O que diz Cavaco em Quinta-feira e Outros Dias

O ex-Presidente apresentou o seu livro como uma "prestação de contas", que passa (claro) por Sócrates, Pinto Monteiro e muitos, muitos casos, vistos do seu gabinete. Eis um best of.

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Nuno Ferreira Santos

Governo de Passos Coelho

Da resistência que demonstrei perante as pressões mediáticas, os histerismos ruidosos e os interesses meramente partidários para que interrompesse a legislatura de 2011-2015, dissolvendo a Assembleia da República, retirei conforto pessoal e não qualquer cansaço ou irritação. Estava absolutamente convicto de que era esse o caminho do interesse nacional. É nessas situações que se vê a fibra de um Presidente, a sua capacidade para, sem medo, separar o trigo do joio. Honro-me de ter, então, prestado um inestimável serviço à democracia.

José Sócrates

Contrariamente às reuniões de quinta-feira que, enquanto Primeiro-Ministro, tinha tido com o Presidente Mário Soares, que eram geralmente breves e sonolentas, dado o seu desinteresse pelas questões económicas e sociais, nas reuniões com o Primeiro-Ministro José Sócrates o diálogo era vivo e intenso e facilmente se prolongava por mais de uma hora. (…)

Nos primeiros anos, foram muitas as vezes em que começou por me afirmar: “Hoje tenho boas notícias.” E avançava com números sobre a execução orçamental, o investimento, as exportações, o turismo ou outros dados económicos. Demorou pouco tempo até eu perceber que se tratava de uma táctica de abertura do diálogo. Frequentemente, as palavras não se conformavam à realidade dos factos e passei a olhar desconfiado para as “boas notícias” do Primeiro-Ministro.

Contudo, foi logo nestas primeiras reuniões que me apercebi da sua resistência ao diálogo e entendimento com os partidos da oposição, da tendência para ver os seus críticos como inimigos e da grande sensibilidade ao que a comunicação social dele dizia, o que me levou a aconselhá-lo a que a ignorasse e se concentrasse na resolução dos problemas do País.

Adoptou, do princípio ao fim da reunião, uma atitude de certa humildade, cordata e respeitosa, repetindo várias vezes que iria manter-me informado sobre todos os contactos que estabelecesse. Simplesmente, nessa altura, eu já contava com várias experiências de como era parco a cumprir o que dizia e sabia que o fingimento era uma das suas características – “um bom ator”, assim o caracterizavam alguns dos seus amigos.

Há muito que tinha concluído que o Primeiro-Ministro tinha pouco de esquerda. Era, de facto, um liberal. Na governação era pragmático, voluntarista e muito pouco ideológico. Foram várias as vezes que me disse não ter paciência para a “esquerda velha” do seu partido. A sua dificuldade estava na escolha das medidas certas para enfrentar os problemas. Muitas vezes errava.

Sublinhou ainda a necessidade de os países, à semelhança das empresas, se endividarem para realizar investimentos, como que a justificar as políticas com que o seu Governo tinha arrastado Portugal para uma situação insustentável. Um raciocínio que revelava uma total e persistente desadaptação à realidade portuguesa, apesar do muito que lhe tinha sido explicado ao longo dos anos. Decidi não o contradizer. Estávamos, afinal, na nossa última reunião.

Perguntei-lhe se iria assumir o seu lugar de deputado à Assembleia da República. Respondeu que iria renunciar, que já não tinha paciência para ouvir discursos como os que se faziam na Assembleia. Houve um tempo em que achara estimulante ser deputado, mas isso era passado.

Como acontece nas verdadeiras reuniões de trabalho, umas vezes estávamos de acordo, outras não. Foram muitos os casos em que vinquei a minha profunda discordância em relação à acção do Governo e algumas conversas não foram nada fáceis. Mas devo reconhecer que, na definição e execução das políticas económicas e sociais, o Primeiro-Ministro não se deixou capturar pelo Partido Comunista Português (PCP) ou pelo BE.  (…)  Se o PCP e o BE tivessem tido influência nas decisões, promovendo a estatização da sociedade, a correcção dos desequilíbrios económicos e financeiro teria sido igualmente inevitável, mas muito mais penosa. A verdade é que não existe na Europa, nem tão-pouco no mundo, qualquer país que seja desenvolvido e que registe um caminho de sucesso tendo partidos da extrema-esquerda a determinar a condução da política económica.

