La Bombonera no tiembla, late

No 112.º aniversário do Boca Juniors, o PÚBLICO foi ao templo, como lhe chamou Diego Maradona, para conhecer o bairro e a cancha, mas acabou por abraçar o mito: ele pulsa.

Os jogadores do Boca Juniors e o seu público, na Bombonera
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Os jogadores do Boca Juniors e o seu público, na Bombonera Enrique Castro-Mendivil/Reuters
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Os adeptos do Boca nas bancadas da Bombonera Marcos Brindicci/Reuters
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Carlos Tévez beija a relva da Bombonera Marcos Brindicci/Reuters
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Um momento de um jogo entre o Boca Juniors e o Quilmes Marcos Brindicci/Reuters
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Criança com a cara pintada com as cores do Boca Juniors nas bancadas da Bombonera Marcos Brindicci/Reuters

Os braços descansam no corrimão branco, enquanto o queixo se perde neles. Os olhos tenros não sabem resistir aos seus heróis vestidos de azul e ouro. O rapaz observa o relvado como quem olha a miúda mais gira da escola, com os livros debaixo do braço, cabelo arrumado e um andar de mulher. O que parecia ser só uma paixão tonta, uma idiotice sossegada, transformar-se-ia em algo carnal e selvagem. Uma revolução de sentimentos, em tribo. Quem vai à Bombonera, não vai só para ver um jogo de futebol, vai ser protagonista. Quem vai, vai fazer a vida negra aos rivais que ali ousam discutir a grandeza dos de La Boca. No 112.º aniversário do Boca Juniors, a 3 de Abril, o PÚBLICO visitou o seu estádio, um dos mais míticos do mundo.

Não tem nada que saber. Há duas coisas que fazem um digno xeneize: comer um choripán algures a caminho da Bombonera e ter braço firme e mão morta. A primeira parte é fácil. Junta-se pão, chouriço de uma qualquer besta divina, e chimichurri. Ou seja, azeite, vinagre, coentros, pasta de alho (e alho seco), cebola, orégãos, tomilho, paprica, sal, loureiro e salsa. Haverá outras abordagens para um belo chimi, tal e qual como Martín Palermo, o maior goleador da história do Boca (129 golos), inventava formas de fazer as redes dançarem. Por 40 pesos (€2,3) essa questão fica fechada.

A outra já é mais exigente e, vê-se bem nos mais novos, não está ao alcance de qualquer um. É arte. Esticar o braço ferozmente, deixando a mão cair, inanimada, enquanto os cânticos furiosos prometem amor eterno ao clube. Atrás das balizas que já admiraram golos de Maradona, Batistuta e Caniggia, e até beijos na boca (já lá vamos), a multidão faz esse gesto durante os 90 minutos. Na central a coisa funciona por contágio.

O Estádio Alberto J. Armando, ou Bombonera, fica ali perto da última paragem do colectivo (autocarro) 152, em La Boca, junto ao rio Matanza-Riachuelo. O arco-íris debaixo dos nossos pés é maravilhoso. Esta confusão de cores é a resposta ao sonho de Benito Quinquela Martín (1890-1977), um pintor nascido no bairro: “Quando La Boca tiver ruas de cor, será um imenso sorriso junto ao Riachuelo”. E assim foi.

O bairro, construído por imigrantes italianos de Génova, tem esse nome porque está situado na boca do rio, com um porto, onde atracavam embarcações de todo o mundo. Reza a lenda que foi aqui que se decidiram as cores do tecido que abraçariam o escudo do Boca. Era imperativo, por causa de uma rivalidade com outro clube, mudar de equipamento, por isso os responsáveis decidiram que os jogadores exibiriam a bandeira do país do barco que ali chegasse a seguir. A roleta russa anunciou um barco sueco. E terá sido assim que surgiu a camisola azul e ouro.

La Boca, outrora apenas o bairro da classe operária, é vida. Por ali convivem artistas, que exibem as suas obras ao longo do famoso El Caminito. Em cada esquina, música. Em cada trago de vinho, cultura. Canta-se e baila-se, para quem está ávido da energia argentina. Mostra-se o tango a quem passa, embora sem o encanto e sedução do que acontece ali ao lado, em San Telmo.

