Nosso" no Museu Marítimo de Ílhavo (editado numa parceria com a Âncora Editora)

Cruz de madeira em terra fria

Na casa onde vivem desde que se casaram, em 1961, o mar faz-se escutar quando está de maus fígados e Donato, que lhe conhece as manhas, não o tira da vista dia nenhum, a menos que alguma doença o impeça. Já o atravessou de cabo a rabo, até à Terra Nova e ao círculo polar, na Gronelândia. E ali, ainda solteiro, viu-se sozinho entre outros pequenos dóris, os botes de um só homem em que pescava à linha de mão, quando o seu navio, o Sr.ª da Vida, abandonou a companha para navegar até ao Gil Eannes e tentar, sem sucesso, salvar um companheiro vítima de doença súbita. Acabaram por ter de o sepultar lá entre os “esquimóses”, na pequena localidade costeira de Holsteinsborg, onde outros portugueses, e alguns deles vizinhos deste casal, acabaram também, sob uma cruz de madeira em terra fria.

A estes de nada lhes valeu São Donato, mártir muito venerado pelos mareantes, e cujo corpo, trazido de Roma “inteiro e incorrupto”, está depositado na Igreja de S. Francisco de Azurara, na margem esquerda do rio Ave, a menos de uma hora a pé das Caxinas. Há meia dúzia de Donatos entre os mais de 20 mil portugueses que foram ao bacalhau, essa saga estimulada, política, financeira e simbolicamente, pelo Estado Novo. E o nosso, como os outros, familiares ou seus conhecidos, nasceu nesta comunidade piscatória, onde os pescadores confiam na sua destreza, mas, acima de tudo, se confiam, ainda muito, ao Senhor dos Navegantes, à Senhora da Guia, do Socorro, ou da Bonança, e aos homens e mulheres que, alcançando a santidade, pareçam ter um qualquer domínio sobre as vagas.

O afilhado de São Donato, puto baixo e tão franzino que na sua primeira viagem ao bacalhau foi alvo de uma aposta entre os oficiais e os pescadores mais velhos, para ver se o seu corpo passava — e passou — por uma escotilha, aprendeu com os melhores. E rapidamente se tornou numa das primeiras linhas dos navios por onde andou. Foi isso que lhes permitiu pagar depressa uma das casitas, já com água e saneamento, que um empreendedor local, António Ferreira Vila Cova, começava a construir numa rua estreita, uma travessa que hoje tem o seu nome. Por ali, e por outras ruas do lugar, mulheres suportavam as longas ausências, atirando-se ao mar para catar sargaço, penetrando terra dentro à procura de lenha, ajudando nos pequenos barcos que enchiam a praia que é hoje dos turistas, ou, mais tarde, trabalhando nas fábricas de conservas. Tudo para poderem, à chegada deles, após seis meses de faina, entregar a Vila Cova, se possível, todo ou quase todo o ganho dos homens, num negócio selado com um aperto de mão e que em raros casos deu para o torto.

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Mergulho no tempo

Maria “Balé” e Donato Maravalhas não conheciam o trabalho de Artur Pastor, cuja fabulosa obra dedicada ao mar é tema da mais recente exposição do Museu Marítimo de Ílhavo. E levá-los ali, a uma casa que guarda memórias da faina maior, foi mais fácil do que se admitia. Jerónimo, o irmão mais novo de Maria, há muito que insistia no convite. O P2 teve mais sucesso. É preciso que se diga que nos conhecemos há muito. De vizinhanças e reportagens antigas, em que um e outro foram fontes preciosas para informações que um jornalista terrenho, estranho ao rolo (baloiço) de um barco, é incapaz de descortinar. E isso talvez ajude a explicar aquele sim de Maria, tão sem hesitações. Ele, à boa moda local, disse-nos que até gostaria de ir, mas que faria como ela entendesse. E ela entendeu que era tempo, e que falando ao seu jeito, “simples”, teria algo a dizer sobre esse universo que Pastor retratou no tempo em que ela era uma jovem quase casadoira e as crianças circulavam “nuinhas” pela praia, molhando a sua inocência nas águas frias. como se vê na última fotografia que acompanha esta reportagem, a que Artur Pastor chamou tão simplesmente Pescadores, feita precisamente ali perto, na Póvoa de Varzim que o fotógrafo não conseguiu distinguir de Caxinas.