Quanto aos candidatos [à liderança do PS], elogiou Francisco Assis, dizendo que era um moderado. Em relação a António José Seguro, que eu sabia, de conversas anteriores, não lhe despertar especial simpatia, limitou-se a dizer que não era “mau rapaz”.

Francisco Louçã

Foi interessante a conversa que mantive com Francisco Louçã sobre a situação económica do País, na medida em que desenvolveu um raciocínio correto, sem demagogias ou radicalismos, com o qual me identifiquei em muitos aspectos. Não foi assim noutras audiências, em que esteve acompanhado por outros elementos do partido.

Pinto Monteiro, ex-Procurador-Geral da República

Pareceu-me um homem honesto, com princípios éticos, muito franco. Mantive, no entanto, a dúvida sobre se teria a autoridade e a capacidade de liderança que o Ministério Público exigia. Ele próprio me havia dito que se interrogava sobre se seria capaz de desempenhar bem o lugar, e que não queria desiludir quem nele confiava.

Aeroporto da Ota

Colocava-se-me uma interrogação: porque é que o Primeiro-Ministro e o Ministro da tutela teimavam em defender a Ota como a melhor localização?

Entendi que tamanha teimosia só se justificaria caso nenhum deles tivesse lido os estudos feitos no passado, em que a Ota emergia sempre como uma localização menos aconselhável. (…)

De posse da informação que consegui reunir, poderia ter feito uma declaração pública denunciando o erro grave que o Governo se preparava para cometer e conseguir assim um grande protagonismo mediático.

Decidi não o fazer. Desde logo, porque entendo que o Presidente da República não deve ter agenda mediática e não é esse o meu estilo. (…)

No caso da Ota, uma denúncia da minha parte significaria um agudizar das tensões políticas, o que poderia bem exacerbar a teimosia do Governo, levando-o a lançar concursos para a construção do aeroporto, com elevados custos para o País.

Sabia, por experiência própria dos meus tempos de Governo, que um Presidente que não estuda cuidadosamente as matérias e vive para o protagonismo mediático tem escassa influência sobre o processo político de decisão.

TGV

Não foram conversas fáceis. Algumas das minhas intervenções sobre o assunto desagradaram ao Primeiro-Ministro, chegando a suscitar indícios de irritação que, no entanto, se esforçava por controlar. As discordâncias entre mim e ele ficaram bem claras.

Não era exactamente por falta de investimento que Portugal tinha vindo a afastar-se da média de desenvolvimento da União Europeia. O que tínhamos, em Portugal, eram muitos investimentos ineficientes, quer no sector privado, quer no sector público. O TGV iria ser mais um deles, pela simples razão de que não teria tráfego suficiente e os custos nunca conseguiriam ser cobertos pelas receitas.

Auto-estradas

Em 24 de Outubro de 2008, disse-lhe [a José Sócrates] que me chegavam apelos de muitos economistas, nem sequer ligados aos partidos da oposição, e até de responsáveis de empresas de construção, para que convencesse o Governo a repensar a política de novas auto-estradas. Reagiu, afirmando estar absolutamente convencido de que o lançamento dessas infra-estruturas era essencial para combater o desemprego.

Procurei explicar que não era através da construção de auto-estradas, para as quais não havia trânsito, que iria resolver os graves problemas da economia portuguesa. (…)

O Primeiro-Ministro insistiu na sua posição. Fiquei com a ideia de que a crise económica estava a afectar a sua racionalidade.

Estradas de Portugal e défice orçamental

Quando, no fim da reunião de quinta-feira, 10 de maio de 2007, o Primeiro-Ministro José Sócrates me informou de que o Governo estava a trabalhar para retirar a empresa Estradas de Portugal do âmbito do sector público administrativo, disse-lhe que isso era apenas contabilidade criativa, que em nada alterava a realidade do défice das contas do Estado. Tinha, contudo, um efeito negativo: perante a ilusão da descida do défice público, os ministros gastadores seriam estimulados a fazer mais despesa, quando era precisamente o contrário do que o País precisava.

Sublinhei ao Primeiro-Ministro que a desorçamentação de despesas do Estado não alterava o verdadeiro desequilíbrio das contas públicas e tinha dúvidas que isso fosse aceite pelo Eurostat. Os analistas internacionais não se deixariam enganar com tal manobra contabilística. Para mim, era claro que o Governo queria subtrair ao Orçamento e às contas do défice público os encargos com as parcerias público-privadas rodoviárias que, já então, se antecipava serem de muitas centenas de milhões de euros. Tratava-se, além disso, de um processo que retirava à Assembleia da República o controlo da actividade da empresa Estradas de Portugal, em flagrante violação do princípio da transparência.

