Tragédia na aldeia: para além da simpatia

A remontagem da ópera Peter Grimes em cena no São Carlos é de altíssima qualidade.

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O papel titular foi confiado ao tenor britânico John Graham-Hall, que faz valer com exemplar entrega a sua longa experiência de palco ENRIC VIVES-RUBIO

A ópera Peter Grimes (a primeira de Benjamin Britten), estreada em 1945, impôs-se desde então como um dos exemplos mais impressionantes, e com maior sucesso, da ópera moderna; mas teve de esperar por 1994 para ser levada à cena entre nós, através de uma produção importada da Escócia, com encenação de Joachim Herz (quatro anos depois, a Gulbenkian apresentou uma versão de concerto com participação do próprio coro). Devido à história recente da nossa política cultural, que pôs em causa o planeamento artístico a médio prazo, o regresso de São Carlos a Britten não pôde fazer-se através de uma nova produção em parceria com outros teatros (como sucedeu no início do ano com a exemplar montagem da ópera Billy Budd no Teatro Real, em Madrid), mas através da remontagem de uma encenação alheia (para a English National Opera, em 2009). Felizmente, esta encenação do americano David Alden, com cenografia de Paul Steinberg e figurinos de Brigitte Reiffenstuel, é de altíssima qualidade, e a remontagem (dirigida por Ian Rutherford) envolveu não apenas o coro e a orquestra do Teatro Nacional de São Carlos, mas também seis solistas portugueses.

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A ópera Peter Grimes (a primeira de Benjamin Britten), estreada em 1945, impôs-se desde então como um dos exemplos mais impressionantes, e com maior sucesso, da ópera moderna; mas teve de esperar por 1994 para ser levada à cena entre nós, através de uma produção importada da Escócia, com encenação de Joachim Herz (quatro anos depois, a Gulbenkian apresentou uma versão de concerto com participação do próprio coro). Devido à história recente da nossa política cultural, que pôs em causa o planeamento artístico a médio prazo, o regresso de São Carlos a Britten não pôde fazer-se através de uma nova produção em parceria com outros teatros (como sucedeu no início do ano com a exemplar montagem da ópera Billy Budd no Teatro Real, em Madrid), mas através da remontagem de uma encenação alheia (para a English National Opera, em 2009). Felizmente, esta encenação do americano David Alden, com cenografia de Paul Steinberg e figurinos de Brigitte Reiffenstuel, é de altíssima qualidade, e a remontagem (dirigida por Ian Rutherford) envolveu não apenas o coro e a orquestra do Teatro Nacional de São Carlos, mas também seis solistas portugueses.

A história é triste: um pescador de mau carácter, com assomos de violência, explora órfãos aprendizes; a morte acidental de um deles leva a aldeia a acusar o pescador de assassínio; perante a intolerância local, só quebrada pela camaradagem de um capitão e pela compaixão da professora primária, a queda mortal do segundo aprendiz e o consequente desmoronamento dos planos do pescador conduzem-no ao suicídio. Britten é um mestre a retratar a claustrofobia desta comunidade piscatória, entrelaçando, em tensão permanente, a psicologia individual e a psicologia social que conduzem ao trágico desenlace. Para além da simpatia que se possa ou não nutrir por Peter Grimes, a ópera é uma reflexão sobre a irracionalidade e os perigos das pulsões que atravessam a vida social e isolam, de forma por vezes irremediável, os indivíduos.

A encenação apoia-se numa cenografia despojada, económica, elegante na sua preferência por triângulos, superfícies em rampa e cores sóbrias, com traços naturalísticos transformados por um rigoroso desenho de luz; uma cenografia que chega  a ser francamente bela. A visão de David Alden manifesta-se ao longo da ópera com uma tripla tendência: a surrealizante, na incorporação da tempestade nos movimentos do coro (com presumível ajuda da coreógrafa Maxine Braham), ou no desbragamento da festa aldeã; a grotesca, na masculinização da estalajadeira ou no tratamento caricatural das suas sobrinhas; e a romantizante, ao dar relevo inusitado à relação entre Grimes e a professora, que é colocada no centro da tragédia.

A direcção musical, a cargo do experiente maestro Graeme Jenkins, é excepcionalmente enérgica mas também atenta ao detalhe orquestral e às cambiantes expressivas da partitura, sendo difícil de imaginar maior eficácia a puxar por instrumentistas e cantores, que responderam com total entrega. O coro, a quem se pede imenso nesta ópera, e em particular nesta sua encenação, teve um desempenho avassalador, e merece ser colocado no topo do pódio. O elenco de solistas é bastante equilibrado e de alto coturno. O papel titular foi confiado ao tenor britânico John Graham-Hall, que faz valer com exemplar entrega a sua longa experiência de palco; apesar de um vibrato por vezes demasiado largo, os seus agudos são ainda fáceis e claros, e os recursos interpretativos, impressionantes. A soprano Emily Newton desempenha o papel da professora Ellen com verve e sensibilidade. O barítono Jonathan Summers compõe com perfeição e autoridade o personagem do capitão Balstrode. A meio-soprano Rebecca de Pont Davies, enquanto tia (Auntie), atravessa o palco com ironia e estudada contenção, servida por uma voz sólida e uma presença marcante. O metodista bêbado, Bob Doles, dá ao tenor James Kryshak uma oportunidade de exibição histriónica bem aproveitada. Swallow, a autoridade local, é um papel que parece feito de propósito para o baixo Graeme Danby, capaz da maior gravidade como do humor mais rasteiro. Maria Luísa de Freitas, como velha coscuvilheira (Mrs. Sedley), foi exemplarmente clara e convincente na atitude, no tom, na dicção. Também o barítono João Merino (Ned Keene, o boticário) teve uma prestação fantástica, quer na irrequietude que imprimiu ao personagem, quer na fluidez da emissão vocal. O tenor Carlos Guilherme (Reverendo) foi, como de costume, irrepreensível. No pólo mais jovem, o baixo Nuno Dias compôs com invejável segurança um imponente carroceiro (Hobson), enquanto às sopranos Bárbara Barradas e Mariana Castello-Branco coube o exigente papel, muito explorado pela encenação, de sobrinhas, papel no qual evidenciaram um largo leque de qualidades, difíceis de enumerar como de superar.

Resta introduzir uma nota sobre a actualidade musical de Britten: como é sabido, a narrativa da vanguarda retratou-o como um conservador. Isto é injusto. Há na sua música uma renovação da linguagem herdada que é tanto devedora do expressionismo atonal como da actualização neoclássica das formas do passado, e vai selectivamente incorporando os recursos expressivos de que necessita, seja para evocar experiências externas, seja para invocar emoções psicológicas. Em Peter Grimes temos quer uma representação naturalística dos elementos (vento e ondas), quer um interlúdio em forma de Passacaglia, que alude ao obsessivo resvalar mental do pescador. Curiosamente, poucos dias antes da estreia deste espectáculo no São Carlos foi estreado um magnífico concerto em que se encontra tanto uma melancólica Passacaglia como uma feliz alusão ao mundo externo (canto de pássaros). Escrita por Sérgio Azevedo, esta obra (Giochi di Uccelli – Flute Concerto) decorre da mesma abertura ecléctica ao passado e ao presente que fez o sucesso de Britten, e atesta ainda hoje a sua fertilidade.