Esta aventura por um dos bairros mais pobres de Buenos Aires começou na véspera, com uma missão de reconhecimento. Os que são loucos por este desporto, e até muitos que não o são, têm no estádio do Boca Juniors o que muitos viajantes têm em Halong Bay, Taj Mahal, Machu Picchu ou Angkor Wat. Depois de uma paragem pela Republica de La Boca, um pequeno campo de futebol, onde a relva é cinzenta e dura, com bancadas humildes, garotos a eternizar o clássico “rodinha bota fora”, caminha-se dois quarteirões em busca do templo sagrado. Pouco depois, começa a ver-se, ao fundo, um edifício vaidoso, qual sede do sindicato da paixão do povo, vestido de amarelo e azul. Uma promessa de glória. O sol ilumina-lhe as formas do corpo, sólido e, ao mesmo tempo, secretamente brando, para permitir ser agitado pelos loucos do dia santo. Domingo, o dia de assado e futebol. Lá dentro, no centro do universo, cuidada e bonita, a paciente relva guarda memórias de homens que quiseram ser mais do que isso. Tentaram todos, mas só um olhou o céu nos olhos: Diego Armando Maradona. Ou “D10S”, para os românticos sem cura.

Em Fevereiro, passaram 36 anos desde a estreia do canhoto mais famoso do mundo na Bombonera, onde ele exige que a selecção jogue - ele até prometeu pagar o aluguer. Foi, precisamente, contra o Talleres de Córdoba, o jogo que o PÚBLICO iria ver. Diego estava tocado, mas quis jogar de qualquer forma, nem que fosse infiltrado. Ficou 4-1, com dois golos do miúdo genial que promoveu um duelo entre River e Boca pela sua contratação, quando brilhava no Argentinos Juniors. "Eu ia vê-lo ao campo do Argentino Juniors, quando ele tinha 17 anos. Eu tinha 16. Levava patadas, mas saltava, sei lá. O futebol mudou muito", conta Norberto, vendedor de relíquias de futebol no Mercado de São Telmo. O número 10 ficou em La Boca pouco tempo, seguir-se-ia o Barcelona, mas aquele estádio foi inventado para momentos e presenças assim: divinos.

A Bombonera foi inaugurada em Maio de 1940, num jogo contra o San Lorenzo (2-1). Ricardo Alarcón foi o primeiro herói das gentes de La Boca. Este palco sagrado, eleito em 2015 o melhor estádio do mundo pela revista Four Four Two, viveu capítulos épicos. É só entrar na máquina do tempo e lembrar o golo de cabeça de Martín Palermo, a 35 metros da baliza, ou a sua despedida, dia de lágrimas e de levar uma baliza para casa, um presente do clube. A "cueca" tremenda de Riquelme a Yepes, defesa do River. A estreia de Riquelme foi igualmente especial. Aconteceu em 1996, uns dias depois de uma derrota dolorosa num Boca-Independiente (0-1), um duelo de estilos que fez faísca, por colocar frente a frente Billardo e Menotti, os únicos campeões do mundo pelo país de 86 e 78. Os dois treinadores tinham visões diferentes do futebol: jogar bem vs ganhar a qualquer custo, era o tema. Ainda hoje é. O beijo na boca entre Maradona e Caniggia, depois de um hat-trick do ex-avançado do Benfica ao eterno rival, é imortal. Já o legado de Carlos Bianchi é impressionante: ganhou quatro ligas, três Libertadores, depois de o Boca ter ficado 22 anos sem a cheirar, e duas Taças Intercontinentais, derrotando Real Madrid e Milan.

Domingo. Que alívio. O sol estava lá em cima, a aquecer mais do que nunca. Uma vista de olhos nos jornais, um café e uma viagem de comboio para o centro. “Será que a Bombonera abana mesmo?”, vai palpitando no pensamento. Chegados a La Boca ataca-se um bife de chouriço, para depois, numa goleada desnecessária ao estômago, seguir-se o tal choripán. Os miúdos continuam na Republica de la Boca, à procura de dois guarda-redes para serem alvos de bombas dos que sonham ser um “nueve”. Perto dali, numa esquina qualquer que foge à memória, Maradona está desenhado numa parede, para ninguém se esquecer em que terra está.