Referendo à despenalização do aborto

Na sequência da vitória do “Sim” no referendo, não podia deixar de constatar que o PS e o seu líder tinham então demonstrado um sentido de equilíbrio que estivera ausente na reversão aprovada pelo Parlamento em Dezembro de 2015. A explicação, concluo, deve residir no facto de, em 2007, o Governo do PS não depender, para a sua sobrevivência, dos apoios do BE e do PCP e da influência negativa que estes partidos passaram a exercer na governação do País.

Venezuela

Já em relação ao desenvolvimento de negócios de empresas portuguesas com entidades venezuelanas, não acompanhava o entusiasmo do Primeiro-Ministro.

Na reunião de 19 de Novembro de 2007, o Primeiro-Ministro [José Sócrates] confirmou que a chegada do Presidente Chávez estava prevista para a tarde do dia seguinte. O programa incluía uma visita à estátua de Simón Bolívar, na Avenida da Liberdade, a assinatura, no Ministério da Economia, de um acordo de fornecimento de petróleo à GALP e de um jantar no Palácio de São Bento. Tudo bastante diverso do que antes me dissera. Mais uma vez fiquei com a dúvida sobre se podia confiar na sua palavra.

Quanto mais via o entusiasmo do Primeiro-Ministro com os negócios das empresas portuguesas com a Venezuela, mais desconfiado eu ficava. Acompanhava a evolução desastrosa da economia venezuelana, a fortíssima dependência do petróleo, o autoritarismo do regime, a criminalidade violenta e as suas péssimas relações com a vizinha Colômbia e não podia deixar de concluir que os riscos económicos e políticos deste envolvimento eram muito elevados. Não me enganei.

Estatuto dos Açores

O Primeiro-Ministro [José Sócrates] surpreendeu-me, nessa altura, ao dizer que se eu decidisse exercer o direito de veto não ficaria incomodado. Ao que acrescentou: “Até poderei aplaudir.”

Por outro lado, ficou claro que os interesses partidários têm muita força. A chantagem do Presidente do Governo Regional sobrepôs-se à vontade declarada do próprio Primeiro-Ministro e líder do partido de ir ao encontro do superior interesse nacional.

Crise financeira de 2008

O meu objectivo era, acima de tudo, sensibilizar o Governo para que, em reacção à crise, não cometesse erros que pudessem hipotecar seriamente as possibilidades de desenvolvimento futuro do País e para que desse resposta adequada às situações de emergência social.

O Primeiro-Ministro começou por não levar a sério os meus alertas.

Na reunião de 6 de Junho, fiquei com a ideia de que o Primeiro-Ministro não sabia o que fazer.

Quando, seguidamente, me contou que o Governo tinha pedido à Caixa Geral de Depósitos para que concedesse uma garantia de avultado montante para que uma certa empresa pudesse concorrer à concessão da auto-estrada transmontana, percebi que não tinha tido sucesso no meu esforço didáctico sobre a afectação de recursos em tempo de escassez de crédito.

Orçamento do Estado para 2010

Apesar de o Governo ser minoritário, e de o PSD e o CDS-PP terem declarado que se iriam abster na votação do Orçamento do Estado para 2010 e modificado substancialmente a proposta inicial de revisão da Lei das Finanças Regionais, de tal modo que apenas se traduziria num reduzido aumento da despesa pública e do endividamento, o Primeiro-Ministro, num tempo em que interessaria manter um espírito de compromisso para a aprovação do Programa de Estabilidade e Crescimento, atacou tudo e todos e acentuou o nível de crispação política. Era um facto que resistia a habituar-se ao novo tempo, em que o Governo já não dispunha de apoio maioritário na Assembleia da República. Como na história do escorpião e do sapo, era da sua natureza.

No fim de um processo que teve cenas caricatas, reforcei a ideia de que o Primeiro-Ministro e o Ministro das Finanças já não sabiam como sair da situação a que tinham conduzido o País – insustentabilidade das finanças públicas, aumento da dívida pública, dívida externa que não parava de crescer, falta de competitividade da economia. Encontravam-se numa situação de fuga para a frente e até parecia que não se importariam que ocorresse uma grave crise política, mesmo que o PS acabasse por perder com isso.

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