Os muros, como os corpos, também se deslocam

Em vez de lhes dar voz, Muros dá corpo aos deslocados e estrangeiros à força. O espectáculo de Né Barros abre esta quinta-feira no Teatro Nacional São João o Festival DDD – Dias da Dança, que nos próximos 16 dias decorre entre Porto, Gaia e Matosinhos.

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Imagine um muro. Qualquer muro, alto ou baixo, de betão armado, de arame farpado, de água; um muro imaginário (e mesmo assim real), um muro virtual (idem). Agora imagine que está preso atrás de uma destas barreiras, sem conseguir saltar para o outro lado e impedido de interagir com quem está de fora.

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Imagine um muro. Qualquer muro, alto ou baixo, de betão armado, de arame farpado, de água; um muro imaginário (e mesmo assim real), um muro virtual (idem). Agora imagine que está preso atrás de uma destas barreiras, sem conseguir saltar para o outro lado e impedido de interagir com quem está de fora.

Neste cenário hipotético, de ficção, o leitor é reduzido a um corpo isolado, cansado, deslocado. Em Muros, a nova co-produção do Balleteatro com o Teatro Nacional São João (TNSJ) que esta quinta-feira abre mais uma edição do Festival DDD – Dias da Dança, o público espreita, do lado de fora, o que os corpos fazem enquanto estão aprisionados nestes não-lugares.

No início nada se vê, há um muro de metal a esconder o palco, mas a audição, o sentido que se aguça com o alerta de perigo gerador de um choque eléctrico que desce pelo corpo todo, regista zumbidos e ruídos quase metálicos, que começam a preencher o espaço exterior e, quase em simultâneo, penetram até ao lado de dentro do muro.

Imediatamente a seguir começa a ouvir-se uma voz feminina que fala em francês. É Ana Deus, vocalista e uma das metades da banda Osso Vaidoso, que há-de começar a cantar quando, mais tarde, com a facilidade de quem alça uma cortina, uma estrutura mecânica levanta a primeira parede de metal. É revelado o palco despido onde os cinco bailarinos já estão prostrados, de joelhos. Só então o público começa a vê-la, mas é quase certo que a luta deles, repetida por tantos outros e outras, já começou há muito tempo.

Ao lado dos cinco corpos que se erguem devagar, Alexandre Soares, a outra metade da dupla musical, ataca as cordas de uma guitarra eléctrica. Estão cansados de estar curvados e a música cada vez mais acelerada acompanha (ou provoca) movimentos cada vez mais frenéticos, desesperados, que terminam num palco vazio. Um a um, todos os bailarinos saltaram fora. Prossegue, mais uma vez, a luta pela sobrevivência.

Muros vem dar continuidade à introspecção que Manuela Barros, mais conhecida por Né Barros, começou há vários anos a desenvolver e que, desde Vooum, em 1999, tem vindo a dar o mote a várias peças sobre corpos em viagem, que nunca se livram da sua condição de apátridas.

Além destes corpos deslocados, interessam-lhe questões como a paisagem artificial, imposta, a paisagem em movimento, o território e as suas fronteiras. No fundo, tudo se passa em lugares de tensão, onde “existe um conflito de identidades”, explica a coreógrafa e bailarina no final de um ensaio.

E a dança pode ser o instrumento capaz de sondar melhor todas estas zonas “porque trata dos corpos” e das relações entre eles, defende. Esta “capacidade de abstracção em relação a um referente concreto”, quase de reportagem, dá poder aos corpos para levarem a mensagem até aonde as palavras não chegam.

E quando estas ideias são transmitidas através do movimento, diz a coreógrafa, são convocadas “imagens muito profundas” que se relacionam em “ligações que não são nem preto nem branco”. É este intermédio cinzento (e de todas as outras cores) “que nos permite criar mil interpretações” dentro do espaço teatral, continua Né Barros.

Exílios

Cá fora, no mundo real, antes de começar a construir o espectáculo, Né Barros consultou arquivos de fotografias e relatos de vítimas exiladas, não só durante a crise migratória actual, e a partir daí, começou os ensaios e apercebeu-se da necessidade de ter no palco um dispositivo cénico que tivesse o duplo papel de se movimentar e, ao mesmo tempo, fazer de obstáculo e impedir o movimento e o toque entre os bailarinos.

Conseguiu-o com estruturas criadas pelo arquitecto e cenógrafo João Mendes Ribeiro, que se erguem e caem também conforme a vontade dos corpos que os movem e se encerram lá dentro. Durante a encenação, separam-se os bailarinos dos músicos e a palavra é a única forma de, no meio do conflito, ultrapassar as barreiras e comunicar de fora para dentro. Né Barros diz que nesta peça só a voz é que consegue ser o veículo para passar “mensagens de amor ou ódio, resiliência ou desistência”.

O texto é um conjunto de fragmentos recolhidos e que foram escritos por Eugénia Vilela, e por outros dois poetas que estiveram presos em campos de concentração nazi durante a II Guerra Mundial, o romeno Paulo Celan e o surrealista francês Robert Desnos, a quem os amigos chamavam "sonhador acordado".

É entre este sonho de uma Terra realmente redonda, sem os quatros cantos de Leste, Norte, Sul e Leste, que se (des)constrói Muros, a peça que abre o primeiro de 17 Dias da Dança. Ao todo, e até 13 de Maio, o festival apresentará 35 espectáculos de dança contemporânea espalhados por Gaia, Porto e Matosinhos. Este chega ao Teatro Nacional de São João às 21h30 desta quinta-feira e fica por lá nos dois dias seguintes, no dia 28 às 19h e no sábado, às 18h30.

Após a estreia desta quinta-feira, está programada uma conversa entre Né Barros, Ana Deus e Alexandre Soares, o responsável pela música de Muros, sobre o corpo enquanto ferramenta da liberdade. Já durante a manhã do dia 29, o TNSJ promove o Pé de Dança, uma “oficina de movimento” com o mesmo tema do debate e que pretende reflectir, usando a dança como língua-franca, sobre as questões migratórias da actualidade e a política anti-estrangeiro que continua a ganhar força e terreno na Europa.

Texto editado por Isabel Coutinho