Na música ou nas artes: o rasto de David Lynch está por todo o lado

O imaginário do realizador tornou-se ubíquo, influenciando a música, a arte e culturas contemporâneas — como o regresso de Twin Peaks volta a lembrar.

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A cantora Chrysta Bell e David Lynch DR

Antes de ganhar fama como realizador de cinema e séries de TV, David Lynch queria ser artista plástico. Pintar era a sua paixão, embora sempre tenha assumido que os seus filmes respiravam as mais diversas influências – da pintura de Francis Bacon às fotos de William Eggleston e Joel-Peter Witkin, ou a arquitectura de Frank Lloyd Wright Jr. Não surpreende que, nos últimos anos, depois de ter parado de filmar, desiludido com a indústria do cinema, se tenha dedicado à pintura, à música ou à meditação.

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Antes de ganhar fama como realizador de cinema e séries de TV, David Lynch queria ser artista plástico. Pintar era a sua paixão, embora sempre tenha assumido que os seus filmes respiravam as mais diversas influências – da pintura de Francis Bacon às fotos de William Eggleston e Joel-Peter Witkin, ou a arquitectura de Frank Lloyd Wright Jr. Não surpreende que, nos últimos anos, depois de ter parado de filmar, desiludido com a indústria do cinema, se tenha dedicado à pintura, à música ou à meditação.

Agora regressa com Twin Peaks, numa altura em que nunca foi tão nítido que a sua influência se entende por quase todos os territórios criativos, da música às artes visuais, da arquitectura à moda (Raf Simons, Comme des Garçons, Kenzo). E isso sucede porque mais do que uma técnica, um modelo ou um tipo de narrativa, aquilo que ele expressa é mais intangível e evocativo.

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Gregory Crewdson

Não é difícil ouvirmos uma canção e imaginarmos de imediato uma pequena vila como Twin Peaks, onde os segredos mais íntimos acabam por se manifestar no exterior. Da mesma forma que é vulgar olharmos para um quadro, uma instalação ou uma fotografia e vislumbrarmos o imaginário de Lynch. Basta pensarmos nas fotografias de Gregory Crewdson, que trabalha muito a partir da matéria dos sonhos, com ênfase na atmosfera, nos cenários, na composição da luz e nos dramas dos personagens.

São simultaneamente figuras alienadas e isoladas aquelas que vemos, colocadas em situações de uma familiaridade terrífica, captando momentos liminares, um antes e um depois não se sabe bem do quê, espécie de cessação do ritmo quotidiano, criando mistério e uma sensação de incompletude. É o lado sombrio do sonho americano que nos é devolvido, com a paisagem ostensivamente idílica utilizada como metáfora de neuroses.

Tal como as personagens de Lynch, também nas fotos de Crewdson, vislumbramos figuras enredadas na paisagem, descendo à profundeza de si próprios, fazendo surgir o desconforme e o inexplicável, em imagens saturadas de cor. As suas fotografias são histórias condensadas onde o enigmático irrompe na normalidade. Às vezes parece repetir-se, mas a verdade é que as suas imagens são imediatamente identificáveis e causadoras de perplexidade. Não é isso que dizemos continuadamente acerca de David Lynch?

Mas, precisamente porque é de todas as artes a mais imaterial, é na música que muitos dos traços que associamos a Lynch mais se têm disseminado. Ele que ao longo dos últimos anos lançou dois álbuns (Crazy Clow Time e The Big Dream) e envolveu-se em vários projectos colaborativos – com o pianista Marek Zebrowski (Inland Empire), com o músico John Neff no projecto Bluebob, ou com Danger Mouse e Sparklehorse na obra Dark Night Of The Soul – nunca escondeu que a música tinha uma função primordial na sua arte.

Nestes últimos anos, para além desses trabalhos, produziu ainda a cantora Chrysta Bell e apadrinhou vários nomes das novas gerações, como as Au Revoir Simone ou a sueca Lykke Li), não escondendo também que Twin Peaks nunca poderia ser dissociado da excelente banda-sonora de Angelo Badalamenti e da canção do genérico – Falling de Julee Cruise.

Para o regresso de Twin Peaks a aposta musical parece ser Johnny Jewel, líder dos Chromatics ou Glass Candy, responsável pela editora Italians Do It Better e autor de várias bandas-sonoras. Não espanta que assim seja. A sua música parece ser feita para escutar quando a noite se abate melancolicamente na cidade, projectando néones, vozes aveludadas e lábios excessivamente pintados. Mas mesmo que Lynch nunca tivesse feito música, ou que não tivesse trabalhado de forma próxima com uma série de figuras, a sua influência far-se-ia sentir na mesma.

O seu nome tornou-se mesmo adjectivo para muitos melómanos. Por música “lynchiana” entende-se um tipo de sonoridade voluptuosa, com um imaginário onde a realidade mais mundana pode combinar na perfeição com a mais macabra, qualquer coisa de dimensão mental, uma atmosfera de pesadelo ou de romantismo impossível, nunca definidas de maneira exacta. O arquétipo tanto pode ser verificável em canções de vozes femininas como Anna Calvi, Lana Del Rey ou Bat For Lashes, ou em inúmeros exemplos da música dos últimos anos (de Perfume Genius a Arca, de Khonnor a Salem), passando pelos suecos The Knife, Fever Ray ou Iammiwhoami, que operam algures numa zona recorrente em Lynch: os corpos transformados, as criaturas bizarras, a beleza do grotesco ou o confronto entre o consciente e o inconsciente.  

Mas não é evidentemente de hoje o alcance e influência de séries como Twin Peaks ou de filmes como Eraserhead, Blue Velvet ou Mulholland Drive nas representações, nas imagens e em muitos sons da música popular – que o digam grupos como os Bauhaus ou Pixies nos anos 1980. Mas foi na última década que aquela sofisticação excessiva, a estranheza normal e as alusões sonoras dos anos 1950 (quem não se lembra de Blue Velvet de Bobby Vinton?) entraram decisivamente no corpo da música e no imaginário da arte e da cultura contemporânea.

David Lynch tornou-se ubíquo, está em todo o lado, convidando-nos a mergulhar no seu mundo que é, afinal, o nosso também.