Artur Pastor (1922-1999), um regente agrícola, conjugou ao longo de décadas o seu trabalho no Estado com uma enorme paixão pela fotografia que o levaria a fundar a fototeca do Ministério da Agricultura — na qual incorporou mais de dez mil fichas documentais, em papel, acompanhadas sempre de imagens sobre práticas agrícolas — e o atraiu também às principais comunidades piscatórias da costa portuguesa. Do Algarve, onde viveu durante o serviço militar, no início da década de 40, ao norte, cujas praias começou a visitar durante o tempo em que foi destacado para os serviços do ministério em Montalegre, na década de 50, a sua Rolleiflex fixou a vida e o trabalho de milhares de pessoas. Algumas delas foram eternizadas para, em 1957, entrarem no álbum Nazaré, presente para a jovem rainha Isabel II, de visita a Portugal. Gente que, apesar das diferenças no modo de vestir, na arquitectura dos lugares, nas artes de pesca e nas embarcações, tinha em comum essa relação intensa com o mar que Maria e Donato partilham também.

arquivo municipal de lisboa / colecção artur pastor
arquivo municipal de lisboa / colecção artur pastor
arquivo municipal de lisboa / colecção artur pastor
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arquivo municipal de lisboa / colecção artur pastor
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arquivo municipal de lisboa / colecção artur pastor

A viagem foi, assim, um mergulho no tempo, que os fez recuar aos anos em que as ruas, de areia, eram indistintas dos fieiros de dunas onde estendiam as peças (redes) da sardinha, e em que quase tudo se fazia fora de casa, como Pastor fotografou, por exemplo, em Albufeira. Tirando a arquitectura alva do lugar, podia ser noutra vila piscatória qualquer, sem água “encanada”, feita de mulheres procurando o fontanário e dois, ou muitos mais, dedos de conversa; feita de crianças tornadas adultos sem chegarem a ser jovens, como Maria, que entrou numa fábrica de conservas pela primeira vez aos 13 anos, e Donato que, perdido o pai aos 16 anos, pegou no barquito dele, escolheu dois putos ainda mais novos e, contrariando a vontade da mãe, as reticências legais do cabo-do-mar e a sua inexperiência, se fez, assim de repente, homem. Que os irmãos, mais velhos, estavam já lá longe, nos Mares do Fim do Mundo, o título do livro de crónicas que, por esses dias, Bernardo Santareno escrevia sobre a pesca do bacalhau.

Nada disto está à vista nas imagens de Pastor, um homem metódico, que, conta-nos o filho, Artur como o pai, levava a organização aos mais ínfimos limites e que parece claramente ter sido influenciado, na sua obra, por essa forma de ser. O fotógrafo do campo e do mar, procurava, no campo e no mar, o cruzamento perfeito entre o gesto humano e a natureza, a confluência das linhas de força, a beleza pictórica do trabalho, raramente se deixando (con)vencer pelo imprevisto. Nele, até a viuvez parece pacífica — e, sim, é certo que estas mulheres aprenderam a viver em paz com a morte tantas vezes violenta dos seus —, e até a espera de um barco que tarda em chegar parece complacente. Mas no dia-a-dia de quem vive na língua da maré há mais ansiedade do que se consegue perscrutar nesta colecção imensa de um Portugal que já não é senão memória. E basta ouvir este casal, para se perceber, pelo menos um pouco, como é viver com o coração nas mãos.

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Um modo de dizer o português

Voltemos à imagem das sargaceiras na Póvoa de Varzim, rodeadas de apenas mar, e bem mexido. Faltam-nos referências, mas a Maria não. As vagas, correndo em duas direcções, dizem-lhe tudo, e tudo lhe chega num falar tão estranho ao resto do país, esse modo de dizer o português que há uns anos levou Ricardo Pais, então director do Teatro Nacional de São João, a pedir que “traduzissem” para caxineiro as falas de duas personagens da beira-mar com quem D. Juan se cruzava na peça do francês Molière, levada à cena no Porto. Um falar que a escola, a televisão, e o contacto com o mundo vão depurando, da mesma forma que o vento, com o tempo, alisa as rugosidades das pedras na praia. Maria, contudo, parece abrigada desta nortada e tudo lhe sai ainda como nos dias em que esta fotografia foi feita.

“Eu, sabes, já morri afogadinha aqui neste lugare, [em] que nós andabemos atrás do argaço e do botelho [outro tipo de alga]. O meu home andaba inbarcado no bacalhau. Pra mim, isto era ientre os dois cais da Póboa. Lá ao Norte inda lá istá, os dois cais. E o mar binha — tás a ber como eu te cuonto muntes biezes, Nato! Binha daqui de fora, e ieu ia pela maré abaitxo. Eu fuoi atrás do argaço, com mais meia duza dielas, da Catchina. E o mar estava maré bazinha como istá aqui [na foto], mas depois batia [no cais] e lebabe-nos. E eu c’o ganhapãozinho tcheio de argaço, ia siempre pela maré abaitxo.”

