A Gisberta que trazemos dentro

Matou-a a água, foi-nos dito, quando todas/os sabemos que o que a matou foi o ódio

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Chamava-se Gisberta. Gisberta Salce Junior. Tinha 45 anos, era mulher, trans brasileira, imigrante e trabalhadora do sexo. Vivia nas ruas do Porto, ela e a doença que lhe contava os dias, à mercê dos tantos ódios alheios que lhe viriam a tirar a vida a 22 de fevereiro de 2006. Foi encontrada num poço, morta, depois de ter sido torturada e seviciada durante dias, como se de uma não-pessoa se tratasse, por um grupo de rapazes com idades entre os 12 e os 16 anos, investido de muitos desses tantos ódios alheios. O ódio maior, o da transfobia, esse ficou por provar. O resultado da autópsia concluiu pela tese do afogamento, tendo os jovens envolvidos sido acusados dos crimes de ofensas corporais qualificadas e de omissão de auxílio. Matou-a a água, foi-nos dito, quando todas/os sabemos que o que a matou foi o ódio.

Passaram-se onze anos. O país nunca mais foi o mesmo depois da morte da Gisberta. A indiferença deu lugar à indignação e esta à ação. Mudanças legais, entre outras, têm vindo a afirmar a necessidade de um outro modelo social onde o respeito pelos Direitos Humanos é o seu mais fundamental princípio regulador. O reconhecimento do não binarismo de género e, em consequência, da diversidade das identidades de género, tem vindo a ser progressivamente plasmado na lei portuguesa. Com a introdução da Lei n.º 7/2011 de 15 de março, aquilo que até ao momento só era possível através do recurso ao poder judicial - procedimento de mudança de sexo no registo civil e correspondente alteração de nome próprio - passa a ter um caráter administrativo, permitindo às pessoas trans de nacionalidade portuguesa, maiores de idade e que não se mostrem interditas ou inabilitadas por anomalia psíquica, a quem seja diagnosticada perturbação de identidade de género, requerê-lo em qualquer conservatória do registo civil.

A discussão em torno da despatologização das identidades trans, embora longe de gerar consensos dentro e fora das comunidades trans, tem vindo a motivar alterações estruturais significativas, desde logo nos discursos e nas práticas científicas. Refira-se, a título ilustrativo, a recente alteração efetuada no Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais (DSM-5), da Associação Americana de Psiquiatria, que substituiu o anterior diagnóstico de Perturbação de Identidade de Género pelo diagnóstico de Disforia de Género, salientando o sofrimento associado à experiência de incongruência de género.

Discute-se hoje em Portugal, com a nova proposta de lei da identidade de género, a possibilidade de ultrapassar a questão do diagnóstico e dos procedimentos clínicos, conferindo às pessoas trans o direito à autodeterminação sem se´s ou mas. Discute-se, pois, a possibilidade das pessoas trans serem livres de ser aquilo que são, sem que alguém tenha que o legitimar ou validar. Passaram-se onze anos. O país nunca mais será o mesmo depois da morte da Gisberta, a Gisberta que trazemos dentro e que é a memória vívida do muito que há a fazer para calar todos os ódios alheios que ainda sobrevivem.

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