Ivanka e Jared – O novo casal mais poderoso de Washington?

Quando entrar na Casa Branca, Donald Trump não vai estar só. Durante a campanha, a filha mais velha, Ivanka, e o seu marido, Jared Kushner, foram instrumentais. Agora, o casal-sombra da presidência está no limiar do poder. Quem são eles?

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A 17 de Novembro, menos de dez dias depois de ter vencido as eleições presidenciais, Donald Trump recebia na Trump Tower, em Nova Iorque, pela primeira vez como Presidente eleito um líder estrangeiro: o primeiro-ministro japonês, Shinzo Abe. Para o encontro com o chefe de Governo da terceira maior economia do planeta, Trump fez-se acompanhar da filha, Ivanka Trump, e do genro, Jared Kushner, que aparecem sorridentes nas fotografias divulgadas pelos assessores de Abe – nenhum jornalista pôde registar a reunião.

Depressa se instalou a incredulidade entre a generalidade dos comentadores políticos, que sublinhavam o carácter incomum – mesmo para um Presidente ainda não em funções – da presença de familiares num encontro diplomático de alto nível. “Trump encorajou sempre Ivanka e os seus filhos a participarem nas reuniões com ele”, disse, na altura, ao New York Times, um amigo da família. Mas foi logo dada a garantia: “É claro que eles precisam de se ajustar às novas realidades – e irão fazê-lo.”

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Encontro do primeiro-ministro japonês, Shinzo Abe, com Donald Trump, a que também assistiram a filha, Ivanka Trump, e o genro, Jared Kushner reuters

Quase dois meses depois, há um claro ajustamento do ciclo familiar mais próximo de Trump, mas talvez não seja no sentido antecipado pela maioria. Na semana passada, Trump nomeou o genro para o cargo de conselheiro presidencial, confirmando os rumores que circulavam desde que Kushner e a mulher adquiriram uma mansão em Washington, abandonando Nova Iorque. A filha mais velha de Trump também tem dado sinais de que o seu futuro deverá passar pelos corredores da Casa Branca, depois de anunciar esta semana o seu afastamento do mundo empresarial.

Juntos, Ivanka Trump, de 35 anos, e Jared Kushner, 36, preparam-se para transformar os laços familiares que os ligam ao Presidente eleito em poder real. A editora do site especializado em direito Lawfare, Susan Hennessey, diz que o poder dos filhos e do genro de Trump, associado às suas ligações empresariais, são uma questão de “segurança nacional”. “O perigo vai além do alcance da ética tradicional – convidando desperdício, fraude e abusos – e representa uma ameaça profunda não apenas à nossa segurança nacional como à legitimidade básica do nosso Governo”, acrescenta.

Obstáculos legais

A nomeação de Kushner põe, desde logo, em causa as leis antinepotismo dos EUA, que impedem a contratação de familiares de dirigentes públicos para departamentos estatais que estejam sob a sua supervisão. Nas últimas semanas, o genro de Trump tem preparado o seu afastamento da empresa de imobiliário a que preside e está a alienar “activos substanciais”, disse à Bloomberg a advogada da firma WilmerHale, Jamie Gorelick.

A equipa de Kushner terá difíceis batalhas legais pela frente, mas o historial de Gorelick mostra que não será isso que a faz tremer. A antiga procuradora-geral adjunta fez parte da equipa de advogados que defendeu a BP na sequência do derramamento de petróleo no Golfo do México, em 2010.

Caso a nomeação avance, Kushner “será tratado como qualquer outra pessoa que entre para a função pública”, garante Gorelick. A lei antinepotismo é, no entanto, clara: “Um dirigente público não pode nomear, empregar, promover, progredir, ou defender a nomeação, emprego, promoção ou a progressão (…) na agência na qual está a trabalhar, ou sobre a qual exerce jurisdição ou controlo, qualquer indivíduo que seja familiar do dirigente público.” O diploma foi aprovado pelo Congresso em 1967, na sequência da nomeação de Robert Kennedy como procurador-geral pelo seu irmão, e Presidente, John Kennedy, para impedir justamente casos como este – Robert Kennedy era considerado demasiado inexperiente para o cargo.

