A casa da Rua da Lapa vai tornar-se num edifício moderno

Apesar das críticas, a casa que marcava o bairro lisboeta veio abaixo. Uma transformação que teve pareceres contrários

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Projecção do novo edifício, da autoria de Manuel Aires Mateus.
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Imagem do Google da casa original
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Interior da casa original. Vítor Silva
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Interior da casa original. Vítor Silva
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Exterior da casa original, já em obras. Vítor Silva

Poucos ficaram indiferentes à destruição da moradia no nº 69 da Rua da Lapa, em Lisboa. Moradores, membros de fóruns e páginas online, arquitectos e historiadores mostraram-se revoltados com o derrube de uma casa do século XVIII que era uma das “mais icónicas do bairro” e cuja destruição causou “uma dor de alma”, como descreveram ao PÚBLICO. No seu lugar surgirá um prédio com a assinatura de Aires Mateus, que rompe com o passado. Já antes uma proposta diferente de um projecto que implicaria o derrube da casa tinha recebido pareceres negativos, mas desta vez a Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC) acabou por dar luz verde.

Manuel Aires Mateus, o arquitecto responsável pelo desenho do novo edifício e autor, entre outros projectos, da nova sede da EDP e do lar de Alcácer do Sal, compreende o receio dos moradores de que se inicie ali a descaracterização do bairro da Lapa, mas acrescenta que este é injustificado: “É legítimo as pessoas terem medo da troca, porque normalmente quando se deita abaixo uma casa é para construir algo pior, mas houve um grande cuidado em desenhar um (novo) edifício com elegância que daqui a um tempo estará mais que assimilado na cidade”.

No lugar da moradia cor-de-rosa de estilo pombalino, com janelas de guilhotina, frescos e azulejos centenários e sobreportas em vidro no interior, vai surgir um prédio de seis pisos com cinco apartamentos (um por andar) com a entrada principal virada para a Rua da Lapa e outro apartamento independente cuja entrada se faz pela Rua São João da Mata. A casa original foi demolida no dia 13 de Outubro porque os proprietários, seis irmãos da família Pereira Coutinho, não tinham espaço para lá morar juntos. “A casa que lá existia não servia o propósito que devia, de albergar os irmãos todos. E é evidente que era uma casa romântica e engraçada, mas nenhuma família pode ficar sem ter onde morar só porque a casa é engraçada”, adiantou Manuel Aires Mateus. O arquitecto vai mais longe: “A casa não tinha um valor patrimonial por aí além, e o que estamos a desenhar corresponde à função que é solicitada agora pela família”. Mantém-se a área que já correspondia ao jardim e adapta-se o resto “ao que é permitido pela lei em relação à capacidade construtiva”.

O projecto da reconstrução foi aprovado a 12 de Maio de 2014. Na parte dos condicionantes da obra vê-se que a propriedade está incluída na zona de intervenção do Aeroporto de Lisboa e na zona especial de protecção do conjunto do Museu Nacional de Arte Antiga, da Igreja de São Francisco de Paula, do Convento das Trinas e de Mocambo e do Chafariz da Esperança. Na proposta apresentada para alteração do imóvel, podia ler-se: “Propõe-se uma construção nova que se alicerce na memória do existente”. Porém, a ideia não é copiar o que já lá estava, explicou Manuel Aires Mateus: “Não se pode imitar o antigo. As coisas ou são feitas naquela época ou agora. Há imensos edifícios que preservamos, ou porque têm qualidade, ou porque correspondem à função para que são precisos, mas este nem tinha qualidade nem correspondia ao necessário”.

Na apreciação do projecto da nova construção, pode ler-se: “O representante da DGPC (arquitectos Alberto Flávio Lopes e Teresa Gamboa) considerou que o projecto pode ser aprovado atendendo a que se harmoniza volumetricamente com a envolvente e não interfere com o significado e a singularidade dos bens imóveis classificados que justificam a servidão administrativa, com as quais não mantem qualquer relação de co-visibilidade”. Segundo outra técnica da DGPC, isto significa que só se a obra interferisse “directa e negativamente” com algum dos monumentos protegidos da área envolvente é que a entidade poderia dar um parecer negativo e impedi-la. Neste caso, a demolição completa do imóvel e a sua reconstrução de raiz não representaram problemas, “uma vez que nem sequer estão no campo de visão dos monumentos, não os afectam em nada”.

Indo ao encontro das palavras de Aires Mateus, a mesma fonte da DGPC afirmou: “segundo as directrizes europeias pelas quais nos regemos, quando há obras em imóveis antigos, não se tenta ‘imitar’ o estilo do que já existia. Não queremos enganar quem passa e levá-lo a acreditar que está a ver uma construção do século XVIII ou XIX quando ela na verdade foi construída em 2016. Tem de ser óbvio que é uma construção do ano em que foi feita”. Também no projecto pode ler-se que a obra “caracterizar-se-á pelo uso de materiais e técnicas contemporâneas, por forma a atingir os melhores padrões de qualidade, segurança, fiabilidade e conforto”.

“Não é um edifício com um desenho para ser muito visível nem marcante, tem a modéstia de ser acompanhante das características de escala e geometria dos outros edifícios da cidade”, referiu ainda Manuel Aires Mateus.

Há quatro anos, a opinião era outra

No entanto, no processo também estão incluídos documentos que mostram que, há quatro anos, a opinião foi diferente. A 20 de Janeiro de 2012, Heromina Crasto Teixeira e outros investidores pediram uma apreciação sobre a hipótese de demolir o imóvel a uma equipa de arquitectos, do ateliê Origem Arquitectos, da qual fez parte Mónica Cruz, e receberam um parecer negativo. Na justificação da avaliação, podia ler-se que a equipa verificou que a demolição “não será a melhor opção, quer pelo edifício quer pela zona de PDM onde se enquadra”, pelo que se pedia a opinião à DGPC sobre uma ampliação/alteração ao imóvel, afastando-se a sua destruição total.

Ana Paula Sampaio, técnica da DGPC, assinou a carta de proposta de reunião (na qual foi discutida a obra no imóvel), em que se lê: “verificando-se que o edifício de gaveto (…) se encontra em bom estado de conservação e aparenta um aspecto construtivo sólido e de correcto enquadramento, foi transmitido ser de excluir tal hipótese (da demolição)”. Contudo, está explícito no mesmo parecer que era de admitir “uma solução de alteração ou ampliação, em função dos parâmetros admissíveis pra o local em termos de PDM”. Face a estas opiniões, a obra não seguiu em frente. Até 2014, altura em que os pareceres foram em sentido totalmente contrário aos primeiros, acabando por ser aprovados pela DGPC.

Texto editado por Ana Fernandes

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