Os instrumentos de trabalho ajudam-na a identificar-se, também. “Este era o [tipo de] ganhapão que usabemos. Isto pode ser pobeiros ou catchineiros. Nós ‘stábemos ali no meio porque daba muita francelha [outra alga] e botelho, que dabo muito dinheiro. A água [já não diz auga, como os antigos] dabe-nos pelo joelho.” Salvou-se. Mas como? — “Fuoi uma tia minha que já morrieu. Ela disse: — ‘Bós segurai-me.’” Nato interrompe para acrescentar o que ela já lhe contara: —“Éles botabo os ganhapões umes às oitres, e segurabo nela.” Ela prossegue: — “Eu sentia o meu pezinho a fugir e pensaba:’ Oh, bou-me morrer.’ Quando me safei, bim logo embora, só parei in casa. Eu aqui morria afogadinha, se num é essa minha tia que já está enterradinha, e o Senhor a tenha lá munto tempo sem mim.”

Dormir no chão, até eles voltarem

De vez em quando, a necessidade redundava em tragédia. Não foi o caso, mas quase. “Eu num queria largar o ganhapão, e ia siempre. Nós tínhemos que comer. Bocê está a ber o mar encabalado aqui?”, explica ao consultor do museu, Álvaro Garrido, que nos acompanhou por minutos na visita à exposição.

“O mar parece lisinho, mas quando bem [vem] apanha tudo”, completa. “Dantes binha aquiele sargacinho de fora, ós malhões, pela [época da] senhora da Assunção e nós passábemos semanes a apartar, apartar. Depois bendia-se e daba dinheiro. [Ficávamos] queimadinhos ao sol, a apartar com aquela paciênça. Mas nós tínhemos de ir, p’ra cunseguir uma posta de bacalhau”, argumenta, confessando vergonha de comprar carne num talho, numa época de carestia, e em que era suposto que as mulheres replicassem em terra o sacrifício dos homens nos mares da Terra Nova a ponto de, entre as mais velhas, haver o hábito de se vestir roupa preta, de se taparem móveis e faianças, e de se dormir num colchão no chão, até eles voltarem.

“Eu num tinha filhos, num podia dezer qui [a carne] era p’ra ieles. E o meu home dezia: ‘Bai, cuompra e come. Num ti importes. Num olhes pr’o puobo.’” “Quem trabalha tem de comere!” — reforça, agora, Donato, que segue, atento, o rememorar de Maria. “Eu andava sempre ensarrabalhadinha”, insiste ela, recorrendo a um adjectivo muito próprio dali e que nos dá a imagem de alguém sem tempo para despir sequer a roupa do trabalho, e cuja beleza, nada difícil de perceber, hoje, se escondia então sob uma pele macerada pelo sol e pelo sal, e pelas jornadas infindáveis de trabalho.

Antes de se casar, conheceu a vida em Matosinhos, cidade onde, como centenas de caxineiros, passava temporadas, enquanto o pai andava nas traineiras da sardinha, experimentara já a dureza das fábricas de conservas e as condições de vida a lembrar um famoso filme de Ettore Scola, Brutti, Sporchi e Cattivi, que retratava a Roma dos pobres desses tempos. “Nós bibíemos num quartinho tuodos juntos: os filhos, homes, sei lá o que era aquilo! Tínhemos aquelas caixas de sabão e os colchoeszinhos de palha que éles [elas] fazio à mão. E os criatures estabo sempre no mar. E nós, cando era aqueles seis meses, tínhemos que nos remediare.”

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Mar sob um manto espesso

Donato não chegou a ir para Matosinhos, para as traineiras. Testadas as suas capacidades na enseada da sua “Catchina”, por ali aprendeu a conhecer o mar, mesmo quando este, como se vê numa das mais poéticas imagens desta exposição, se esconde sob um manto espesso. “Co ‘a névoa era p’rigoso porque a giente num se bia, e está sujeito a acuntecer arguma coisa. Mas nós estabemos habituados e dabemos co’a costa de calquer maneira”, garante, confessando ter aprendido a ler o mar com um “antigo”. “Era um belho que já tinha uns sessienta ou setienta anos, e eu era rapaz. Isto é outentico: um dia de néboa eu bi aquiele home na praia, abaitxo do sorba-bides [salva-vidas]. “Atcho qui era o tio Manel Cambola belho, de coquinhas, na areia. Só p’lo bater da maré já sabia o mar qui era. Ele tchamou-me e disse: Ó rapaz! Se tu quieres sabere o mar, de uma vez p’rás outres, tu apriendes. Olha, s’iele faz ressaca aqui na praia, se for bulitcheiro, já se conhece. E isso ficou-me escrito, e nunca mais me esqueceu. Como é que eles sabiam, os velhos? Isso é qui era saber. Agora é tudo moderno, com os cumputadores.”