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Um momento de um jogo entre o Boca Juniors e o Quilmes MARCOS BRINDICCI/REUTERS

Juan Pablo, um rapaz de 17 anos que pratica boxe e trabalha numa geladaria, diz que o argentino é fácil de decifrar. “Churrascos e futebol. Não é mito”, revela o pibe que falsifica a identificação para ir curtir as noites de Puerto Madero. Mas há mais: chamam "boludo" a toda a gente, escolhem sempre uma alcunha para os outros, até quando acabam de conhecer, para convidar à intimidade e conduzem à campeão, inspirados no Tetris.

“A Argentina vive futebol e respira futebol. Necessitamos mais disso do que de oxigénio. Que nos falte tudo, menos o futebol”, diz Matí, um jornalista de desporto de um jornal de referência. É com ele, já dentro do estádio do Boca, que desmontamos outro mito: “A Bombonera mexe mesmo. É verdade. É uma loucura, não te assustes”, diz. Lá fora, está escrito "La Bombonera no tiembla, late".

Matí explica ao PÚBLICO que não há adeptos das equipas visitantes desde 2013, depois da morte de um noutro campo. Esta situação transforma a viagem dos adversários à Bombonera ainda mais épica. Lembra uma arena medieval, ou Coliseu, quando os homens vulgares lutavam contra bestas para gáudio de quem enchia as bancadas, que estava sôfrega por desgraça alheia. Ali é igual.

Estacionamos na cadeira quase duas horas antes do apito inicial. A Bombonera está despida de gente. Aquela bancada dos camarotes, branca, recta, que não encaixa na moldura, intriga. O amarelo e azul das cadeiras começa a desaparecer, ouvem-se cânticos. As vozes aquecem, os tambores sofrem pancadas.

Fernando Gago vai à frente, a Bombonera sobe de tom. É tempo de fechar os olhos e conquistar pele de galinha. Esta gente já ganhou tantos troféus. Esta multidão viu tantos grandíssimos jogadores a calcar aquele mar verde.

Já não há o talento de tempos idos, mas Gago é um génio a jogar futebol. Recepção-passe-movimento: tac-tac-tac-tac. O ex-Real Madrid domina como poucos o tempo e espaço, obsessões de Johan Cruijff, com a mestria que é necessária para atravessar as venturosas passadeiras em Buenos Aires.

O golo de Benítez, emprestado pelo Benfica, incendeia o ambiente. Começam os saltos e há algo a acontecer debaixo das solas dos sapatos. Ela mexe-se, as músicas da "La 12" multiplicam-se. Tem vida própria, aquele estádio respira, há até quem fale em episódios fantasmagóricos. O sentimento não é bonito quando lembramos que o presidente do clube quer construir outro estádio, deixando a Bombonera para outros eventos. Que maldade seria...

A euforia toma um banho gelado com o golo do empate do Talleres. Depois, os nervos. O central é meio cientista, inventa muito. Faltam ideias no meio campo. Os carrinhos encantam os hinchas. As correrias que prometem uma mão cheia de nada, idem. Os passes para trás irritam-nos e provocam o burburinho que assombra qualquer jogador. As unhas vão desaparecendo. O cabelo é despenteado. A seguir, lembram que são inferno na terra... para os outros. Os cânticos voltam. O vulcão acorda. “Penálti!”, pedem os da casa. E era, mas já lá vai quase um ano sem grandes penalidades para os de La Boca. “Pelotudo!”, gritam ao homem de preto.

Haveria certamente um qualquer acordo com o divino para aquilo cair para o lado certo, mas foi o Talleres, que ali não ganhava há 31 anos, que daria a volta já muito perto do fim. “Dá-lhe na nuca!”, gritava um adepto, desesperado com as correrias de um extremo visitante.

O árbitro apitou e a brisa que parecia agradável agora gelava a alma. A Bombonera não conhecia a derrota há 13 meses. O tiro na honra estava dado. Os minutos a seguir foram roubando drama àquela noite que prometia festa. Os tambores da famosa claque “La 12” nunca se calaram. Seguem líderes. As unhas voltam a crescer, o cabelo voltará a ficar bem montado, os choripáns serão barrados novamente com chimichumi e os xeneizes vão inventar outro vulcão, num outro dia santo. A Bombonera bailará outra vez como mais nenhuma cancha do mundo. Ela pulsa. Não é mito.

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