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Clã Trump na Escócia sob o olhar atento da segurança: Donald com os filhos Eric e Ivanka, e o genro, Jared Carlo Allegri/ REUTERS/

Os advogados de Kushner pretendem utilizar o argumento de que a “Lei Bobby Kennedy” se aplica a departamentos federais, deixando de fora a Casa Branca. Para suportar a defesa, contam com um precedente aberto pela adversária de Trump na corrida presidencial, Hillary Clinton. Quando chegou à Casa Branca, Bill Clinton nomeou a primeira-dama para chefiar um grupo de trabalho encarregue de estudar a reforma do sistema de saúde. A decisão foi levada a tribunal e os juízes deram razão aos Clinton, e um dos argumentos era o de que a Casa Branca não pode ser considerada uma agência estatal. É essa alegação que volta agora a ser invocada pelos advogados de Kushner.

Para além da ligação familiar, os vastos negócios de Jared Kushner levantam possíveis conflitos de interesse preocupantes. O New York Times revelou recentemente que, uma semana depois das eleições, Kushner esteve reunido com o dono do grupo chinês Anbang, cujas movimentações no mercado imobiliário norte-americano têm levantado suspeitas das autoridades. Há muitas dúvidas quanto à verdadeira composição accionista da empresa, que tem adquirido vários hotéis nos EUA, incluindo o célebre Waldorf Astoria, em Nova Iorque – em 2015, já depois do negócio, Barack Obama recusou hospedar-se no hotel, quebrando uma longa tradição, argumentando com “razões de segurança”.

O método escolhido por Kushner para assegurar que os negócios não serão impedimento para uma entrada na carreira pública é muito semelhante ao escolhido pelo sogro. Kushner disse que vai demitir-se da empresa imobiliária da família, bem como abdicar das suas propriedades num edifício na Quinta Avenida e da sua posição accionista no jornal New York Observer. Mas, tal como Trump, Kushner recusa colocar os seus activos num blind trust – um fundo de gestão ao qual não teria acesso, nem sequer a informação sobre ele – passando parte deles para o irmão e o restante para um fundo gerido pela mãe.

A perspectiva de Kushner integrar o círculo de conselheiros do Presidente norte-americano é já suficiente para deixar em alerta os moradores de um dos prédios da East Village de que o empresário é dono. “Não consigo dizer quão repugnante este homem é”, disse ao jornal Village Voice Mary Ann Siwek, que mora há 30 anos no número 170 da East 2nd Street. Depois de comprar o prédio por 17 milhões de dólares, Kushner tem tentado remover os arrendatários com rendas estabilizadas para tentar atrair inquilinos endinheirados. A grande maioria dos anteriores moradores já deixou o edifício e as rendas dispararam, diz o jornal.

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Melania, Ivanka e Jared durante a campanha no Iowa Luke Sharrett/Bloomberg/Getty Images

Família primeiro

Mesmo que a família Trump fique do lado de fora da Casa Branca, nada os impede de exercer uma influência “informal” junto do próximo Presidente norte-americano. Foi assim ao longo de toda a campanha, durante a qual Kushner, por um lado, e Ivanka, por outro, eram quase omnipresentes junto do magnata. O historiador político Julian Zelizer chegou a dizer que os elementos da família “parecem, a certa altura, as únicas pessoas na sala”.

Trump não é conhecido por ser um grande ouvinte. O ex-director de campanha, Paul Manafort, não escondia a impotência que sentia ao lidar com o candidato republicano. “O candidato controla a campanha e eu controlo as coisas que ele quer que eu faça na campanha”, disse à Fox News. Mas havia uma excepção quando os seus interlocutores eram a filha mais velha ou o genro. Ivanka deu-lhe o lado humano e afável que muito poucos diziam encontrar no magnata quando este se desdobrava em ofensas contra os seus rivais ou jornalistas de que não gostava.

Kushner teve outro percurso. De início, a sua participação na campanha era esporádica, conta a New York Magazine num perfil recente, mas, com o desenrolar dos acontecimentos, o genro passou a envolver-se mais directamente, especialmente na área das projecções eleitorais, acabando por ter um papel activo na escolha do candidato a vice-presidente. A influência do empresário manteve-se após 8 de Novembro, quando passou a ser uma das pedras basilares da equipa de transição, na qual estabeleceu uma preciosa parceria com Steve Bannon, que acabava de abandonar a presidência executiva do Breitbart, um site de propagação do pensamento da extrema-direita que foi instrumental no apoio que deu a Trump.