O tempo e o desuso ajudam a esquecer. Maria, por exemplo, já não se lembrava quando é o mês de Santiago — é o Julho, atira rápido, Donato —, altura em que as mulheres e crianças iam para as pedras, “arengar” o borralho [uma alga], como se vê noutra fotografia sobre apanha de sargaço na Póvoa, que a atrai. “Usabe-se uma foucinha, como se fuosse no campo, p’ra cegar o taborrão, qui é este argaço qui está pegado ós penedos e anda no ar, comprido. E quando era cu’a maré tcheia apanhabemos o que andaba lebado nos fundõezinhos. E a canalhinha andaba tuoda cum nós. A minha mãe, de bebé, andaba assim, e uma tia minha andaba com os remos, dentro do barco. O nosso Quim nascieu com o cuzinho dele prieto, como se fuesse pisado, qui era d’ela incostar òs penedos, ali, tuodos los dias. Eremos três irmãos ainda, na altura.”

É famosa, nas Caxinas, a história da tia Adelaide do Abel, que, enterrou um filho bebé na areia — deixando-lhe a cabeça fora — para que este não gatinhasse até ao mar, enquanto a pobre mulher se atirava ao sargaço. “Eu já fiz isso a uma sobrinha minha. Era p’ra elas num fugire. A minha sobrinha tchorava sem destino. Ela gritaba: — ‘Ó tia...’ E eu dezia: — ‘Cala a boca.’  Eu tinha de tirar a sardinha do barco e cum ela num podia.”

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Tudo se fez, tudo se passou, e estamos aqui

A praia era a fábrica, a creche, o salão de baile, sala de jogo para uma sueca entre novos ou velhos, sala de jantar, abrigada do vento, entre duas catraias — como Pastor viu em Esposende —, em que um pão, um pouco de chouriço e a panela de sopa, levada de casa para ali, com as “morgas” — as malgas — faziam uma refeição, recorda Maria. Quantas vezes, “emborcando” (virando ao contrário) parcialmente os barcos, seguros por um remo nesta periclitante posição, estes lhes davam sombra para um sono reconfortante, antes de, pelo “assejo” (o crepúsculo), se fazerem a uma nova maré do mar? E quantas vezes esta aparente pacatez era quebrada pelo inesperado, pelo barco que, perdido o controlo, era arrastado para a zona da rebentação, como o fotógrafo fixou na Nazaré, numa rara imagem em que o caos domina sobre o enquadramento, e Pastor parece menos Pastor. Quantas vezes?

“Olha, tudo se fez, tudo se passou, e estamos aqui”, diz, desarmando-nos, Maria “Balé”. Os tempos, esses, é que são outros. A figura de uma varina levando um belo espécime de peixe-espada pela mão recorda-lhes que já quase não se pesca à linha por esta costa fora, e que as redes que nas últimas décadas tomaram o seu lugar “estragaro tudo”. “E quando o mar leba e ficam no fundo, é uma podridão.”, insiste. “À linha é que iera bom, mas queria homes para trabalhare”, admite. E isso, hoje, na sua “Catchina”, é um problema. Fugindo aos baixos salários que não compensam as longas jornadas da pesca artesanal, cada vez mais pescadores da comunidade optam por trabalhar fora do país e depois de alguma discussão já começou a chegar mão-de-obra indonésia para ajudar.

Na verdade, se Artur Pastor voltasse hoje à praia de Donato e Maria, a mesma por onde passeou com a mulher, Rosalina, que “pescara” em Braga nesses idos de 50, nada seria reconhecível, a não ser o farolim do Aguilhão, que se mantém, já sem uso, na enseada. As catraias, com as suas velas latinas, deram lugar às barracas de praia, forradas também elas a panos, e nada, na língua da maré, nos fala dos pescadores que houve por aqui. Mais adentro, nas ruas, há casas onde, a cada Inverno, se choram náufragos, mas esses, cada vez mais, morrem longe. De norte a sul, este Mar Nosso de Pastor quase desapareceu. Não engolido pelas águas, mas pelo tempo. E as crianças não se entretêm com uma carapaça de santola — o brinquedo de um pobre, como intitulou —, pois nem sequer fazem da praia o seu recreio. E é por isso que as vozes deste casal ecoam como o rumor de um búzio, que, encostado ao ouvido, nos leva para muito longe: para um país que já não é.

Esta reportagem encontra-se publicada no P2, caderno de domingo do PÚBLICO

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