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Jared Kuscher, um judeu ortodoxo nova-iorquino, com Steve Bannon, de extrema-direita Jabin Botsford/The Washington Post/ Getty Images

“Dois mundos diferentes, porém, eles parecem conviver e trabalhar bem juntos”, disse à New York um dirigente republicano próximo da equipa de transição. A proximidade entre Kushner, um judeu ortodoxo nova-iorquino, e Bannon, cujo site que dirigia alberga e difunde teses da extrema-direita racista e xenófoba norte-americana, já não surpreendeu quem conheceu o empresário.

A surpresa aconteceu muito antes, explicava ainda durante a campanha à New Yorker o ex-provedor público de Nova Iorque e amigo do casal, Mark Green. “Quando a minha mulher e eu o vimos na televisão, sentimos pena dele, pensando que ele estaria embaraçado pelos gritos e injúrias do sogro.” Mas o político democrata admite que foi “ingénuo”. “Ele fez aquilo que, retrospectivamente, quase todos os genros fariam nesta situação delicada, que é manter-se ao lado da família, mesmo suportando um custo para a sua reputação”, acrescenta.

Ao contrário de Trump, Kushner é reservado, calmo e pouco dado à exposição pública. Nas descrições do seu perfil, é comum apontar-se a sua forma “gentil” de falar. Mas muito do seu percurso aproxima-o do sogro.

Os avós têm raízes na Bielorrússia, de onde fugiram durante a II Guerra Mundial, após a chegada dos nazis. A fuga do Holocausto faz parte da saga familiar dos Kushner. Depois de alguns anos em Itália, os Kushner conseguiram embarcar num navio com destino a Nova Iorque, onde o avô Joseph se dedicou à construção. Mas foi Charlie, o pai de Jared, quem expandiu o negócio de família, tornando-o um império do imobiliário. Desde cedo que o jovem acompanhou o pai em reuniões empresariais. Fixados em Nova Jérsia, a família continuou a observar o judaísmo ortodoxo e foi assim que Jared também foi criado – Ivanka teve de se converter ao judaísmo para que a família autorizasse o casamento.

Ao lado de Trump, a sua área de actuação deverá situar-se na política externa. Já depois das eleições, Trump chegou a sugerir que o genro poderia servir como mediador para as conversações israelo-palestinianas, que qualificou como "o negócio que não é possível fechar". É incerto, no entanto, que Kushner seja a personalidade mais neutral para mediar um esforço diplomático deste género. A sua família é uma financiadora de longa data da AIPAC, o lobby israelita, e, segundo investigações do jornal Haaretz, a fundação Kushner fez doações no valor de 58 mil dólares a organizações israelitas que apoiam escolas de índole religiosa situadas em colonatos.

O Conde de Monte Cristo

O ex-director do New York Observer, Peter Kaplan, disse que o livro favorito de Jared Kushner é O Conde de Monte Cristo, o romance de Alexandre Dumas sobre um homem preso injustamente que consegue fugir da prisão e promete vingar-se dos responsáveis pela sua queda em desgraça. A escolha assenta de forma demasiado perfeita na própria história pessoal de Kushner para ser verídica. O mais provável é que o jornalista utilize a associação para introduzir a narrativa familiar do seu antigo patrão em conversas entre amigos.

Em 2004, Charlie envolveu-se numa série de processos judiciais contra o irmão mais velho, Murray, que o acusava de desvio de fundos da empresa da família. Depressa a luta entre os Kushner assumiu proporções escandalosas. Para se vingar da irmã, Esther, que desconfiava estar em conluio com Murray, Charlie contratou uma prostituta para seduzir o cunhado e filmou-os a ter relações sexuais.

Charlie Kushner acabou por ser condenado a dois anos de prisão por 18 crimes de evasão fiscal, intimidação de testemunhas e doações políticas ilegais, escreve a New Yorker. Por trás do caso estava um procurador do estado de Nova Jérsia, Chris Christie (que depois se tornou governador deste estado). O livro de Dumas acabaria por se mostrar útil. Quando chegou à equipa de transição de Trump, Kushner terá afastado Christie, que era visto como favorito a ocupar um cargo relevante na futura Administração.

Jared, então em Harvard – onde entrou, apesar de ser um aluno mediano, após doações no valor de 2,5 milhões de dólares por parte do seu pai –, passou a visitar Charlie todos os fins-de-semana numa prisão de segurança mínima no Alabama. A queda do pai tinha amaldiçoado o nome da família e marcou profundamente o jovem estudante. Os alunos da Academia Hebraica Joseph Kushner tapavam o apelido do fundador nos uniformes, diz a New Yorker.

Aos 24 anos, Jared decide tomar as rédeas do destino da empresa da família, lembrando-se provavelmente dos ensinamentos do Conde. Abandonou Nova Jérsia e fixou o olhar em Nova Iorque, onde comprou o arranha-céus no número 666 da Quinta Avenida, por 1,8 mil milhões de dólares – e que se tornou o símbolo do renascimento dos Kushner. O recomeço não foi fácil, mas algumas aquisições imobiliárias conseguiram conter os efeitos da crise económica de 2008.

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Ivanka, a preferida

Antes disso, adquiriu por dez milhões de dólares o Observer, um jornal de pouca circulação, mas influente junto da elite económica e política da cidade, e que lhe valeu a entrada no círculo dos magnatas da comunicação social, entre os quais estava Rupert Murdoch. A reinvenção dos Kushner ficou completa em 2009, depois do casamento com Ivanka Trump, herdeira de outro grande império imobiliário nova-iorquino. Numa entrevista à Vogue em 2015, a empresária recorda que quem os apresentou estava à espera que o único interesse que iriam despertar um no outro seria “transaccionável”. O casamento, continua Ivanka, acabou por ser “o melhor negócio” que ambos fizeram.

Trump não esconde o orgulho que a filha mais velha desperta, embora por vezes não da forma mais própria. Na memória ficou uma entrevista de 2006 em que o empresário diz que, se Ivanka não fosse sua filha, ele sairia com ela. Três anos antes, a propósito da curta carreira da filha como modelo, Trump disse no programa radiofónico de Howard Stern que ela é “uma das grandes beldades do mundo, de acordo com toda a gente”. “Ela tem 1 metro e 80 e o melhor corpo”, acrescentou.

Mas reduzir a admiração de Trump pela filha apenas ao lado anedótico dos comentários mais desconcertantes é pouco. Ivanka é provavelmente aquela que terá herdado a maior parte do génio empresarial do pai. Um colaborador de Trump contou à New Yorker que, quando Ivanka tinha 14 anos e descobriu que havia uma loja com o seu nome, se queixou ao pai, lembrando-lhe que já lhe tinha dito que deveria ter registado o seu nome. Aproveitando o crescimento da marca Trump – presente em hotéis e edifícios em todo o mundo –, Ivanka lançou a sua marca de roupa, jóias e toda a panóplia de acessórios femininos.

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Vida social: o casal Jared e Ivanka com Anna Wintour, da Vogue BILLY FARRELL/Patrick McMullan/Getty Images)

Agora, o papel que a aguarda é de “primeira-dama sombra”. Enquanto Melania, a mulher de Trump, estiver em Nova Iorque, onde vai ficar até o filho Barron, de dez anos, terminar o ano lectivo, será Ivanka a assumir as tarefas de primeira-dama. Não é inédito que esse papel seja assumido por uma pessoa que não a mulher do Presidente. Aconteceu o mesmo com a filha de Richard Nixon, Julie, que por vezes substituiu a mãe.

Como casal, Jared e Ivanka eram presença assídua no círculo social de Nova Iorque, participavam em acontecimentos desportivos, estreias de filmes e apoiavam políticos democratas. Integravam na perfeição a infame “bolha” liberal e “politicamente correcta” que Trump tantas vezes atacou em comícios nos últimos meses. A iminência do poder falou mais alto e a reconstrução da dinastia dos Kushner, agora com os Trump como aliados, ainda não terminou. Depois da queda e da humilhação, o círculo fecha-se com o acesso à cúpula da cúpula. Ao Financial Times, o antigo senador Robert Torricelli, muito próximo dos Kushner, dá um tom de predestinação: “Charlie Kushner tinha um papel em mente para Jared desde o início.”